Cunha, transporte e desenvolvimento

Rodovia Vice-prefeito Salvador Pacetti (SP-171), quando atravessa o bairro do Taboão. Foto: site Viagens e Caminhos. Data: 2010.

Antes mesmo de Cunha ser Cunha, os caminhos já faziam parte da história deste lugar. A antiga trilha dos Guaianases, o “caminho do Facão”, foi um dos primeiros pontos de entrada para o sertão. Um peabiru que foi amplamente utilizado pelos colonizadores. Aliás, é bem provável que o nosso antigo topônimo “Facan/Facão” seja em razão da condição desse antigo caminho, que vencia a Serra do Mar, mas era dos mais perigosos e precários.

Dizem os antigos cronistas e aventureiros que os Guaianases, primeiros a pisar neste chão, estavam sediados na Ilha Grande. Quando chegava o verão, migravam do litoral rumo ao sertão, embrenhando-se na mata, que, de tanto ser varada, acabou virando a trilha desse povo originário.

Em distância absoluta, a cidade mais próxima de Cunha é Lagoinha (vide Mapa Concêntrico de Cunha abaixo). Dista 23,6 Km. No passado, já chegou a ser distrito de Cunha. Mas somente agora estão a asfaltar a ligação entre elas, via bairro do Jaguarão. A segunda cidade mais próxima, Paraty (RJ), a 30 Km, só foi conectada decentemente a Cunha em 2016, depois de mais um século de reivindicação para o seu calçamento.

É muito pouco para uma cidade que surgiu, justamente, em função dos caminhos.

Está sob a ponte aérea Rio – São Paulo, principal fluxo aeroviário brasileiro. Movimento bem perceptível à noite, com pontos luminosos transitando no céu no sentido Leste-Oeste.

Está conectada por menos de 50 Km, via SP-171, à BR-116, principal rodovia do Brasil.

Mapa Concêntrico em Cunha (SP), apresentando algumas cidades selecionadas como referência. A equidistância entre os círculos em destaque é de 50 Km. O objetivo é mostrar a posição de Cunha entre os dois maiores conglomerados urbanos do Brasil. Além da distância entre as cidades, foram respeitadas as angulações azimutais.Data: 2022. Cartografia: Jacuhy.

Portanto, percebe-se que Cunha não está mal localizada – como sugerem certas pessoas ao tentar justificar o subdesenvolvimento municipal –, já que seu sítio urbano fica entre as duas maiores metrópoles do país; mas é mal servida pela rede rodoviária, modal de transporte predominante no Brasil. E o problema nem é a densidade dessa rede, porque só de estradas rurais o seu território é cortado por mais de 2 mil quilômetros, e, sim, a condição dessas vias. Trata-se de estradas vicinais de terra batida, com manutenção esporádica, inapropriadas ao tráfego nos dias chuvosos.

Até 2016, quando a Estrada Parque Comendador Antonio Conti (RJ-165) foi concluída, a única ligação asfaltada que o município possuía com outro lugar era com Guaratinguetá, pela Rodovia Paulo Virgínio (SP-171), inaugurada em 1967 até a cidade de Cunha. O trecho até a divisa com o estado do Rio de Janeiro foi concluído em 1984.

Sem estradas transitáveis, não há turismo nem escoamento da produção agrícola.

Cidade com clima de montanha, porém bem perto do litoral. Localização privilegiada, isso sim. Só que sem estradas, é mais uma das “cidades mortas” do velho Vale, a espera de uma via transitável que possa ressuscitá-la.

PIB de Cunha cresce 11% em 2020

Setorização do PIB cunhense – 2020. Arte: Jacuhy.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou no dia 16 de dezembro de 2022 o Produto Interno Bruto (PIB) referente ao ano de 2020 de todos os municípios do Brasil. O intuito da instituição é “fornecer estimativas do Produto Interno Bruto – PIB dos Municípios, a preços correntes, e do valor adicionado bruto da Agropecuária, da Indústria, dos Serviços e da Administração, saúde e educação públicas e seguridade social, a preços correntes, compatível com as metodologias das Contas Regionais e Nacionais do Brasil, sendo as estimativas obtidas comparáveis entre si”; sendo portanto, um dado econômico relevante para o planejamento estatal, que permite verificar regiões e pontos com o avanços ou retrocessos econômicos no conjunto territorial do país. Ron Johnston (2009, p. 320) afirma que as estimativas do PIB são usadas para comparar o volume da atividade econômica ao longo do tempo e do espaço – seja em agregado ou per capita – mas para evitar complicações introduzidas pela inflação e flutuações da taxa de câmbio, elas devem ser convertidas em uma base comum.

A divulgação dos dados referentes ao PIB dos municípios em 2020 era aguardada, pois foi um ano atípico, marcado pelo alastramento do COVID-19 e a consequente paralização de diversas atividades econômicas, em virtude da emergência sanitária. O tamanho do impacto da pandemia sobre a economia tem sido objeto de debate entre os economistas. À medida em que os dados vêm sendo divulgados, foi possível perceber que os setores mais impactados pela pandemia foram o de alojamento e alimentação; serviços domésticos; transporte, armazenamento e correio; artes, cultura, esporte e recreação e outras atividades de serviços. Segundo o IBGE, “os resultados de 2020 evidenciam que os efeitos da pandemia de COVID-19 sobre as economias municipais variaram de acordo com a importância das suas atividades de Serviços, sobretudo as presenciais. Isto porque estes serviços agregam as atividades com as maiores quedas de participação no País entre 2019 e 2020, sendo as mais afetadas pelas medidas restritivas de isolamento e precaução de contágio por parte das famílias adotadas durante o ano.”. Todavia, os economistas e técnicos de planejamento têm alertado para a interpretação econômica do PIB dos municípios em 2020 e pedido cautela, pois foi um “ano em que a crise sanitária provocada pela Covid-19 trouxe grandes desafios para a mensuração da atividade econômica”, conforme consta na “Nota técnica – PIB 2020”, emitida pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), órgão do Governo de São Paulo.

A região do Vale do Paraíba Paulista foi diretamente impactada pela pandemia e viu seu PIB regredir em relação a 2019. O PIB regional recuou de 131,6 bilhões de reais em 2019 para 122,6 bilhões de reais em 2020. Uma variação negativa de 6,87% no volume. Os grandes centros econômicos de nossa região, São José dos Campos e Taubaté, ficaram entre os municípios que mais perderam participação PIB do Brasil em 2020, o que demonstra o grave impacto causado pela pandemia sobre a economia regional. O PIB do estado de São Paulo avançou 0,4% no mesmo período. Cunha não sofreu o mesmo impacto econômico.

