As três humanidades

Por Mário Ferreira dos Santos *

A Torre de Babel, pintura de Pieter Bruegel, o Velho (1563). Fonte: Wikimedia.

A civilização é a metrópole. Cada vez cresce mais a separação entre os metropolitanos e os provincianos. Enquanto estes continuam a ser os guardiões das culturas, aqueles aniquilam-se na morte das ideias, que substituem por brilhos de moeda falsa. Estamos numa época de decadência, porque se instaura definitivamente no mundo, mais uma vez, o predomínio inconteste das metrópoles.

São elas que falam em nome dos povos. Paris é a França; Berlim é a Alemanha; Londres, a Inglaterra, e Nova Iorque, os Estados Unidos.

São essas cidades os oráculos dos povos e apontam os destinos das nações. No entanto, nelas existe a depressão de todos os valores do homem. E é por isso que elas são o primeiro capítulo da decadência.

A separação entre o metropolitano e o provinciano é crescente, repito. Podemos distingui-los pelos seguintes caracteres que ressalto, no metropolitano: cinismo, desinteresse pelos grandes problemas interrogativos do homem; ausência da dúvida; espírito folgazão; jargão cheio de molequismo como meio de linguagem; falta constante do espírito de conservadorismo, sob qualquer aspecto; necessidade imprescindível de encher o vazio interior com divertimentos mais violentos, excitantes mais rápidos; pouca elegância nas maneiras; tendência para o chiste, para o humor, o trocadilho; tendência às exterioridades, manifesta mais intensamente na busca do vestiário; pretensão de superioridade sobre o provinciano que lhe serve de motivo de ridículo, sobretudo quanto às virtudes que este possui e que são olhadas pelo metropolitano como reminiscências de épocas anteriores que ele julga já ultrapassadas; aumento do esquerdismo nas massas; na arte é atraído pelo temporal, pelo passageiro, pelo epidérmico; não compreende mais arte pela arte; dissociação dos sentimentos nobres que eles os eiva de interesses e de lucros próximos; ausência do heroísmo desinteressado; gosto pela literatura leve, pelo romance em vez do ensaio, pela novela em vez do estudo; ausência de ideais excelsos, substituídos pelas ânsias de vitórias materiais; volubilidade crescente; radicalização às ruas: “Tenho asfalto na alma … ” ; nova concepção utilitária do amor; transformação do casamento em companheirismo; transformação do sentido provinciano da mulher; tendência para maior liberdade sexual ; aumento da neurastenia e doenças nervosas; modificação degenerativa de todos os sentimentos; diminuição do sentido do destino, do signo, para incremento do sentido de causalidade; redução dos instintos por uma padronização consciente normativa de um “modus-vivendi”; maior tensão e vigília na vida; mais vazio nas almas; artificialização crescente da vida e da criação consciente; predomínio da moda, que segue num ritmo cada vez mais rápido; instalação do provisório em suas construções e obras de arquitetura e consequente espírito de “moda”, na arte, com o envelhecimento precoce dos seus ídolos; instalação de crenças variadas, com codificações de cunho típico metropolitano; maior ingenuidade na aceitação dos fatos e nos divertimentos; maior atração pela luz e pelo movimento; mais crescente o sentido de morte nas obras humanas metropolitanas, que trazem sempre o gérmem da destruição; completa ausência do sentido de reversibilidade do tempo, consciência mais forte da hora que passa, do segundo que passa; gosto pelas coisas “exquises”, instauração da música de sons vitais e do ritmo mais sexual; predominância no consciente dos problemas de ordem sexual; aumento do “taedium vitae”; maior fixação íntima da cidade que nunca abandona o metropolitano, mesmo quando ausente dela; instalação do herói citadino, de brilho rápido, que se salienta por qualquer realização provisória como esportistas, políticos, locutores de rádio, aviadores, etc; maior desagregação dos elementos raciais, para dar nascimento a um tipo comum; ausência de espiritualismo, com crescente desenvolvimento de doutrinas de fundo causal, científico; divinização do dinheiro em contraposição ao sentido econômico rural dos bens; infecundidade física e espiritual; ausência de angústia quando se vê o último de sua família, sem possibilidade de perpetuação; redução da natalidade, ao princípio como consequência de ordem econômica, finalmente formando o espírito do homem citadino; redução do instinto maternal das mulheres, que passam bruscamente da meninice para a maturidade; ausência do brinquedo ingênuo, infantil; espírito emancipativo das mulheres; uniformização da urbanística metropolitana, entre si, entre as grandes cidades; a música, a literatura, e a pintura e a escultura, assumem um caráter profissional; ausência do estilo e instalação do gosto; desaparecimento dos costumes para dar lugar às maneiras de comportamento; desaparecimento do traje popular pela influência de uma moda variável; ânsia de imposição do estilo metropolitano sobre as partes ainda não conquistadas; ânsia de imposição de formas genéricas para o domínio no mundo inteiro; aumento crescente do agnosticismo como atitude filosófica, como posição mais fácil para enfrentar as grandes e eternas perguntas; a originalidade como signo de decadência; nas metrópoles, na ânsia de originalidade, “Os homens excelsos não são originais”.

