PIB de Cunha cresce 11% em 2020

Setorização do PIB cunhense – 2020. Arte: Jacuhy.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou no dia 16 de dezembro de 2022 o Produto Interno Bruto (PIB) referente ao ano de 2020 de todos os municípios do Brasil. O intuito da instituição é “fornecer estimativas do Produto Interno Bruto – PIB dos Municípios, a preços correntes, e do valor adicionado bruto da Agropecuária, da Indústria, dos Serviços e da Administração, saúde e educação públicas e seguridade social, a preços correntes, compatível com as metodologias das Contas Regionais e Nacionais do Brasil, sendo as estimativas obtidas comparáveis entre si”; sendo portanto, um dado econômico relevante para o planejamento estatal, que permite verificar regiões e pontos com o avanços ou retrocessos econômicos no conjunto territorial do país. Ron Johnston (2009, p. 320) afirma que as estimativas do PIB são usadas para comparar o volume da atividade econômica ao longo do tempo e do espaço – seja em agregado ou per capita – mas para evitar complicações introduzidas pela inflação e flutuações da taxa de câmbio, elas devem ser convertidas em uma base comum.

A divulgação dos dados referentes ao PIB dos municípios em 2020 era aguardada, pois foi um ano atípico, marcado pelo alastramento do COVID-19 e a consequente paralização de diversas atividades econômicas, em virtude da emergência sanitária. O tamanho do impacto da pandemia sobre a economia tem sido objeto de debate entre os economistas. À medida em que os dados vêm sendo divulgados, foi possível perceber que os setores mais impactados pela pandemia foram o de alojamento e alimentação; serviços domésticos; transporte, armazenamento e correio; artes, cultura, esporte e recreação e outras atividades de serviços. Segundo o IBGE, “os resultados de 2020 evidenciam que os efeitos da pandemia de COVID-19 sobre as economias municipais variaram de acordo com a importância das suas atividades de Serviços, sobretudo as presenciais. Isto porque estes serviços agregam as atividades com as maiores quedas de participação no País entre 2019 e 2020, sendo as mais afetadas pelas medidas restritivas de isolamento e precaução de contágio por parte das famílias adotadas durante o ano.”. Todavia, os economistas e técnicos de planejamento têm alertado para a interpretação econômica do PIB dos municípios em 2020 e pedido cautela, pois foi um “ano em que a crise sanitária provocada pela Covid-19 trouxe grandes desafios para a mensuração da atividade econômica”, conforme consta na “Nota técnica – PIB 2020”, emitida pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), órgão do Governo de São Paulo.

A região do Vale do Paraíba Paulista foi diretamente impactada pela pandemia e viu seu PIB regredir em relação a 2019. O PIB regional recuou de 131,6 bilhões de reais em 2019 para 122,6 bilhões de reais em 2020. Uma variação negativa de 6,87% no volume. Os grandes centros econômicos de nossa região, São José dos Campos e Taubaté, ficaram entre os municípios que mais perderam participação PIB do Brasil em 2020, o que demonstra o grave impacto causado pela pandemia sobre a economia regional. O PIB do estado de São Paulo avançou 0,4% no mesmo período. Cunha não sofreu o mesmo impacto econômico.

O PIB de Cunha avançou de 267,7 milhões de reais em 2019 para 297,3 milhões de reais em 2020, agregando assim quase 30 milhões de reais de um ano para o outro, uma variação de volume de 11,05%. Desde que o IBGE começou a mensurar os PIB dos municípios, em 2002, na metodologia que utiliza até agora, Cunha nunca registrou decréscimo. Com esse resultado, a taxa participação econômica do município no PIB estadual teve um pequeno aumento. Era de 0,0114% em 2019 e foi para 0,0125% em 2020. No ranking estadual, Cunha é apenas 365ª maior economia.

Evolução do PIB de Cunha (2002-2020). Fonte: IBGE, 2022.

Ao se fazer um recorte setorial no PIB de Cunha, percebe-se que o setor que alavancou esse crescimento, mesmo diante do cenário de crise econômica, foi o primário. A agropecuária cunhense teve uma variação positiva de 54%, passando a responder por 12,9% do PIB cunhense (era 9,3% em 2019). Cunha é o maior produtor de leite de São Paulo e possui o maior rebanho bovino do Vale do Paraíba Paulista.

O setor hoteleiro e de alimentação foi duramente atingido pelas restrições sanitárias e de circulação implementadas para deter o avanço do COVID-19. Em Cunha não foi diferente. Medidas restritivas foram tomadas pela Municipalidade para preservar a saúde da população e tentar frear o avanço das infecções por coronavírus. Eventos foram cancelados. Pousadas foram temporariamente fechadas e restaurantes só puderam funcionar com entregas em domicílio. O turismo, hoje uma importante atividade econômica de Cunha, foi o mais impactado pela pandemia. Por outro lado, muitas pessoas deixaram a Região Metropolitana de São Paulo e se refugiaram em suas casas de veraneio e sítios na zona rural cunhense, na esperança de não serem infectados. Essa migração sanitária, esse êxodo urbano temporário, certamente aqueceu o comércio local e o setor de serviços, compensando as perdas do setor turístico. Por essa razão, mesmo com a crise, o setor terciário de Cunha variou positivamente.

Plantação no bairro da Vargem Grande. Data: 2014. Foto: Facebook Bairro da Vargem Grande – Cunha – SP.

A outra parte do setor terciário, aquela ligada à administração pública, foi fundamental para estabilidade econômica do município, uma vez que esse funcionalismo não sofreu cortes no salário nem enfrentou demissões por causa da crise econômica desencadeada pela pandemia. Uma parte considerável dos cunhenses que possuem remuneração registrada são aposentados ou funcionários públicos municipais, estaduais e federais. A Prefeitura de Cunha, por exemplo, emprega diretamente mais de 600 pessoas.