O PIB de Cunha avançou de 267,7 milhões de reais em 2019 para 297,3 milhões de reais em 2020, agregando assim quase 30 milhões de reais de um ano para o outro, uma variação de volume de 11,05%. Desde que o IBGE começou a mensurar os PIB dos municípios, em 2002, na metodologia que utiliza até agora, Cunha nunca registrou decréscimo. Com esse resultado, a taxa participação econômica do município no PIB estadual teve um pequeno aumento. Era de 0,0114% em 2019 e foi para 0,0125% em 2020. No ranking estadual, Cunha é apenas 365ª maior economia.

Evolução do PIB de Cunha (2002-2020). Fonte: IBGE, 2022.

Ao se fazer um recorte setorial no PIB de Cunha, percebe-se que o setor que alavancou esse crescimento, mesmo diante do cenário de crise econômica, foi o primário. A agropecuária cunhense teve uma variação positiva de 54%, passando a responder por 12,9% do PIB cunhense (era 9,3% em 2019). Cunha é o maior produtor de leite de São Paulo e possui o maior rebanho bovino do Vale do Paraíba Paulista.

O setor hoteleiro e de alimentação foi duramente atingido pelas restrições sanitárias e de circulação implementadas para deter o avanço do COVID-19. Em Cunha não foi diferente. Medidas restritivas foram tomadas pela Municipalidade para preservar a saúde da população e tentar frear o avanço das infecções por coronavírus. Eventos foram cancelados. Pousadas foram temporariamente fechadas e restaurantes só puderam funcionar com entregas em domicílio. O turismo, hoje uma importante atividade econômica de Cunha, foi o mais impactado pela pandemia. Por outro lado, muitas pessoas deixaram a Região Metropolitana de São Paulo e se refugiaram em suas casas de veraneio e sítios na zona rural cunhense, na esperança de não serem infectados. Essa migração sanitária, esse êxodo urbano temporário, certamente aqueceu o comércio local e o setor de serviços, compensando as perdas do setor turístico. Por essa razão, mesmo com a crise, o setor terciário de Cunha variou positivamente.

Plantação no bairro da Vargem Grande. Data: 2014. Foto: Facebook Bairro da Vargem Grande – Cunha – SP.

A outra parte do setor terciário, aquela ligada à administração pública, foi fundamental para estabilidade econômica do município, uma vez que esse funcionalismo não sofreu cortes no salário nem enfrentou demissões por causa da crise econômica desencadeada pela pandemia. Uma parte considerável dos cunhenses que possuem remuneração registrada são aposentados ou funcionários públicos municipais, estaduais e federais. A Prefeitura de Cunha, por exemplo, emprega diretamente mais de 600 pessoas.

O setor secundário de Cunha corresponde a apenas 5,3% do PIB municipal e é composto por pequenas indústrias alimentícias. Não sofreu queda, mas também não evoluiu economicamente no período. Já a agropecuária cunhense, marcada por sua característica familiar, sempre foi resiliente. Como não foi um setor atingido diretamente pelos impactos negativos pandemia, registrou um grande crescimento. Ou seria apenas uma consequência do aumento da fiscalização e do registro de produção?

Plantação de hortaliças em sistema hidropônico, na zona rural cunhense. Data: 2022.

O PIB per capita do município saltou de R$ 12.349 em 2019 para R$ 13.857,47 em 2020. Mesmo assim, caiu no ranking estadual. Ocupava a 631ª posição em 2019; em 2020, está na 634ª posição. De acordo com esse dado econômico, Cunha figura entre os municípios mais pobres do estado. São Paulo tem 645 municípios. Na média brasileira, o PIB per capita foi R$ 35.935,74; bem acima, portanto, do nosso PIB per capita municipal. Por fim, alerta o geógrafo britânico Ron Johnston (2009, p. 320) que “o PIB não é necessariamente uma medida válida de ‘saúde econômica’, uma vez que as consequências prejudiciais (por exemplo, sobre o meio ambiente) não são levadas em consideração. E sua melhoria nem sempre é sinal de crescimento real; por exemplo: o aumento dos gastos com policiamento poderia estimular o crescimento do PIB, mas não é nada mais que uma resposta a um aumento da criminalidade.”. E o PIB per capita é limitado como indicador econômico porque não considera uma condição básica da economia capitalista: a brutal desigualdade de renda que existe entre as classes sociais.

Referências:
FUNDAÇÃO SEADE. PIB paulista cresceu 0,4% em 2020, 10 mar. 2021. Disponível em: < https://informa.seade.gov.br/analise_pdf/pib-paulista-cresceu-2020/ >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. Nota técnica – PIB 2020. São Paulo: Fundação SEADE, 2022. Disponível em: < https://repositorio.seade.gov.br/dataset/1bd90672-72a8-47cb-a34d-ab9eb703735d/resource/c1b5063b-d6b9-4832-a8ee-9caad7ee2c85/download/nota-tecnica_pib_do_esp_2020.pdf >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. PIB por municípios do Estado de São Paulo – 2020. São Paulo: Fundação SEADE, 2022. Disponível em: < https://repositorio.seade.gov.br/dataset/1bd90672-72a8-47cb-a34d-ab9eb703735d/resource/13af6a0f-e731-4fc7-8664-73e57de8f465/download/pib-municipios-2020.xlsx >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. PIB para os municípios de São Paulo – 2019. São Paulo: Fundação SEADE, 2021. Disponível em: < https://repositorio.seade.gov.br/dataset/1bd90672-72a8-47cb-a34d-ab9eb703735d/resource/7a58161d-f687-4c15-8edf-0787a6b03245/download/pib-municipios-2019.xlsx >. Acesso em: 18 dez. 2022.
GREGORY, Derek et al. Dictionary of Human Geography. 5. ed. West Sussex (Reino Unido): Wiley-Blackwell, 2009.
IBGE. Produto Interno Bruto dos Municípios: Cunha. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/contas-nacionais/9088-produto-interno-bruto-dos-municipios.html?t=pib-por-municipio&c=3513603 >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. Produto interno bruto dos municípios 2020. Rio de Janeiro: IBGE / Coordenação de Contas Nacionais, 2022. Disponível em: < https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101990_informativo.pdf >. Acesso em: 18 dez. 2022.