Justifico por final o título: três humanidades.

A primeira é a da província, a segunda, a das metrópoles, e a terceira a que há de vir, após a grande transmutação do mundo, após a grande carnificina.

Fonte:
FERREIRA DOS SANTOS, Mário. Páginas várias. 2. ed. São Paulo: Logos, 1963, pp. 106-108.
(Coleção Antologia da Literatura Mundial)

* Mário Dias Ferreira dos Santos (Tietê, 3 de janeiro de 1907 – São Paulo, 11 de abril de 1968) foi um filósofo, tradutor e escritor brasileiro. Traduziu obras de diversos autores e escreveu livros sobre diversos temas, publicados sob o nome Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais. Ele também desenvolveu seu próprio sistema, nomeado de Filosofia Concreta. Um dos poucos estudiosos brasileiros do chamado anarquismo cristão, tendo sido ativo participante do Centro de Cultura Social, um dos mais importantes núcleos anarquistas de São Paulo da primeira metade do século XX. Era autodidata e dono de uma enorme erudição. Para saber mais sobre o filósofo clique aqui.

25 de setembro de 2010 – Lançamento do livro “A História de Cunha”, do professor João Veloso

O homem e a obra. Veloso tem nas mãos “A História de Cunha”. Foto: Geraldo Magela Tannús. Ano: 2010.

Há 11 anos era lançada a obra “A História de Cunha – 1600-2010 – Freguesia do Facão – A Rota da exploração das minas e abastecimento de tropas“, do professor e historiador cunhense João José de Oliveira Veloso (1945-2020), um livro que é fruto de uma vida de pesquisa. Páginas e páginas de muita informação, fatos e fontes primárias sobre a História de Cunha, antiga Freguesia do Facão.

E foi lançado em 2.010, justamente no ano em que Cunha viveu uma terrível catástrofe climática, revelando o caráter providencial do livro, pois diante do cenário de destruição que estava posto, nada mais inspirador para reconstrução do que olhar para grandeza do nosso passado.