O setor secundário de Cunha corresponde a apenas 5,3% do PIB municipal e é composto por pequenas indústrias alimentícias. Não sofreu queda, mas também não evoluiu economicamente no período. Já a agropecuária cunhense, marcada por sua característica familiar, sempre foi resiliente. Como não foi um setor atingido diretamente pelos impactos negativos pandemia, registrou um grande crescimento. Ou seria apenas uma consequência do aumento da fiscalização e do registro de produção?

Plantação de hortaliças em sistema hidropônico, na zona rural cunhense. Data: 2022.

O PIB per capita do município saltou de R$ 12.349 em 2019 para R$ 13.857,47 em 2020. Mesmo assim, caiu no ranking estadual. Ocupava a 631ª posição em 2019; em 2020, está na 634ª posição. De acordo com esse dado econômico, Cunha figura entre os municípios mais pobres do estado. São Paulo tem 645 municípios. Na média brasileira, o PIB per capita foi R$ 35.935,74; bem acima, portanto, do nosso PIB per capita municipal. Por fim, alerta o geógrafo britânico Ron Johnston (2009, p. 320) que “o PIB não é necessariamente uma medida válida de ‘saúde econômica’, uma vez que as consequências prejudiciais (por exemplo, sobre o meio ambiente) não são levadas em consideração. E sua melhoria nem sempre é sinal de crescimento real; por exemplo: o aumento dos gastos com policiamento poderia estimular o crescimento do PIB, mas não é nada mais que uma resposta a um aumento da criminalidade.”. E o PIB per capita é limitado como indicador econômico porque não considera uma condição básica da economia capitalista: a brutal desigualdade de renda que existe entre as classes sociais.

Referências:
FUNDAÇÃO SEADE. PIB paulista cresceu 0,4% em 2020, 10 mar. 2021. Disponível em: < https://informa.seade.gov.br/analise_pdf/pib-paulista-cresceu-2020/ >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. Nota técnica – PIB 2020. São Paulo: Fundação SEADE, 2022. Disponível em: < https://repositorio.seade.gov.br/dataset/1bd90672-72a8-47cb-a34d-ab9eb703735d/resource/c1b5063b-d6b9-4832-a8ee-9caad7ee2c85/download/nota-tecnica_pib_do_esp_2020.pdf >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. PIB por municípios do Estado de São Paulo – 2020. São Paulo: Fundação SEADE, 2022. Disponível em: < https://repositorio.seade.gov.br/dataset/1bd90672-72a8-47cb-a34d-ab9eb703735d/resource/13af6a0f-e731-4fc7-8664-73e57de8f465/download/pib-municipios-2020.xlsx >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. PIB para os municípios de São Paulo – 2019. São Paulo: Fundação SEADE, 2021. Disponível em: < https://repositorio.seade.gov.br/dataset/1bd90672-72a8-47cb-a34d-ab9eb703735d/resource/7a58161d-f687-4c15-8edf-0787a6b03245/download/pib-municipios-2019.xlsx >. Acesso em: 18 dez. 2022.
GREGORY, Derek et al. Dictionary of Human Geography. 5. ed. West Sussex (Reino Unido): Wiley-Blackwell, 2009.
IBGE. Produto Interno Bruto dos Municípios: Cunha. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/contas-nacionais/9088-produto-interno-bruto-dos-municipios.html?t=pib-por-municipio&c=3513603 >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. Produto interno bruto dos municípios 2020. Rio de Janeiro: IBGE / Coordenação de Contas Nacionais, 2022. Disponível em: < https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101990_informativo.pdf >. Acesso em: 18 dez. 2022.

Cunha: maior produtora paulista de leite

Fazenda Aracatu, uma das inúmeras propriedades rurais de Cunha que produzem leite e queijo. Foto: Fazenda Aracatu.

Os resultados do Censo Agropecuário de 2017, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostraram que o município de Cunha é o maior produtor de leite do estado de São Paulo, com uma produção anual de 32,5 milhões de litros, sendo seguido por Araras. Estima-se que o total produzido seja bem maior que o apurado pelo Censo, já que muitos produtores declaram uma quantidade inferior à sua real produção. A produção estadual de leite chega a 1,5 bilhão de litros. De qualquer forma, o resultado municipal evidencia a importância da pecuária leiteira para economia local e a necessidade do governo estadual de investir na pecuária cunhense, visando aumentar a produtividade, a qualidade do leite e a melhora do plantel, já que é o maior produtor estadual de leite, mas a baixa produtividade é um desafio a ser superado.

Cunha possui o 6º maior efetivo de rebanho bovino do estado, com 75.347 cabeças, sendo o maior da região do Vale do Paraíba paulista. A liderança estadual fica com Mirante do Paranapanema, município da região de Presidente Prudente, na divisa com o Paraná, com 101 mil cabeças de gado. Além da produção total, nosso município ocupa a liderança no ranking estadual em número de vacas ordenhadas (13.951 cabeças), no valor obtido com a produção de leite de vaca (35,8 milhões de reais) e no número de estabelecimentos agrícolas que se dedicam à pecuária leiteira (1.281 unidades). Aliás, a maioria (61%) das propriedades rurais locais são voltadas, pelo menos em parte, à produção de leite, uma que vez que as duas modalidades de pecuária (leite e corte) ocorrem de maneira simultânea, em consórcio, nos minifúndios de Cunha.

Ao analisar o resultado desse último recenseamento agrícola, é possível perceber que Cunha é, ao lado de Mirante do Paranapanema, o município que possui a mais forte agricultura familiar do estado, devido à grande quantidade de estabelecimentos agrícolas (o maior número do estado, com 2.287 unidades de produção), à equânime estrutura fundiária (área média dos estabelecimentos é de 35,5 hectares) e à diversidade produtiva, ainda que em pequena escala, de cada unidade agrícola. A ocorrência de víveres, de equinos e muares e de plantações de hortifrutis em quase todos os sítios e pequenas fazendas evidenciam que em Cunha o modo de produção caipira, típico do interior paulista, ainda resiste e persiste em pleno século XXI. Por agricultura familiar entende-se que é aquela onde a gestão da propriedade é compartilhada pela família e a atividade produtiva agropecuária é a principal fonte geradora de renda da propriedade, sendo diferenciada da agricultura comercial pelo Decreto Federal nº 9.064, de 31 de maio de 2017. Como se nota, a agricultura familiar é uma força econômica do nosso município, precisando ser mais apoiada por todas as esferas do poder público, para que possa garantir renda, emprego e permanência à população rural. A produção captada por laticínios e cooperativas inspecionadas pelos serviços oficiais chega a 23 milhões de litros por ano. Mas nem todas as propriedades produtoras possuem certificação sanitária ou vendem leite para laticínios regularizados.