Cunha: paisagem, meio ambiente e economia

Cunha vista da Serra da Bocaina. Foto: Pedro Máximo. Data: 2011.

A cidade de Cunha vista da Pedra Grande, na Serra da Bocaina, próxima à divisa com Silveiras. Está a 34 quilômetros em distância absoluta, na direção sudoeste. O interessante dessa perspectiva é que aparece a Serra do Alto do Diamante ao fundo, que está a cerca de 55 quilômetros de distância da Pedra Grande. Após essa serra, temos ainda o bairro do Sertão do Palmital e mais cerca de 5 Km (em termos absolutos) de terras cunhenses até se chegar ao limite com São Luís do Paraitinga, divisa formada com cotas altimétricas inferiores ao do Alto do Diamante e vertente do rio Paraibuna. A foto na perspectiva noroeste-sudoeste revela um pouco da extensão de nosso município, maior do Vale do Paraíba e o único no estado circundado por três 3 serras principais (além de outras ramificações), como é o caso do Alto do Diamante, do Alto Grande e do Campo Grande. Todas com picos ultrapassando os 1600 metros de altitude.

Cunha vista da Pedra Grande. Cotas altimétricas do IBGE (1973). Edição: Jacuhy.

O bairro Sertão do Palmital, ainda em 1970, completamente isolado de Cunha. Os moradores se serviam, quando podiam, de São Luiz do Paraitinga, via distrito de São Pedro da Catuçaba. Mesmo assim por trilhas acessíveis apenas a pé ou a cavalo.

Parte da carta hipsométrica das três serras. Fonte: IBGE, 1973.

Um dos morros da Serra desperta a nossa atenção por sua feição cônica, se assemelhando a um vulcão, o que obviamente não é e nem nunca foi. Trata-se de dois morros na verdade, mais pontiagudos e altos que os vizinhos que observados de longe, revelam esse contorno diferente. Essa Serra, aliás, pode ser melhor observada do Morro Grande, vide as fotos da “Estalagem Shambala” ou do loteamento recentemente aberto “Alpes de Cunha”.

Alto do Diamante e Campo Grande. Vista da Estalagem Shambala. Data: 2022.

Os morros que circundam a cidade de Cunha, e que parecem altos, praticamente se aplainam ante a imponência da Serra do Mar, que, como uma muralha, cerca o município nos limites de sudoeste a nordeste.

Vista da Serra do Campo Grande. Foto: Guto Felipe. Data: 2022.

Todo esse “Mar de Morros” é obra de milhões de anos de processos erosivos contínuos, consequência da ação do clima tropical sobre o relevo. As paisagens que temos hoje são heranças que a natureza nos legou e que devemos preservar para a posteridade.

Vista da Serra do Alto do Diamante. Foto: Rodrigo Leite. Data: 2012.

Por isso, o desmatamento incontrolável que nossa região passou nos últimos cem anos preocupa. Não só pelo aumento dos movimentos de massa e os riscos que eles trazem à segurança das pessoas e animais, além dos prejuízos, mas pela perda dos solos, um problema grave e ainda pouco abordado e tratado em Cunha. Sem solo não há agricultura, pecuária e nem vida. A aceleração dos processos erosivos e a retirada ilegal de mata ciliar levam ao assoreamento dos cursos d’água e ao desaparecimento da fauna fluvial. A retirada de mata no topo dos morros leva ao sumiço dos vertedouros. Toda ação humana gera algum impacto ambiental que, mais cedo ou mais tarde, acarretará algum impacto social.

O pouco que restou da nossa Mata Atlântica foi resultado da ação impositiva do Estado, que interveio na década de 1.970 para impedir o desaparecimento completo da cobertura vegetal, com a criação de duas unidades de conservação de proteção integral: Parque Nacional da Serra da Bocaina e Parque Estadual da Serra do Mar. Nunca partiu de nós, cunhenses, o devido cuidado com meio ambiente. É muito provável que sem as unidades de conservação, o pouco de verde que ainda restou já teria virado carvão, moirão, palanque, esteio, móveis, pasto etc. Até o nosso linguajar valida a visão antiecológica de ver árvores e matas como um problema. Chamamos de “pasto sujo” aquele que contém árvores e capoeirões espalhados pela herdade.

O desenvolvimento do turismo surge como uma esperança. Ao retirar do setor primário o sustento de muitas famílias e realocá-lo no terciário, ameniza a pressão sobre os recursos naturais do município. Ademais, a paisagem natural ou regenerada deixa de ser um “pasto sujo” e passa a ser valorizada. Valorizada no sentido financeiro mesmo, pois o turismo é uma atividade econômica que promove o consumo do espaço e das paisagens. Desde que não seja predatório ou privilégio de alguns empreendedores, o turismo pode ser uma das saídas para Cunha.

A pergunta que fica é: o que deixaremos para as futuras gerações? Mais do que esperar do Estado e atribuir responsabilidades a outrem, sempre é bom fazer um exercício de reflexão pessoal, focado na nossa ação no mundo. Cabe a nós, enquanto comunidade, buscar alternativas econômicas sustentáveis.

Referências:
AB’SÁBER, Aziz N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. 5 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
CRUZ, Rita de C. A. da. Introdução à geografia do turismo. 2. ed. São Paulo: Roca, 2003.
IBGE. Lagoinha: região sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1973. 1 carta topográfca, color., 4465 × 3555 pixels, 5,50 MB, jpeg. Escala 1:50.000. Projeção UTM. Datum horizontal: marégrafo Imbituba, SC, Datum vertical: Córrego Alegre, MG. Folha SF 23-Y-D-III-2.
O ESTADO DE S. PAULO. Palmital, um bairro isolado. 4 out. 1970, p. 42.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
VELOSO, João J. de O. O ambiente natural cunhense. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 1996.

Turismo em Cunha: cartografias, regionalizações etc.

O Lavandário e o pôr-do-Sol mais lindo do Brasil.

Faço aqui algumas breves considerações sobre a cartografia turística do município de Cunha e as regionalizações impostas pela Secretaria de Turismo de São Paulo e pelo Ministério do Turismo.

Cartografia

Mapa Turístico da Estância Climática de Cunha. Ano: 2009. Fonte: Prefeitura de Cunha (SP).