São 496 páginas de pura história, quase sempre recheadas com fontes primárias. Fruto do amor e desprendimento de um apaixonado por Cunha: o professor João Veloso. Ele, tal como os sertanistas de outrora, explorou corredores e estantes empoeiradas dos arquivos públicos, enveredou-se por museus, inquiriu cunhenses que já se foram, averiguou obras, artigos e teses, campeou fotos e artefatos, desenterrou pilhas e pilhas de testamentos e doações de sesmarias, reconstituiu as sendas das tropas e os caminhos perdidos. Lapidou todas as informações colhidas, organizando-as e fazendo a sua interpretação. Para, finalmente, nos entregar essa obra valiosíssima. É um livro definitivo? O próprio professor Veloso, com a humildade que lhe era típica, rechaçou essa qualificação. Para ele, havia muito a ser pesquisado e muitas perguntas sem resposta na história local. Mas, convenhamos, não há mais nada de essencial a ser dito. Alguns fatos, talvez, ainda possam ser pormenorizados e ampliados, como o próprio professor João Veloso fez questão de deixar claro, quando deu uma aula pública, em 2017, na homenagem que a Câmara de Cunha lhe rendeu, na data em que foi aprovada a mudança do dia de comemoração de aniversário de Cunha para 19 de março. Essa retificação foi ancorada na pesquisa que culminou na publicação do livro “A História de Cunha (1.600 – 2.010)”, pelo professor João Veloso.

Foram mais de 40 anos de pesquisas realizadas por um professor abnegado, que não mediu esforços físicos e financeiros para trazer à lume um passado quase esquecido. Tirou o pó da grandeza do passado de Cunha, nos presenteando com a publicação. Como diz o professor José Eduardo Marques Mauro (professor do IEB-USP), o “livro patenteia o coroamento de todo um extenso e duradouro trabalho do autor, que, apresentado com esmerada publicação, assume o significado de uma autêntica dádiva ofertada à cidade e a população do município, se constituindo em um reforço ao aperfeiçoamento da identidade local e regional da população cunhense”. O professor Nelson Pesciotta (USP/UNITAU, ex-presidente do IEV), in memoriam, foi além. Para Pesciotta, o livro do professor João Veloso foi “uma certidão de nascimento para Cunha”. E foi mesmo!  Descortinou o nosso passado, situou o Cunha (Facão) no tempo e foi a primeira obra exclusiva sobre História de Cunha. E, pela sua abrangência temporal e qualidade acadêmica, é até hoje a única. Por ser insuperável, deve ser lida e consultada. Não é à toa que o professor José Eduardo disse que compreender a História de Cunha é uma forma de compreender a História do Brasil, já que na micro-história do município é possível pôr em evidência o pulsar da Nação.

O professor João Veloso foi o fundador do Centro de Cultura e Tradição de Cunha, criador e mantenedor do Museu Municipal “Francisco Veloso” e foi membro ativo do IEV (Instituto de Estudos Valeparaibanos). Também fez a tradução do livro “O fim de uma tradição”, do antropólogo Robert W. Shirley, obra de referência nas áreas de Sociologia e Antropologia, no que concerne ao estudo de comunidade.

A obra “A História de Cunha“, atualmente esgotada, fomentou o interesse e o debate sobre a História local, servindo de referência para outros livros e dissertações sobre Cunha que foram lançadas no último decênio. Podemos dizer ainda que são frutos dessa obra ímpar o grupo do Facebook “Memória Cunhense“, um dos maiores do Vale sobre a temática memorialista, e a retificação da data de fundação do município de Cunha (agora 19/03/1724 e não mais 20/04/1858).

Mais que um historiador, o professor João foi um defensor do patrimônio histórico e cultural cunhense, um cidadão ativo na defesa da cultura e tradições do nosso povo. Em 2008, junto com o professor José Eduardo Marques Mauro, encetou um movimento que resultou na criação do COMPHACC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Cunha), realizando o tombamento dos imóveis históricos da cidade de Cunha, estabelecendo uma área de envoltória para preservar a nossa paisagem urbana. Graças a esse tombamento, em 2018, veio o tombamento estadual, realizado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT), órgão do Governo de São Paulo.

O livro “A História de Cunha” não foi a sua primeira obra e não foi a última. Em 2014, lançou “A história de Zina: a saga de uma família da zona rural cunhense”, uma ficção histórica romanceada. Suas crônicas, presentes no livro “O ambiente natural cunhense” são ótimas e merecem ser relidas. Um retrato fiel do povo de Cunha, de seus modos e dilemas, com uma boa dose de sofisticada ironia. Quando partiu, no começo deste ano, tinha um livro no prelo, sobre as manifestações folclóricas do município. Torcemos pelo lançamento. Como obra póstuma e como uma forma de gratidão do povo de Cunha a quem tanto fez por nosso lugar.