Outra questão relacionada à pecuária leiteira em nosso município é a produção artesanal de queijo (frescal, muçarela, nozinho, provolone etc.), que ocorre em fabriquetas espalhadas por diversos bairros rurais. A Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável Regional (CDRS) de Guaratinguetá estima, por exemplo, que o processamento artesanal do leite cunhense chega a atingir cerca de mil propriedades, com produção de cerca de 30 mil litros de leite diários. Apesar de não serem registradas e muitas não contarem nem mesmo com o SIM (Serviço de Inspeção Municipal), trata-se de uma atividade que é sustento de muitas famílias rurais e de pequenos pecuaristas que não são cooperativados e que vendem sua produção a essas fábricas artesanais. As queijarias artesanais buscam a regularização de sua produção, visando receber certificação sanitária dos órgãos competentes, para que possam comercializar com tranquilidade e legalmente seus queijos em Cunha e em outros lugares. Para tanto, organizaram uma associação e buscam apoio junto à Prefeitura de Cunha, visando receber apoio técnico e político para alcançar as certificações exigidas pelos organismos sanitários e de controle, buscando, desse modo, equivaler o SIM, de abrangência no território municipal, ao Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISBI/POA), certificação federal. Uma vez reconhecida essa equivalência do SIM com o Serviço de Inspeção Federal (SIF), garante-se oficialmente a segurança dos alimentos produzidos em Cunha e possibilita a venda dos queijos feitos aqui para todo o território nacional. Apesar de desconsiderada nas estatísticas oficiais, a produção desses pequenos laticínios familiares não é pequena. Recentemente, inclusive, a produção artesanal e familiar de queijo em Cunha, bem como as reivindicações dos produtores, foi tema de reportagem do canal Terra Viva. O queijo de Cunha já conquistou muitos paladares, resta conquistar o aval da burocracia federal.

A intensa geada de julho mudou a cor da paisagem rural de Cunha e deve trazer prejuízos à produção de leite. Local: bairro do Encontro – Cunha – SP. Data: julho, 2021.

Apesar da liderança estadual, os pecuaristas de Cunha devem passar por dificuldades em 2021. O inverno por si só, pela falta de chuvas, já faz a produção diária de leite despencar, encarecendo o preço do produto nas prateleiras (Lei da Oferta e da Procura). Só que este ano, além da estiagem e do aumento dos insumos produtivos, a intensidade da geada deve afetar a produção de leite e trazer prejuízos aos retireiros. A paisagem rural cunhense mudou de cor, passou de verde a castanho, após as últimas geadas. Os pastos foram tostados pelo congelamento do orvalho. Sem pastagem, os produtores rurais devem recorrer à compra de silagem ou comprar ração industrializada para alimentação do rebanho, o que deve encarecer a produção e aumentar o preço do leite e seus derivados aos consumidores. As dificuldades para o produtor rural cunhense são muitas (como sempre foram), mas a resiliência é a marca dessa gente que, com trabalho pertinaz, tudo supera. E prevalece. Sorte a nossa, pois sem produção não há comida.

Fontes:

CANAL TERRAVIVA. De Cunha-SP para o Brasil: Produtores buscam venda do queijo para fora do município. Youtube, 19 fev. 2021. Disponível em: < https://youtu.be/pykJ-G3Zvps >. Acesso em: 3 ago. 2021.
IBGE. Censo Agropecuário 2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2017. Disponível em: < https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/ >. Acesso em: 3 ago. 2021.
SECRETARIA de Agricultura apoia a produção de queijo dos laticínios de Cunha. Governo do Estado de São Paulo, 9 abr. 2020. Disponível em: < https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/secretaria-de-agricultura-apoia-a-producao-de-queijo-dos-laticinios-de-cunha/ >. Acesso em: 8 ago. 2021.

Área ocupada por eucalipto no Vale do Paraíba aumentou mais de 300% nos últimos 30 anos

Plantação de eucalipto. Foto: MST. Data: 2015.

Estudo coordenado por Carlos Cesar Ronquim, engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Territorial, apontou que a área ocupada por eucalipto no Vale do Paraíba, em sua porção paulista, saltou de 35.200 hectares em 1.985 para 113.600 hectares em 2.015, ocupando uma área equivalente ao município de São José dos Campos, o segundo maior de nossa região. Um aumento de 323% ao longo de 30 anos. Em 1.985, 2,5% da área total da nossa região estava ocupada por eucaliptos. Em 2.015, esse percentual chegava aos 8,1% da total área do Vale do Paraíba paulista. Esse aumento se reflete na paisagem regional. Todos os habitantes adultos do Vale, os nativos daqui pelo menos, já perceberam esse aumento explicito e visível nos seus lugares e municípios, principalmente a partir das primeiras décadas do século XXI. Seria o eucalipto o novo café?

Mapa do uso e ocupação do solo do Vale do Paraíba paulista em 1985. Autores: RONQUIM e COCHARSKI. Fonte: EMBRAPA, 2016.