Esse mapa turístico de Cunha vem sendo reproduzido e impresso pela Prefeitura, com algumas alterações, desde o início deste século. Foi criado pelo designer cunhense Wagner Oliveira. Sem dúvida, é muito bonito e elegante, mas peca nos aspectos cartográficos. Prevalece os aspectos estéticos sobre os técnicos. A cidade de Cunha, como se nota, está ampliada e o restante que do plano, que cobre o município, está em escala menor. Esse tipo de representação acarreta muitas distorções e gera confusão em que lê esse mapa. Geralmente, quando se amplia parte de uma peça cartográfica, a representação em escala maior aparece fora do plano geral, no canto e/ou destacada, a fim de chamar a atenção e não iludir quem realiza a leitura. Ademais, os pontos turísticos de Cunha, diferente de Campos do Jordão, por exemplo, não estão concentrados no perímetro urbano, mas dispersos pela nossa extensa área rural. Desse modo, ainda que o objetivo dessa técnica seja permitir a localização dos pontos turísticos e empreendimentos turísticos dentro da cidade, acaba atrapalhando a localização dos lugares similares que estão na zona rural, já que, como escrevi, Cunha não tem seus pontos e empreendimentos turísticos concentrados na zona urbana. A falta de uma escala mais próxima à realidade, sobretudo nos trechos rurais, tem gerado muitas frustrações nos turistas que se guiam por esse mapa, quando percorrem os roteiros que haviam traçado.

Mapa Turístico da Estância Climática de Cunha. Ano: 2015. Fonte: CunhaTur.

Outro problema é a quantidade de informações que são apresentadas e representadas. Como o número de empreendimentos turísticos em nosso município vem aumentando a cada ano, à medida em que esses mapas são atualizados, ficam cada vez mais poluídos e carregados, o que compromete a leitura e a estética da peça gráfica. A solução pode estar na seleção das informações fornecidas ou na criação de um mapa digital para o turismo cunhense, através de um aplicativo para smartphone, por exemplo. Com os mapas digitais não só a atualização pode ser feita de maneira mais rápida e econômica, como a quantidade de informações pode ser resolvida com a criação de camadas selecionáveis, onde o próprio usuário pode decidir o que ele quer ver e localizar.

Mapa Turístico da Estância Climática de Cunha. Ano: 2019. Fonte: Prefeitura de Cunha (SP).

Regionalizações

Cunha era uma estância climática desde 1948. Foi a primeira do estado, antes até de Campos do Jordão. Na verdade, era para ser estância hidromineral devido às fontes da “Águas Virtuosas de Santa Rosa”. Mas, por pressões políticas de alguns deputados federais, insuflados pelos municípios que já gozavam desse “status” e acesso ao orçamento estadual, acabou se tornando uma estância climática (VELOSO, 1995, p. 12). Nessa batalha de Cunha atuaram dois políticos da época: deputado estadual Sebastião Carneiro da Silva (PSD), grande batalhador das causas valeparaibanas, e o governador Ademar de Barros (PSP), ex-combatente do serviço médico do Exército Constitucionalista, tendo servido na frente de Cunha. Na década de 1940, o dr. João Lellis Vieira, cunhense “da gema” e articulista do jornal “Correio Paulistano”, aproveitava o espaço que tinha para provocar Campos do Jordão, exclamando que Cunha, ao contrário daquela estância da Mantiqueira, era “climatericamente a Suíça Brasileira!”. Puro bairrismo. E um monólogo inócuo. Em nada abalou a reputação de Campos do Jordão, construída pelo próprio governo estadual, visando massagear o ego e ofertar um “plano B” para as quatrocentonas falidas, que já não dispunham de bufunfa para visitar a Suíça (de verdade) …

Mapa da Tipologia Turística das Estâncias Paulistas. Ano: 2017. Fonte: Companhia Paulista de Eventos e Turismo.

Em 2015, o artigo 7º, da Lei Complementar nº 1.261 do estado de São Paulo, que Estabelece condições e requisitos para a classificação de Estâncias e de Municípios de Interesse Turístico e dá providências correlatas”, prescreveu que “os municípios classificados por lei como Estâncias Balneárias, Hidrominerais, Climáticas e Turísticas passam a ser classificados como Estâncias Turísticas, sem prejuízo da utilização da terminologia anteriormente adotada, para efeito de divulgação dos seus principais atrativos, produtos e peculiaridades.” Assim, ainda que a Prefeitura de Cunha mantivesse a divulgação do título de “Estância Climática”, oficialmente passou a ser “Estância Turística”. Na parte que interessa à Municipalidade, o acesso à verba extra do orçamento estadual para fomentar o turismo local, nada mudou. Portanto, nenhum estardalhaço foi gerado. A questão que se pôs a partir de então foi como o Governo Estadual organizaria e enquadraria os municípios turísticos.

Mapa dos Segmentos Turísticos no Estado de S. Paulo. Ano: 2017. Fonte: Companhia Paulista de Eventos e Turismo.

Em um primeiro momento, a Secretaria de Turismo estadual lançou um documento para orientar as prefeituras sobre as mudanças ocorridas por força da nova lei. Assim, naquele momento, São Paulo estava dividido turisticamente em 15 macrorregiões e subdividido em 34 regiões turísticas englobando todos os 645 municípios paulistas (SÃO PAULO, 2015). Cunha pertencia à “Macrorregião do Vale do Paraíba” e à “Região Turística do Vale do Paraíba e Serras”. Basicamente, a Secretaria seguiu a regionalização histórica já existente, sem inventar moda. No mesmo documento, ao aprofundar a regionalização, a Secretaria criou os “Circuitos Turísticos”, uma sub-regionalização das regiões turísticas. Cunha, por sua vez, integrava, simultaneamente, o “Circuito Cultura Caipira”, junto com outros municípios do Alto Vale, e o “Roteiro do Vale Histórico”, junto com os municípios do “garoupas”. Essa regionalização era bastante condizente com a realidade e a história local, valorizando os aspectos culturais de Cunha e adjacências.

Cunha foi inserida dentro do segmento histórico e cultural, com destaque por sua cerâmica de alta temperatura nacionalmente conhecida. Fonte: Companhia Paulista de Eventos e Turismo. Ano: 2017.