Uma segunda edição da obra “História de Cunha“, revista e ampliada, vinha sendo preparada, antes do repentino e infeliz falecimento do professor João Veloso. Mas quem sabe não possa sair nos próximos anos? Em 2024, Cunha irá comemorar o seu Tricentenário. E uma segunda edição dessa obra é um presente e tanto para comemorar tão significativo jubileu. Cunha merece!

Fonte:
VELOSO, J. J. de O. A História de Cunha (1600-2010): Freguesia do Facão: A rota da exploração das minas e abastecimento das tropas. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2010.

Obs.: Texto publicado em 25 de setembro de 2020, na página Jacuhy, do Facebook, na série “Hoje na História de Cunha”. A redação foi alterada em virtude do falecimento do professor e historiador João Veloso, em novembro de 2020.

Robert Shirley, o pesquisador americano que virou “cunheiro”

Robert Shirley esteve em Cunha, na década de 1960, para pesquisar os impactos do progresso industrial e urbano sobre a cultura e tradição local. Dessa pesquisa surgiu o livro “O fim de uma tradição“.

Robert Weaver Shirley nasceu em 11 de dezembro de 1936, na cidade de Baltimore, estado de Maryland, nos Estados Unidos da América. Era filho do Dr. Hale Forman Shirley, um típico médico caipira do Meio-Oeste americano, natural de Iowa, onde se criou e estudou. Sua mãe se chamava Mildred Weaver Shirley, nascida na mesma região de seu marido, criada em uma das muitas fazendas que compõem o estado do Illinois. Como estudante de Nutrição na Universidade de Iowa, ela conhece o jovem Hale, ainda um estudante de Medicina e seu futuro marido. Seu pai decide aprofundar sua formação e parte para Baltimore, objetivando estudar Psiquiatria Infantil na Universidade Johns Hopkins. Após a formação, quando Robert tinha apenas dois anos, os Shirley se mudam para o outro lado do país, se estabelecendo em São Francisco, Califórnia. Seu pai fora nomeado professor de Pediatria e Psiquiatria na Universidade de Stanford. Sua família se estabelece de forma definitiva na Baía de São Francisco desde então. Sua mãe veio a falecer em 1960 e seu pai em 1974. Essa proximidade familiar com a Medicina, o leva a trabalhar por vários anos como assistente de pesquisa médica em Palo Alto, Califórnia, na Universidade Stanford.

Robert Shirley graduou-se em Biologia e Antropologia na Universidade de Stanford, se mudando, posteriormente, para Nova Iorque, a fim de terminar seu doutorado na Universidade Columbia. Nessa Academia, influenciado pelo antropólogo e brasilianista Charles Wagley (1913-1991), inicia seus estudos sobre o Brasil, interesse que iria nortear toda sua carreira acadêmica e seria seu campo de pesquisa predileto e vitalício.

” Minha ligação com esta comunidade pequena [Cunha] é uma das felicidades de minha vida […] Mais uma vez, portanto, quero agradecer ao povo de Cunha por sua amizade durante doze anos”

Robert Shirley, em 1977.