O aumento da área ocupada pela silvicultura de eucalipto foi acompanhado pela queda das áreas ocupadas por pastagem, solo exposto e atividades agrícolas, conforme pode ser verificado nos mapas que ilustram este artigo. A área ocupada por pastagem ainda ocupa a liderança, com 652.600 hectares, correspondendo em termos relativos a 46,7% do total. Todavia, há 30 anos correspondia a cerca de 68% da área total da região, o que demonstra o quanto o ambiente natural estava degradado pela pecuária e agricultura extensiva tradicional. A área com solo exposto sofreu uma ligeira queda, caindo de 3,7% para 3,3% em 2.015, uma diminuição de 5.500 hectares. É uma constatação positiva, pois a exposição do solo é um agravante ambiental, porque geralmente desencadeia processos erosivos, lixiviação etc. Por fim, a área ocupada por atividades agrícolas também retraiu, saindo de 51.300 hectares em 1.985 para 36.500 em 2.015. Em termos relativos ocupava 3,6% da área total e em 2.015 passou a ocupar 2,6%. Forte indicar que o ciclo agrícola do Vale está em franco declínio, incapaz de concorrer com outras áreas do Brasil, onde impera uma agricultura mecanizada, com produção em larga escala e voltada à exportação.

O retraimento das áreas de pasto e plantação foi sucedido por um aumento da ocupação por matas nativas. Um salto de 249.500 hectares em 1.985 para 455.200 hectares em 2.015. Assim, a cobertura florestal sobre a nossa região aumentou de 17,8% em 1.985 para 32,6% em 2015. Uma constatação auspiciosa e que indica que nem só de más notícias vive a Mata Atlântica. Com o progressivo aumento regional das taxas de urbanização, a área ocupada por construções também aumentou de 38.500 hectares para 63.600 hectares, chegando a uma ocupação de 4,6% da área total do Vale em 2.015. O aumento da mancha urbana das urbes valeparaibanas se dá pelo crescimento da população citadina e pelo forte êxodo rural, que ainda não se esgotou em nossa região. Esvaziam-se os campos; incham-se as cidades. Um reflexo da situação nacional em escala regional.

Mapa do uso e ocupação do solo do Vale do Paraíba paulista em 2015. Autores: RONQUIM e COCHARSKI. Fonte: EMBRAPA, 2016

O esvaziamento do campo valeparaibano paulista pode ser um dos fatores que levou ao aumentou da cobertura de mata nativa, indicando uma regeneração dos pastos sujos que, em 1985, correspondiam a 390.600 hectares, ou 27,9% da área total regional. A queda da quantidade das áreas agrícolas também se relaciona com o declínio da agricultura familiar na região e ao êxodo rural. Além do mais, principalmente nos municípios do Alto Vale do Paraíba, as propriedades agrícolas têm adquirido novas funções. Muitas se converteram em sítios de veraneio para pessoas advindas da Região Metropolitana de São Paulo. Outras têm se convertido em lugares para consumo do espaço, com a incipiente, mas promissora atividade turística regional (com exceção de Campos do Jordão, que já é um polo turístico há muitas décadas), com as práticas ecoturismo e turismo rural, que valorizam a existência de mata nativa e torna esse tipo de cobertura do solo um fator de agregação de valor. Há também um aumento da patrulha da Polícia Militar Ambiental, mas essa ação repressiva nunca gerou consciência, apenas medo e desconfiança, além de dividendos para o Estado, com as pesadas multas que aplicam.

O avanço do eucalipto se dá no mesmo contexto, mas parece ser causa do êxodo e não consequência. Essa cultura comercial avança no rastro de estagnação econômica deixado pelas atividades ligadas à agricultura familiar e à pecuária extensiva, cada vez menos lucrativas e cada vez mais inviáveis para as pessoas da roça. É impossível os agricultores e pecuaristas do Alto Vale, adeptos de técnicas rudimentares, competirem com os agricultores e pecuaristas de outras regiões do Brasil, que incorporam técnicas modernas, mecânicas e automatizadas na produção. Diante desse cenário, há um barateamento da propriedade agrícola regional, tornando-a interessante às grandes empresas de papel e celulose do Brasil, pois a região possui uma excelente localização, possui vasta malha rodoviária e está entre as duas maiores metrópoles do país e relativamente próxima aos centros industriais e aos portos. Uma vez adquiridas, sempre de vários proprietários do mesmo bairro e ao mesmo tempo, com intuito de pressionar – de forma covarde – os mais proprietários mais resistentes, ocorre a expulsão da população local, pondo fim à existência do bairro rural. Cria-se um verdadeiro “deserto verde”, levando a antiga propriedade familiar, passada de geração a geração, e que atendia ao mercado local e às necessidades familiares, a atender às demandas do mercado internacional, se articulando e se organizando a partir de uma lógica exógena e desvinculada totalmente do lugar. A celulose é um dos produtos de exportação do Brasil e sua venda tem sido destinada principalmente para a Rep. Popular da China, EUA e Países Baixos. Não é à toa que na vizinha São Luiz do Paraitinga (SP) já existe um movimento local de resistência ao avanço desenfreado da eucaliptocultura, causadora de impactos ambientais, sociais e na saúde do povo da roça, devido ao uso indiscriminado de formicidas e outros agrotóxicos em larga escala.

Afinal, quem realmente ganha com o avanço das plantações de eucalipto? A população do lugar eu sei que não é. Para os boias-frias, que são contratados de maneira precária por empresas terceirizadas a fim de realizar o plantio, o controle de pragas e a limpeza dos pés de eucalipto, eu aposto que não também. Já a Votorantim Celulose e Papel (VCP) e a Suzano Papel e Celulose eu tenho certeza que sim. Quem mais?

Ou as saúvas acabam com os eucaliptos, ou as empresas de eucalipto vão acabar com todo universo caipira da região. Vida longa às saúvas!

Referências:

BARROS, C. J. Eucalipto avança em São Luiz do Paraitinga e gera reações. Repórter Brasil, 9 jul. 2009. Disponível em: < https://reporterbrasil.org.br/2009/07/eucalipto-avanca-em-sao-luiz-do-paraitinga-e-gera-reacoes/ >. Acesso em 21 jun. 2021.

BUENO, S. Exportação de Celulose. Fazcomex, 13 jan. 2021. Disponível em: < https://www.fazcomex.com.br/blog/exportacao-de-celulose/ >. Acesso em 21 jun. 2021.