A referida Lei Complementar reconhecia 13 segmentos de turismo: Social; Ecoturismo; Cultural; Religioso; Estudos e de Intercâmbio; de Esportes; de Pesca; Náutico; de Aventura; de Sol e Praia; de Negócios e Eventos; Rural; de Saúde. Sendo que Cunha estava segmentada dentro de uma região de turismo cultural, cuja definição, dada pela mesma lei é a que segue: “compreende as atividades turísticas relacionadas à vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais da cultura”. Ainda que não seja a melhor para descrever o turismo cunhense era mais condizente que o enquadramento dado, por exemplo, ao turismo religioso, que é definido assim: “configura-se pelas atividades turísticas decorrentes da busca espiritual e da prática religiosa em espaços e eventos relacionados às religiões institucionalizadas, independentemente da origem étnica ou do credo”. Entretanto, a partir de 2017, Cunha passou a integrar a “Região Turística da Fé”, junto com Aparecida, Cachoeira Paulista, Guaratinguetá etc. mesmo não sendo um centro de peregrinação religiosa como esses municípios.

Mapa dos Circuitos Turísticos Paulistas. Ano: 2016. Fonte: Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo.

O que se vê é que nem o próprio Governo conseguiu superar a utilização e categorização das estâncias (turísticas, climáticas e hidrominerais), ainda que oficialmente tenha sido proscrita. O termo “municípios turísticos” ou “estância turística” ainda não foi plenamente assimilado pelas pastas estaduais. E muito menos pelos municípios, empresários, guias e população em geral. Por óbvios motivos políticos e eleitorais, em 2016, uma lei estadual criou a categoria “Municípios de Interesse Turístico”, ampliando em mais 140 o número de municípios paulistas com acesso ao filão orçamentário para “incrementar o turismo”.

Interessante notar que até no site desenvolvido pelas prefeituras da Região Turística da Fé, a foto de Cunha na página inicial é a única não remete à religião ou às igrejas, apresentando a foto de uma das dezenas de cachoeiras do município na chamada da página inicial. Ainda que as festas religiosas de Cunha sejam seculares e possam atrair turistas, elas são expressões de fé da população local e não um evento de cunho turístico. São manifestações de fé genuínas e não eventos comerciais de fundo religioso. Talvez a única exceção dentro dessas manifestações seja a Festa de Sá Mariinha das Três Pontes, em cujo lugar há até um pequeno centro de apoio ao romeiro, mas ainda assim são romeiros de Cunha e adjacências que vistam o local, ou seja, devotos da própria região e que estão no mesmo meio cultural. Diferentemente de Aparecida, Cachoeira Paulista e Guaratinguetá, que são centros nacionais do Catolicismo, e atraem fiéis até de outros países e em contingentes impensáveis para as festas religiosas de Cunha.

A descrição para caracterização da Região Turística da Fé é ambígua. Vejamos: “A Região Turística da Fé se destaca como uma das mais belas do país, está localizada no eixo Rio x São Paulo entre as Serras da Mantiqueira, da Bocaina e do Mar. São 08 municípios no Vale do Paraíba que estão unidos pelo desenvolvimento do turismo regional: Aparecida, Cachoeira Paulista, Canas, Cunha, Guaratinguetá, Lorena e Piquete. Com um grande número de santuários e belezas naturais a região proporciona uma experiência única de fé, contemplação e atividades turísticas em meio das lindas paisagens de serras e rios nos mais variados tipos de turismo e seus atrativos: turismo religioso, turismo rural, turismo cultural, de esportes, de aventura, ecoturismo, negócios e eventos, náutico e gastronômico.” (grifo meu) (REGIÃO TURÍSTICA DA FÉ, 2020). Como se nota, não se sabe ao certo qual o tipo de turismo a desenvolver, porque uma coisa é atrair e acolher romeiros e outra coisa é desenvolver o ecoturismo. No encontro que culminou em um estatuto para os municípios integrantes da RT da Fé, afirmou-se que: “(…) muitos projetos possam acontecer na Rota da Fé, tanto focando a religiosidade regional, como investimentos na infraestrutura (…)” (grifo meu) (PREFEITURA DE APARECIDA, 2019). Ora, como Cunha focar seu investimento em eventos religiosos, se quase todas suas festas turísticas são laicas e comerciais?

Mapa das Regiões Turísticas do Estado de São Paulo. É o que está em vigor. Cunha aparece em outra região turística. Fonte: Secretaria de Turismo do Estado de S. Paulo. Ano: 2017.

Praticamente quase todos os tipos de turismo praticados no Brasil são citados como a ser desenvolvido pela Região Turística da Fé. É claro que a diversificação das atividades turísticas é desejável, mas no caso parece que os mentores municipais estão meio perdidos quanto aos objetivos e metas a serem traçadas. Ter colocado Cunha no meio desses municípios engrossou o caldo da confusão, sem dúvida. Quem dá enfoque em tudo acaba não priorizando nada. Não há nenhum elemento caracterizador, ainda que o turismo religioso preceda os demais e seja citado “um grande número de santuários”, para logo em seguida já destacar as “belezas naturais”, que uma caracterização tão genérica, que pode aparecer na descrição da maioria das regiões turísticas do mundo. O fato é que Cunha não conta com santuários e nem é visitada por motivos religiosos. Na página de Cunha, no site da Região Turística da Fé, até são citadas as festas religiosas, mas os destaques são para os campos de lavandas, cachoeiras e às festas ligadas ao clima serrano. Faria mais sentido, penso eu, alocar Cunha na região vizinha, do “Rios do Vale”, que engloba parte dos municípios do Alto Vale do Paraíba. Pelo menos em nosso território nasce o rio Paraibuna, no bairro da Aparição, e ganha corpo o rio Paraitinga, que desce da Serra da Bocaina. Associar a beleza natural a alguma ação contemplativa de fé em nosso município é um grande disparate, a menos que Cunha tenha algum centro de peregrinação xamânica e ninguém nos avisou de nada…

Não se pode criar regionalizações em gabinetes, desconsiderando a história e desenvolvimento de cada lugar. Canetadas de políticos não devem preceder e prevalecer sobre o trabalho científico de geógrafos e turismólogos.