RONQUIM, C. C.; COCHARSKI, T. C. D. Uso e ocupação do solo, Vale do Paraíba do Sul, 1985. 1 mapa. Color. Escala 1: 250.000. Campinas (SP): Embrapa Monitoramento por Satélite, 2016. Disponível em: < https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1065875/uso-e-ocupacao-do-solo-vale-do-paraiba-do-sul-1985 >. Acesso em 21 jun. 2021.

______ . Uso e ocupação do solo, Vale do Paraíba do Sul, 2015. 1 mapa. Color. Escala 1: 250.000. Campinas (SP): Embrapa Monitoramento por Satélite, 2016. Disponível em: < https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1065878/uso-e-ocupacao-do-solo-vale-do-paraiba-do-sul-2015 >. Acesso em 21 jun. 2021.

RONQUIM, C. C. (Coord.). GeoVale: análise da distribuição geoespacial e de aspectos ambientais da eucaliptocultura na bacia do Rio Paraíba do Sul. Embrapa Territorial, dez. 2016. Disponível em: < https://www.embrapa.br/busca-de-projetos/-/projeto/205528/geovale–analise-da-distribuicao-geoespacial-e-de-aspectos-ambientais-da-eucaliptocultura-na-bacia-do-rio-paraiba-do-sul >. Acesso em 21 jun. 2021.

Estudo aponta recuperação da Mata Atlântica no Vale do Paraíba

Fonte: Pesquisa FAPESP.

Por Pesquisa FAPESP

Após séculos de degradação, a Mata Atlântica mostra sinais inequívocos de recuperação no Vale do Paraíba, no caminho entre Rio de Janeiro e São Paulo. Nos últimos 50 anos, a vegetação nativa mais que dobrou. Em 1962, a área de Mata Atlântica se estendia por pouco mais de 200 mil hectares. Em 1995 esse número subiu para 350 mil hectares e, em 2011, para cerca de 450 mil hectares, o equivalente a 30% do território paulista do Vale do Paraíba. A reconstituição gradual e espontânea de parte da floresta parece ser resultado de uma convergência de fatores sociais, econômicos e ambientais, desencadeados a partir da década de 1950, conforme verificou o biólogo Ramon Felipe Bicudo da Silva, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas (Nepam-Unicamp), em uma pesquisa de doutorado sob orientação do biólogo Mateus Batistella, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e do antropólogo Emílio Moran, da Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos.

“A Mata Atlântica no Vale do Paraíba passa por um processo conhecido como transição florestal, quando há uma mudança nas características de uso da terra, saindo de um período de constante redução da vegetação nativa para outro de expansão natural das florestas originais”, explica Ramon. “Ali, a transição está relacionada ao abandono de áreas de topografia incompatível com a agricultura mecanizada, a projetos de preservação ambiental envolvendo o cultivo de eucalipto e à migração das populações rurais para grandes centros urbanos.” As conclusões se baseiam em imagens do satélite Landsat 5, em dados sobre o desenvolvimento industrial da região e em entrevistas com produtores rurais, pesquisadores de universidades, representantes de organizações não governamentais (ONGs) e de órgãos de governo.

Desde a colonização portuguesa, a Mata Atlântica foi submetida a longos períodos de uso intensivo e desregulado da terra. Foi assim à época da extração do pau-brasil e do cultivo de cana-de-açúcar, entre os séculos XVI e XVIII, passando pelos ciclos do ouro e do café e, mais recentemente, pela pecuária e expansão urbana. Hoje, a área de mata, que já ocupou mais de 1 milhão de quilômetros quadrados (km2) espalhados por 17 estados brasileiros, reduz-se a singelas manchas florestais de cerca de 50 hectares cada, segundo o último Atlas de remanescentes florestais da Mata Atlântica, da Fundação SOS Mata Atlântica e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A porção de floresta no Vale do Paraíba foi uma das mais atingidas. A região se tornou em fins do século XIX o eixo entre os dois maiores centros metropolitanos do país. A partir da década de 1920, começou a passar por um intenso processo de industrialização, consolidado com a inauguração da rodovia Presidente Dutra nos anos 1950 e a criação do complexo tecnológico-industrial aeroespacial de São José dos Campos. Ao analisar dados históricos e levantamentos estatísticos feitos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os pesquisadores constataram que a urbanização da região, somada à perda de produtividade das pastagens, desencadeou um intenso fluxo de habitantes da zona rural rumo aos centros econômicos e industriais do Vale do Paraíba, como as cidades de Taubaté e São José dos Campos. “À medida que a industrialização e a urbanização se intensificaram, mudanças nas forças sociais e econômicas estimularam o abandono das terras agrícolas, sobretudo em áreas mais acidentadas”, explica Ramon. Alguns habitantes da região permaneceram em suas propriedades, mas deixaram de usá-las para a atividade agropecuária, passando a trabalhar nas cidades. “Esse tipo de fenômeno ajudou a criar as condições ideais para a regeneração natural da floresta”, comenta o biólogo Ricardo Ribeiro Rodrigues, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), especialista em recuperação florestal.

Entre as décadas de 1960 e 1980, a atividade agropecuária no Vale do Paraíba diminuiu 13%, o que contribuiu para a estagnação dos índices de desmatamento na região. Desde então, a Mata Atlântica iniciou um processo espontâneo de regeneração. Muitas terras abandonadas se converteram em pequenos bosques de vegetação secundária, resultando em um aumento da cobertura florestal.