Considerações finais

Atualmente, a maior parte das pessoas que visitam Cunha utiliza para encontrar os destinos almejados as plataformas cartográficas digitais, como o Google Maps (por exemplo), por serem mais simples, acessíveis e atualizadas. Acessíveis até certo ponto, convenhamos, já que em uma boa parte da zona rural de Cunha não há sinal de celular e, consequentemente, de internet. Entretanto, ainda que venha caindo em desuso e estejam condenados, os mapas turísticos impressos de Cunha precisam equilibrar os aspectos artísticos e técnicos na sua apresentação, tornando-se um instrumento de localização mais útil a quem se destina: os turistas.

Com relação à regionalização turística a que Cunha foi submetida, compete à Prefeitura, através de seu corpo técnico, e ao Conselho Municipal de Turismo de Cunha (COMTUR) questionar esse enquadramento alheio à realidade do turismo local: ao seu desenvolvimento e história, à sua tipologia e às potencialidades que apresenta. Inclusive, o planejamento turístico estadual aponta que um dos objetivos estratégicos para o setor é “promover a atuação articulada de agentes públicos e privados na implantação de empreendimentos e produtos turísticos nacionais ou internacionais, que aproveitem as vocações e potencialidades dos municípios e regiões do Estado de São Paulo.” (SÃO PAULO, 2020, p. 37). E ainda, no mesmo documento, estabelece que o “incentivo e valorização das iniciativas que fortaleçam a identidade local e regional dos destinos turísticos” e a modernização e ampliação das “estratégias de marketing e comunicação de destinos, produtos e serviços turísticos ofertados no Estado de São Paulo nos níveis municipal, regional, nacional e internacional” (SÃO PAULO, 2020, pp. 44-45) são estratégias prioritárias para fomentar o turismo paulista na próxima década. Trata-se de uma regionalização totalmente deslocada, no tempo e no espaço. E que pode comprometer nosso desenvolvimento turístico se for seguida e houver direcionamento de investimentos.

Cunha viveu nesse primeiro quinquênio da pavimentação completa da rodovia que liga a cidade a Paraty (RJ) um crescimento nunca visto do seu turismo. O fluxo cada vez maior de pessoas que se dirige às praias da Costa Verde fluminense e para o Litoral Norte paulista transformou nossas montanhas em vitrine e propaganda ininterrupta do lugar. É um outdoor vivo e verdadeiro dos dois lados da pista da rodovia SP-171. Entretanto, é preciso planejar e aprimorar as atividades turísticas que acontecem aqui, para gere renda e traga benefícios para todos os cunhenses e que seja sustentável, ecologicamente e financeiramente, nas próximas décadas.

Vídeo sobre a então Estância Climática de Cunha, produzido pela Aprecesp (Associação das Prefeituras das Cidades Estância do Estado de São Paulo), em 2012.

Referências:
CORRÊA, R. L. Região e organização espacial. 8. ed. São Paulo: Ática, 2007.
LIBAULT, A. Geocartografia. São Paulo: Companhia Editora Nacional / Editora da Universidade de São Paulo, 1975.
PREFEITURA DA ESTÂNCIA CLIMÁTICA DE CUNHA. Mapa Turístico de Cunha já está disponível aqui no site oficial da prefeitura, 22 jan. 2019. Disponível em: < http://www.cunha.sp.gov.br/noticias/mapa-turistico-de-cunha-ja-esta-disponivel-aqui-no-site-oficial-da-prefeitura/ >. Acesso em: 4 out. 2021.
PREFEITURA DE APARECIDA. Estatuto da Região Turística da Fé, 26 jul. 2019. Disponível em: < https://www.aparecida.sp.gov.br/portal/noticias/0/3/326/estatuto-da-regiao-turistica-da-fe >. Acesso em: 5 out. 2021.
REGIÃO TURÍSTICA DA FÉ. Conheça Cunha. Disponível em: < https://rtdafe.com.br/cunha/ >. Acesso em 4 out. 2021.
______. Sobre a região. Disponível em: < https://rtdafe.com.br/ >. Acesso em 4 out. 2021.
SÃO PAULO (Estado). LEI COMPLEMENTAR Nº 1.261, DE 29 DE ABRIL DE 2015. Estabelece condições e requisitos para a classificação de Estâncias e de Municípios de Interesse Turístico e dá providências correlatas. São Paulo (SP), abr. 2015. Disponível em: < https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei.complementar/2015/lei.complementar-1261-29.04.2015.html >. Acesso em: 5 out. 2021.
SÃO PAULO (Estado) / Secretaria de Turismo. Município de Interesse Turístico: cartilha de orientação de acordo com a Lei 1261/15. São Paulo: Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo, 2015. Disponível em: < https://www.turismo.sp.gov.br/publico/include/download.php?file=108 >. Acesso em: 4 ou. 2021.
______. Municípios Turísticos (Estâncias), 29 mai. 2017. Disponível em: < https://www.turismo.sp.gov.br/publico/noticia_tour.php?cod_menu=77 >. Acesso em: 9 out. 2021.
______. Mapa das Regiões Turísticas. 2017. Disponível em: < https://www.turismo.sp.gov.br/datafiles/suite/escritorio/aplicativo/conteudo/album_fotografico/782.jpg >. Acesso em 5 out. 2021.
______. TURISMO SP 20-30: Plano Estratégico de Desenvolvimento do Turismo do Estado de São Paulo – resumo executivo. São Paulo: SETUR, out. 2020. Disponível em: < https://www.turismo.sp.gov.br/datafiles/suite/escritorio/aplicativo/webdesign/abertura/Plano%20Turismo%20SP%2020-30%20site09dez2020.pdf >. Acesso em: 5 out. 2021.
SECRETARIA DE TURISMO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Tipologia Turística das Estâncias Paulistas – 2017. “Turismo em São Paulo”, TUR.SP – Companhia Paulista de Eventos e Turismo | Disponível em: < http://www.turismoemsaopaulo.com >. Acesso em: 11 jan. 2018.
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VELOSO, J. J. de O. O ambiente natural cunhense. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 1995.

Turismo cunhense posto em questão

Qual é modelo de turismo que Cunha deve adotar?

Cada feriado chuvoso (como este) só atesta e alardeia que o turismo, enquanto alternativa econômica para Cunha, não é, por enquanto, viável.

Pelo menos não nos moldes desse turismo que foi imposto aqui. Imposto porque não foi um modelo que partiu da coletividade, mas de grupos restritos e poucos criativos.

Queriam criar uma “nova Campos do Jordão”, mas o plano falhou. Não é porque ambas as cidades são estâncias climáticas que são do mesmo jeito, com as mesmas características.