Podcast: Ramon Felipe Bicudo da Silva

Para Emilio Moran, os resultados reforçam estudos que verificaram processos pontuais de regeneração natural da Mata Atlântica em outras regiões do Brasil. Um deles é um levantamento da SOS Mata Atlântica e do Inpe que registrou um total de 219 mil hectares de Mata Atlântica em recuperação em regiões antes ocupadas por pastagens em nove estados brasileiros, de 1985 a 2015. Esse fenômeno também foi observado em outros países. Em Indiana, nos Estados Unidos, parte da vegetação nativa no sul do estado foi convertida em cultivo de milho e soja em fins do século XIX, restando pouco mais de 5% da cobertura florestal original. “A produção depois migrou para áreas mais adequadas para o cultivo dessas culturas no norte do estado e, ao longo de quase um século, a vegetação se regenerou, dando origem ao que hoje são reservas estaduais”, explica Moran. Mais recentemente, em Medellín, na Colômbia, constatou-se que a vegetação nativa em áreas antes controladas pelo narcotráfico e usadas para a plantação de coca começaram a se regenerar após o fim dos conflitos armados naquela região do país.

PRODUÇÃO DE EUCALIPTO

Os pesquisadores também observaram que a regeneração florestal havia sido mais acentuada em áreas próximas a remanescentes florestais originais e em terrenos menos aptos à agricultura, próximos a escarpas e ribanceiras. “As áreas antes usadas como pastagem contribuíram com cerca de 75% para as novas áreas florestais nas últimas décadas no Vale do Paraíba”, afirma Mateus Batistella, da Embrapa. Também houve um aumento considerável de vegetação nativa em áreas hoje usadas para a plantação de eucalipto. A produção dessa árvore costuma ser associada à degradação do meio ambiente, seja pelo ressecamento do solo ou pela diminuição da diversidade biológica nas regiões onde é cultivada. Mas, no caso da porção paulista do Vale do Paraíba, explica o pesquisador, houve um impacto positivo na regeneração florestal: para poder plantar eucaliptos, os produtores precisam de certificações ambientais. Para obtê-las, foram obrigados a proteger fragmentos de vegetação nativa, que se ampliaram naturalmente com o tempo, e a restaurar áreas de mata ciliar, que também se tornaram florestas nesse período.

Cartografia da regeneração da Mata Atlântica. Pesquisa de Ramon Felipe Bicudo da Silva. Fonte: FAPESP.

O cultivo de eucalipto para a produção de celulose estabeleceu-se na região nos anos 1960, principalmente em áreas de pastagens abandonadas ou degradadas, como as encontradas nos municípios de Jambeiro, Natividade da Serra, Paraibuna, Redenção da Serra, Santa Branca e São Luís do Paraitinga. Juntas, essas seis cidades contribuíram para 53,8% da expansão do cultivo de eucalipto no Vale do Paraíba – de 13.115 hectares, em 1985, para 38.958 hectares, em 2011. Durante esse período, a cobertura florestal expandiu-se em 77%. Hoje, aproximadamente 89% da celulose produzida no Vale do Paraíba é vendida para mercados da China e Europa. A crescente demanda global por produtos sustentáveis vem forçando as empresas a seguir normas e práticas de gestão ambiental específicas para a obtenção de certificação ambiental. “Essas certificações são fundamentais para o mercado de commodities de celulose, contribuindo para que a plantação de eucalipto influenciasse positivamente a recuperação de matas nativas em seu entorno”, afirma Batistella.

FISCALIZAÇÃO AMBIENTAL

A partir de entrevistas com representantes de ONGs e mais de 90 produtores rurais do Vale do Paraíba, os pesquisadores identificaram outros elementos que contribuíram para a regeneração de parcelas de floresta na região. Uma delas é a Lei da Mata Atlântica, de 2006, que introduziu incentivos financeiros para projetos de restauração ambiental. Também a fiscalização feita nas últimas duas décadas pela Polícia Militar Ambiental (PMA) de São Paulo ajudou a coibir o desmatamento e as queimadas. De acordo com informações do banco de dados da própria PMA, pouco mais de 9.500 ocorrências de violações ambientais foram registradas na porção paulista do Vale do Paraíba entre 2003 e 2013, mais da metade envolvendo o corte ilegal de árvores. Ainda assim, a extensão das áreas afetadas pelo desmatamento teve uma redução considerável no mesmo período.

Muitas das ocorrências registradas foram denunciadas pela população. Segundo Ramon, ferramentas de governança como legislação, sanções e distribuição de materiais de orientação favoreceram o desenvolvimento de uma noção de cidadania ambiental e um maior engajamento em parte da população do Vale do Paraíba. “Os resultados sugerem o estabelecimento de uma relação positiva entre desenvolvimento econômico e conservação ambiental na região, e que o processo de transição florestal pode ser acelerado por uma sociedade ambientalmente consciente”, afirma Moran.

O fenômeno do Vale do Paraíba pode orientar projetos de restauração florestal em áreas onde existam processos históricos e econômicos semelhantes. Já em regiões onde a mecanização agrícola é intensa e os poucos remanescentes florestais que sobraram são muito degradados, pode ser necessário investir em outras estratégias de restauração. “Nessas condições, outras iniciativas são recomendadas, como o plantio de sementes ou de mudas de espécies nativas”, diz Ricardo Rodrigues, da Esalq-USP.

O porco nosso de cada dia

Manada de porcos sendo transportada tocada. Foto: acervo de Francisco de C. D. Andrade. Década de 1930. Local: Paraibuna (SP).

Grande foi a importância dos rebanhos suínos para História e desenvolvimento regional, sobretudo para Cunha. O porco era comum em toda Ibéria, como uma forma de despeito aos mouros e judeus, que o tem – por preceitos religiosos – como “animal imundo”. Não existe carne mais cristã do que ele, pensavam os cruzados da Reconquista. Aporta no Brasil junto com os portugueses e acompanha a marcha colonizadora (DÓRIA; BASTOS, 2018, p. 110). Era um animal fundamental na vida do sítio. Dele, tudo se aproveitava. Até o resto para se fazer sabão. No dia em que no sítio se matava um, havia ajuntamento da vizinhança, aprofundando os vínculos de sociabilidade e de partilha, já que cada vizinho ganhava um pedaço para levar casa e dessas reuniões davam ocasião a muitos casamentos e compadrios. Em Cunha o ritual de sacrifício começava recolhendo a palha de pinheiro no campo, porque o porco, após ser morto, era sapecado para facilitar a retirada de sua pele. Hoje essa etapa é executada com maçarico… “O tempora! O mores!”, exclamaria Cícero, se caipira fosse.

Cunha era durante o século XIX foi o maior produtor de toucinho da Província de São Paulo (MÜLLER, 1978, p. 124), com produção em torno de 9 mil arrobas em 1836/1837, o que significava mais de 68% de toda a produção provincial. A carne de porco, junto com a quirera de milho, que para nós, de Cunha, é uma iguaria, foi de fundamental importância para alimentação das populações do centro-sul brasileiro, antes do advento do século XX e suas modernidades (DÓRIA; BASTOS, 2018, p. 191). Apesar de MÜLLER (1978) não especificar a quantidade de porcos que havia em Cunha no seu levantamento estatístico, nas características gerais das vilas, ele assim descreve Cunha: “N’este districto se planta muito mantimento, assim como algum tabaco: criam-se muitos porcos, e algum gado vaccum, e cavallar. Não tem terrenos devolutos.” (MÜLLER, 1978, p. 41). Fica claro que o lapso estatístico ao mencionar a produção agrícola de Cunha se deve à falta de dados precisos ou ao fato do porco daqui virar toucinho. Outros produtos agrícolas também são dignos de nota: a produção de milho e feijão, tradicionalíssimas da Paulistânia, a produção de azeite de amendoim, que apesar de ser pequena (127 medidas), era uma das maiores da província, e, por fim, o fumo. Este merece algumas considerações. A produção era modesta, de 649 arrobas, mas bastante significativa (mais de 5% de toda produção provincial). Seguia, transportado por tropas até o porto de Paraty. De lá, ia para o Rio de Janeiro, a Corte. Por isso, o fumo era o segundo produto mais taxado na Barreira do Taboão, atrás apenas do café (MÜLLER, 1978). No bairro Monjolo se produziu tabaco do tipo “Kentucky” até década de 1950. Segundo os moradores mais antigos, a produção foi abandonada devido às constantes chuvas de granizo, que arrasavam a plantação, causando grandes prejuízos. Isso é um dos motivos, o maior, sem dúvida é a concorrência desleal com lavoura comercial. A indústria do cigarro venceu a de fumo de corda.

Em ofício à Assembleia Provincial solicitando recursos financeiros para o município, a Câmara de Cunha de 1882 ao apresentar os predicados do lugar, assim descreve a suinocultura daqui: “O genero suino é objecto das attenções de innumeros creadores, que possuem grandes manadas. Os porcos desenvolvem-se muito bem e quando são sujeitos a céva, alguns chegam a produzir pezo superior a 12 arrobas só em toucinho.” Como se lê, o valor do animal estava na banha que fornecia, porque não havia outra gordura tão popular no Brasil para ser usada na preparação das refeições diárias (DÓRIA; BASTOS, 2018). O toucinho era um item de primeira necessidade e os poucos, mas já em franca expansão, núcleos urbanos precisavam das fazendas para obtê-lo. Aliás, conforme a estatística do próprio MÜLLER (1978), acompanhando os registros portuários, S. Paulo exportava toucinho para outras províncias. Muitas arrobas partiam de Cunha, certamente. Era um alimento mercantilizável e nosso município liderava a sua produção, já que era um dos núcleos especializados na produção de víveres e alimentos básicos, a ponto do capitão-general António José de Franca e Horta, então governador da Capitania de São Paulo, requisitar, em 1808, com urgência “porcos vivos, toucinho, carne de porco salgada, milho e feijão, de Cunha e São Luís (hoje do Paraitinga).” (DÓRIA; BASTOS, 2018, p. 90), porque o príncipe regente estava a caminho da capital e precisava ser bem tratado. Embora sua história esteja ligada (com razão) ao Tropeirismo e Bandeirantismo, como repasto rústico e do sertão, era consumido por todos, em todos os lugares do Brasil colonial, inclusive na Corte e pela nobreza.

Mais do que isso, a suinocultura possibilitou:

  • o comércio inter-regional, integrando cidade menores às maiores, produtores rurais aos consumidores urbanos, as zonas auríferas de Minas às zonas cerealíferas da Alta Mantiqueira e Serra do Mar;
  • uma alternativa econômica para as zonas em decadência, após o surto do café (no caso da nossa região). E como alimento durante o seu apogeu;
  • a utilização da banha do porco, tanto na gastronomia cotidiana quanto como conservante para alimentos;
  • o processamento da carne de porco em toucinho, facilitando a conservação do alimento, que, com vencimento adiado, tinha sua zona de abastecimento ampliada, integrando cada vez mais cidades e vilas às atividades comerciais;
  • a comercialização e escoamento da safra de milho de forma mais rápida e fácil, já que este cereal era usado quase que em sua totalidade na engorda dos rebanhos. Conforme percebe sagazmente Carlos Borges Schmidt, “o porco é o milho que anda”;
  • a contratação de mão de obra (após a abolição da escravidão) para transportar as varas de porcos pelas serras e caminhos afora.

Em Cunha, bem como em todo Alto Vale do Paraíba, tinha mais porco do que gente. Antes da expansão da fronteira agrícola brasileira para o Centro-Oeste, consumindo o Cerrado, boa parte dos gêneros alimentícios que provia nossas cidades vinha de regiões montanhosas e isoladas, similares ao nosso Alto Vale do Paraíba. E o transporte de varas pelos antigos caminhos do Ouro com destino aos mercados regionais (Guaratinguetá, Taubaté e Lorena) era bastante comum, tal como ilustra a foto. E assim foi até o início do século XX.

Atualmente há em Cunha 5.642 cabeças de porco e o município, apesar do seu enorme número de propriedades rurais, está muito longe de ser o maior produtor do estado. Em 484 estabelecimentos agropecuários há criação de suínos, o que representa apenas 21% do total de propriedades agrícolas locais. Bem distante daquilo que fomos no passado, cuja onipresença do porco era um fato distintivo do sítio caipira. Há diversas razões para essa decadência.