Não deu certo porque as atividades econômicas estão atreladas a processos históricos. E cada cidade tem a sua própria história. A de Campos do Jordão, por exemplo, em grande parte foi construída pelas benesses do Governo Estadual; já em Cunha foi na base do improviso, isto é, ficou a cargo da Prefeitura Municipal. Ente omisso muitas vezes, diga-se. Um exemplo é a realização do primeiro Festival de Inverno, em 1993, iniciativa dos ceramistas e comerciantes. A Prefeitura foi coadjuvante. O turismo em Cunha começou na base do empurrão, pegando na base do tranco.

De 1948, quando Cunha se tornou (a muito custo) uma Estância Climática, até meados dos anos 1970, quando a Prefeitura começou a pensar que o turismo poderia ser uma alternativa econômica para a decadente agricultura cunhense, foram quase trinta anos perdidos. Tempo demais. Campos do Jordão já era conhecida nacionalmente e já era o destino de montanha preferido dos paulistanos. Enquanto plantávamos o milho, Campos do Jordão já estava comendo o bolão de fubá.

E o pior de tudo não foi ter saído atrás. É essa insistência em copiar o modelo de desenvolvimento turístico jordanense. Estamos condenados a correr sempre atrás do concorrente, sem poder alcançá-lo. Afinal, não apresentamos nada de diferente, apenas mais do mesmo. E em termos de qualidade, as atrações de Campos do Jordão são maiores e de melhor qualidade do que as nossas.

Uns podem argumentar que as atividades turísticas geram emprego e renda em Cunha, que há inúmeras pousadas que vêm se mantendo, que o número de visitantes vem aumentando etc. Mas a que preço?! Só o DADE (Departamento de apoio às estâncias do Governo Estadual) investe em Cunha mais de 1 milhão de reais todo o ano. O retorno não acompanha o montante investido. Se investíssemos esse dinheiro em outra atividade, não lograríamos melhor sorte?

Cunha jamais conseguirá se tornar uma cidade nos moldes de Campos de Jordão. Primeiro, porque passaram por processos históricos distintos e são culturalmente diferentes. Cunha ainda é um reduto da cultura caipira; Campos do Jordão é qualquer coisa, menos caipira. Apesar da história e da cultura não serem inalteráveis, não são fáceis e rápidas de serem mudadas. O que levou séculos para se formar não se desfaz em décadas ou anos.

Outra diferença, talvez a fundamental (e essencialmente geográfica), é a da distribuição espacial das atratividades. Enquanto Campos do Jordão apresenta suas atratividades concentradas na Vila Capivari e com uma dispersão restrita a sua área urbanizada; Cunha possui suas atratividades dispersas na extensão de seu enorme e acidentado território, sendo que os atrativos de sua área urbana nem sempre se coadunam aos fatos naturais/culturais que atraem os turistas para a área rural. Sem contar que essa dispersão exige uma infraestrutura adequada, a fim de garantir acessibilidade e o bem-estar necessário ao visitante.

Por uma questão histórica e geográfica, o turismo em Cunha está sendo um verdadeiro fiasco. Mas há alternativas? Sim, há. É preciso, antes de mais nada, abandonar o modelo jordanense. Buscar ou construir modelos alternativos, valorizar as nossas potencialidades, repensar os eventos desenvolvidos durante o ano, replanejar a questão turística (marketing, público-alvo, infraestrutura etc.), recalcular o preço das pousadas, bares e restaurantes etc. Enfim, começar do zero.

O difícil não é recomeçar do zero. A dificuldade é encontrar alguém disposto a pagar o preço de quatro décadas de uma política turística equivocada. Quem se habilita?

Texto publicado em 30 de abril 2012, no blog “Ritter & Humboldt”.

Livro “30 anos de cerâmica em Cunha”

Livro comemorativo sobre os 30 anos da chegada dos primeiros ceramistas a Cunha, produzido pelos protagonistas Mieko Ukeseki e Alberto Cidraes e com o apoio da CunhaTur e da Prefeitura de Cunha. A obra saiu em 2005, “Ano da Cerâmica em Cunha“, comemorado em função das três décadas passadas desde a instalação do primeiro forno Noborigama na Estância Climática.

Capa do livro editado e produzido sob a coordenação da ceramista Mieko Ukeseki.

O livro é um documentário sobre a cerâmica de alta temperatura desenvolvida em Cunha. Traz um relato histórico, com fotos e detalhes da chegada do primeiro grupo ceramistas, a introdução do forno oriental Noborigama (icônico) as razões de terem vindo parar aqui, uma das “cidades mortas” do Vale do Paraíba e a instalação do primeiro ateliê coletivo, no antigo e decrépito Matadouro Municipal, espaço cedido ao grupo de nômades (em processo de sedentarização) pelo ex-prefeito Zelão. Os progressos artísticos e experimentais de cada ceramista, culminando na conquista de novos espaços, com as aberturas de fornada, gérmen do turismo cunhense.

Há também uma breve biografia dos vários ceramistas instalados em Cunha no ano de 2005, apresentando juntamente algumas fotografias de peças artísticas produzidas pelas mãos, imaginação e sensibilidade talentosa de cada um. E não se esqueceram das paneleiras de Cunha. Mulheres hábeis no trato da argila, produtoras de peças utilitárias, cujo saber, transmitido de forma hereditária, remonta à ancestralidade dos povos originários.

Enfim, um interessante e necessário documentário, demonstrando como a “cidade morta” e barroca, perdida entre três cordilheiras, se transforma no maior polo da América do Sul de cerâmica de autor.

O livro pode ser lido on-line.

A chegada dos primeiros ceramistas a Cunha

Foto: Toshiyuki Ukeseki. Na foto: Mieko, Vicco e Cidraes a caminho de Cunha, no morro do Sapé, na Rodovia SP-171, 1975.