Já nas primeiras décadas do século XX começaram a se fixar em nossa região famílias mineiras, que foram introduzindo, pouco a pouco, a pecuária de leite e corte, de método extensivo (pastagens), a fabricação do queijo etc. Por outro lado, a suinocultura comercial, as exigências sanitárias, o automóvel e as estradas modernas puseram fim a essa época. O que era Economia virou História. Mas a deliciosa quirera com carne de porco resistiu ao tempo, porque o sabor, a suculência e a gostosura são atemporais. Ainda bem.

Referências:

ANDRADE, F. de C. D. A presença dos moinhos hidráulicos no Brasil. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 23, n.1, São Paulo, jan./jun., 2015.

DÓRIA, C. A.; BASTOS, M. C. A culinária caipira da Paulistânia: a história e as receitas de um modo antigo de comer. São Paulo: Três Estrelas, 2018.

INSTITUTO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Agropecuário 2017 – Resultados definitivos. Disponível em: < https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/cunha/pesquisa/24/76693 >. Acesso em: 30 mai. 2021.

MÜLLER, D. P. Ensaio d’um quadro estatístico da província de São Paulo: ordenado pelas leis provinciais de 11 de abril de 1836 e 10 de março de 1837. 3. ed. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1978.

OFÍCIOS da Câmara Municipal da Cidade de Cunha do ano de 1882.

SCHMIDT, C. B. O milho e o monjolo: aspectos da civilização do milho, técnicas, utensílios e maquinaria tradicionais. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, Serviço de Informação Agrícola, 1967.

VELOSO, J. J. de O. A História de Cunha: Freguesia do Facão, A Rota de Exploração das Minas e Abastecimento de Tropas. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2010.

Remanescentes de Mata Atlântica em Cunha

Após três séculos de colonização e ocupação no município de Cunha, o mapa representa as áreas florestais e de campos de altitude que sobraram. Excluindo as áreas de proteção integral do Parque Estadual da Serra do Mar e do Parque Nacional da Serra da Bocaina, percebe-se que muito pouco restou. A agricultura rudimentar e a pecuária extensiva, atividades econômicas históricas de nosso município, foram as responsáveis pelo desmatamento e degradação do lugar chamado “berço das águas”, devido ao grande número de nascentes. A boa notícia é que na última década a Mata Atlântica mostrou recuperação, aumentando a área florestada do município. Consciência ambiental ou refuncionalização das propriedades rurais de Cunha, que estão deixando ser agrícolas?

Certamente a refuncionalização das propriedades rurais, seja pelo turismo em ascensão ou pelo aumento das casas de veraneio de “gente de fora”, tem um impacto considerável nessa boa notícia. A recuperação florestal ocorre em virtude desse novo caráter nas propriedades rurais de Cunha, pois na agropecuária o valor do terreno está na capacidade produtiva, o que acarreta na retirada da mata para formação de pastagem ou para aragem do solo. Já para os veranistas, o valor do terreno está na beleza paisagística ou ainda na quantidade de nascentes que possui. Descarto a ideia de que as “pessoas de fora” tenham mais consciência ecológica do que as pessoas da roça de Cunha, pois a relação com terra se dá de forma desigual, impossibilitando qualquer conclusão. Enquanto para o veranista paulistano ou de outra cidade grande o terreno é usado apenas um local de descanso e lazer, para o caipira cunhense é meio de subsistência, lugar de trabalho, onde retira o seu sustento e de sua família, daí muitas vezes a necessidade da exploração intensiva do terreno íngreme e do solo pouco fértil. Outras diferenças sociais, como grau de instrução, seguramente ajudam a entender sujeitos de “mundos” distintos e as relações que estabelecem com o meio ambiente.

A fiscalização feita pela Polícia Militar Ambiental está mais intensiva na região nos últimos anos. Mas como ela é muito pontual, sozinha não ajuda a entender o fenômeno, embora tenha lá a sua contribuição para diminuição do desmatamento.

Outras conclusões do Inventário Florestal:

  • O município com maior área (dentro da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul paulista) de vegetação remanescente é Cunha com 35.048 ha., correspondendo a 26,3% de sua superfície;
  • Constata-se que a vegetação remanescente está dividida em 2.723 fragmentos, sendo 2.122, com área de até 10 ha.; 350, com 10-20 ha.; 171, com 20-50 há.; 53, com 50-100 há.; 20, com 100-200 há. e 7 fragmentos com área superior a 200 ha.;
  • No município de Cunha também existem expressivas áreas protegidas por Unidades de Conservação – 11.041ha. (8,3%).

Assim, verifica-se a importância da preservação privada, aquela feita por cada proprietário de terra, na conjuntura municipal. Isso, por conseguinte, gera áreas preservadas fragmentadas e aponta para necessidade da criação de corredores ecológicos, a fim de que os pontilhados verdes possam ser conectados e a restituição do ecossistema original possa ser mais efetiva

Fontes:

  1. Folha Vitória. O papel das reservas particulares na proteção da Mata Atlântica. Disponível em: <https://www.folhavitoria.com.br/geral/noticia/09/2019/o-papel-das-reservas-particulares-na-protecao-da-biodiversidade-da-mata-atlantica&gt;.
  2. G1 – São Paulo. Mapeamento mostra que tem mais Mata Atlântica em SP que se pensava. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/06/mapeamento-mostra-que-tem-mais-mata-atlantica-em-sp-que-se-pensava.html>
  3. SÃO PAULO / INSTITUTO FLORESTAL. Inventário florestal da vegetação natural do Estado de São Paulo. São Paulo: Secretaria do Meio Ambiente / Instituto Florestal: Imprensa Oficial, 2005.
  4. SILVA, R. F. B. et al. Land changes fostering Atlantic Forest transition in Brazil: Evidence from the Paraíba Valley. The Professional Geographer. 2016.
  5. SILVA, Ramon B. F. da. Floresta revigorada. Pesquisa Fapesp, n. 259, set. 2017. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/2017/09/22/floresta-revigorada/&gt;.