No dia 20 de abril de 1.975 chegava a Cunha um grupo de ceramistas formado por Mieko e Toshiyuki Ukeseki (japoneses), Alberto Cidraes (português) e os irmãos Vicente Cordeiro (Vicco) e Antônio Cordeiro (Toninho). No domingo em que encontraram Cunha, isolada entre três serras, comemorava-se o aniversário da cidade, naquele tempo celebrado no dia 20 de abril. O grupo, estranho ao jeito cunhense, logo atraiu a atenção dos moradores; entre eles, a da senhora Maria, que foi conversar com eles. Inquirindo-os, descobriu que procuravam um lugar tranquilo para se instalar e produzir cerâmica. Na condição de irmã do ex-prefeito Zelão (José Elias Abdalla), o enérgico político que buscava a todo custo promover o desenvolvimento turístico de Cunha, dona Maria levou-os até sua cunhada Maria Aparecida Núbile Abdalla (dona Cida), esposa do político, que mesmo no meio de autoridades que visitavam à cidade por ocasião de seu aniversário, conseguiu chamar a atenção do marido, que prometeu no dia seguinte arrumar um lugar para os forasteiros que tinham acabado de chegar. A Prefeitura não contava com muitas instalações disponíveis na época, e o único lugar que dona Cida cogitou, o antigo Matadouro Municipal, completamente abandonado e sujo, parecia inviável. Por sorte ou falta de opção, o grupo aceitou. A História de Cunha começaria a mudar…

Com muita dificuldade e muito improviso na base da experiência que já haviam adquirido, o grupo lutava e trabalhava para tornar o lugar habitável e para construir o forno para queima das peças. O tipo de forno escolhido, que até hoje caracteriza a cerâmica de Cunha, foi o Noborigama (“forno que sobe a montanha”, tudo a ver com a geografia cunhense), forma sofisticada do forno a lenha arcaico do Extremo Oriente, que chega a 1.400 graus centígrados e que é construído em aclives, aproveitando a inclinação do terreno. Matéria-prima havia em abundância: argila, eucalipto (para lenha), feldspato e caulim (para esmaltar as peças). A primeira fornada do antigo Matadouro saiu em dezembro de 1.975. Os ceramistas trabalharam juntos e queimaram no mesmo forno, levando as cerâmicas para fora da cidade para vendê-las. Os anos difíceis foram ficando para trás, mais ceramistas foram chegando, outros partiram, o turismo em Cunha foi crescendo, gente daqui começou a fazer cerâmica de alta temperatura… Hoje, no lugar do antigo Matadouro, a Prefeitura construiu a nova Casa do Artesão, um prédio amplo e bonito e que não guarda nenhuma relação com passado dos pioneiros da cerâmica de autor em Cunha.

Convém lembrar que em Cunha já havia ceramistas, no caso as “paneleiras” (como as famosas Nhá Núncia e dona Dita Paneleira), que faziam peças utilitárias, voltadas ao cotidiano dos moradores locais, cuja técnica remonta ao nosso passado indígena. Os ceramistas que chegaram sempre fizeram questão de respeitar e reverenciar essas mulheres que, assim como eles, aprenderam a moldar e solidificar a argila.

A concessão feita pela Prefeitura aos ceramistas-forasteiros se mostrou acertada. Já no final da década de 1980, o ateliê de Gilberto Jardineiro e Kimiko Suenaga inovou com a realização da “abertura de fornada”, evento organizado no espaço do próprio ateliê, que visava suprimir a relação do ceramista com o atravessador, trazendo o consumidor de cerâmica para dentro do espaço de produção, aumentando assim os preços das peças. Essa novidade, sempre muito concorrida, ajudou não só os ateliês da cidade, como também acabaria por servir de chamariz para Cunha, uma cidade ainda desconhecida do público da Grande São Paulo. Os frequentadores dos ateliês acabavam se tornando frequentadores de Cunha. Muitos gostaram tanto que acabaram adquirindo sítios por aqui.

Portanto, não é nenhuma surpresa que, entre os entusiastas do primeiro Festival de Inverno “Acordes na Serra”, realizado em 1.993, estivesse muitos ceramistas da cidade. A realização dos festivais de inverno foram um marco definitivo na história de Cunha, pois foi através deles que o nosso município assumiu a sua identidade turística e buscou desenvolver eventos que fizessem jus ao seu título de “Estância Climática”.

Filme institucional da Associação dos Ceramistas de Cunha (SP).

Em janeiro de 2009, foi criado, pelos ceramistas locais e outros agentes culturais, o Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha (ICCC), entidade que tem por objetivo ser a organização institucional do polo de cerâmica artística do município, promovendo o crescimento e a difusão da atividade cerâmica, ações educativas e culturais para a população local, enfim, uma instituição atuante e que está formando a próxima geração de ceramistas cunhenses. Atualmente está em tramitação no Senado Federal (Comissão de Educação, Cultura e Esporte) um Projeto de Lei (PL 7.772/2017), já aprovado pela Câmara dos Deputados, que confere o título de “Capital Nacional da Cerâmica de Alta Temperatura” à cidade de Cunha. O Projeto de Lei é de iniciativa da Deputada Federal Pollyana Gama (CIDADANIA/SP). Tendo em vista tudo o que representam para o turismo cunhense, a cerâmica, com o seu alto valor artístico, e os ceramistas, cientes do turismo como alternativa para uma economia agrícola decadente, mudaram a nossa História. Encerro com os dizeres da mulher que prontamente percebeu a importância daqueles artistas que pararam em Cunha naquele outono de 1.975, a visionária dona Cida (Maria Aparecida N. Abdalla), que em uma entrevista para o livro “30 anos de cerâmica em Cunha”, indagou: “Se não fosse por esses ceramistas, a história da cidade seria diferente. Como Cunha ia se tornar conhecida? E tem coisa mais bonita do que acontece aqui quando é dia de abertura de forno?”.

Referências:

ATELIÊ SUENAGA & JARDINEIRO. Cerâmica em Cunha. Disponível em: <http://www.ateliesj.com.br/&gt;, acesso em 19 abr. 2020.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PROJETO DE LEI Nº 7.772, DE 2017. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposic…/prop_mostrarintegra…&gt;, acesso em 19 abr. 2020.

CERAMISTAS DE CUNHA / CUNHATUR. 30 anos de cerâmica em Cunha. Cunha (SP): JAC Gráfica e Editora, 2005. Disponível em: < https://issuu.com/joaomak/docs/livro&gt;, acesso em 19 abr. 2020.

JORNAL HOJE, ano II, n. 15, jul/ago. de 1998.

MEMORIAL DA CERÂMICA DE CUNHA. Disponível em: < http://www.mecc.art.br/memorial.html&gt;, acesso em 19 abr. 2020.

Reportagem sobre alguns ceramistas de Cunha (TV Band Vale): https://fb.watch/5NnPuKi7wM/