Para realizar as pesquisas que culminariam em seu doutorado em Antropologia, parte para o Brasil, mais especificamente para a pequena e isolada cidade de Cunha, no extremo leste de São Paulo. Mais que uma experiência acadêmica e de pesquisa, Cunha o marcaria para sempre, como várias vezes testemunhou Shirley. Cunha foi um objeto de estudo que se transformou em um verdadeiro laboratório de experiências humanas, pessoais e solidárias para o cientista social. Aqui esteve por dois anos (1965-1966), dando continuidade às pesquisas sociais desenvolvidas na década de 1940 por Emílio Willems. Cunha foi, durante o século XX, uma espécie de cidade-laboratório dos cientistas sociais, pelo fato de ser uma comunidade isolada e que mantinha a cultura tradicional ainda intacta. Os mais importantes “estudos de comunidade” no Brasil aconteceram em nosso município. Seu interesse aqui era medir o impacto das cidades industriais paulistas sobre a pequena comunidade tradicional, cujo isolamento vinha sendo gradativamente rompido com novas estradas e novos meios de comunicação. Shirley, certa vez, afirmou que vir para Cunha era muito mais que um deslocamento no espaço, mas também um deslocamento no tempo, como se pudéssemos voltar a uma época pretérita. Sua pesquisa identifica vários sinais de ruptura na cultura tradicional, o que para ele levaria, com o passar do tempo, ao desaparecimento das manifestações folclóricas típicas do mundo rural.

O antropólogo nunca escondeu de ninguém: Cunha era sua segunda casa, depois da fria Toronto, onde tinha seu emprego. Os Veloso, segundo sua própria confissão, era sua família adotiva. Nestas paragens encontrou sua tese e novos amigos. Da relação fraternal com o inesquecível professor João Veloso (1945-2020), nasceu o Centro de Cultura e Tradição de Cunha, a tradução dos livros “O fim de uma tradição” e “Antropologia Jurídica” para o português e diversos boletins e matérias sobre a cultura e tradição local. Uma amizade intelectual que rendeu muitos frutos para Cunha e que até hoje desfrutamos. Shirley nunca se esqueceu da noite chuvosa, em janeiro de 1965, quando chegou a Cunha, após enfrentar o lamaçal que era a Estrada Cunha-Guaratinguetá e ter que pernoitar no meio do caminho. Instalou-se no “Hotel Paulista” (do Rafaello, belíssimo casarão colonial já demolido), e logo transformou a estalagem em uma espécie da sucursal da Universidade Columbia, ocupando quartos e salas e orientando ajudantes de pesquisa. Deixou Cunha um ano e meio depois com “20 quilos de material escrito e memórias infinitas”. Aproveitou o ensejo da introdução que fez ao livro “Um causo sério”, do José Velloso, em setembro de 1991, para fazer muitas confissões do seu amor a Cunha e aos amigos que aqui encontrou e sempre que pode visitou… Coisas que não cabiam na austeridade e sobriedade das publicações de suas inúmeras pesquisas, onde o distanciamento afetivo com o objeto de estudo é necessário para a credibilidade da pesquisa.

Robert Shirley, em 1966, quando estava em Cunha fazendo sua pesquisa de doutorado. Fonte: Museu Municipal Francisco Veloso.

Foi membro do corpo docente da Universidade de Toronto por mais de 27 anos, atuando na graduação e pós-graduação do curso de Antropologia, no Campus Scarborough. As disciplinas que ministrou foram: Antropologia Social e Cultural, Antropologia Econômica e Política, Escravidão Comparada e Direito e Sociedade. Além disso, também chegou a lecionar uma matéria sobre as sociedades latino-americanas, dando um curso sobre “As Américas: uma perspectiva antropológica”, com enfoque no México e no Brasil. Na pós-graduação, foi professor de Antropologia Jurídica e Metodologia e História do Pensamento Antropológico.

Já em 1988 havia se tornado o grande brasilianista do Canadá, atuando na Universidade de Toronto, abrindo as cortinas para os estudos sobre Brasil e apresentando o “país tropical abençoado por Deus” a milhares de jovens estudantes interessados pelo mundo abaixo da Linha do Equador. Realizou diversos cursos e seminários sobre o Brasil, durante muito tempo, no St. Michael’s College.

Como professor, conseguiu ministrar seus cursos em várias universidades brasileiras, tendo a oportunidade de visitar assim grande parte do país. Viajou para o Amazonas, região Nordeste, embora a maior de suas pesquisas tenha sido nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul. Sua área de pesquisa e atuação no ensino superior esteve ligada à Antropologia Social, matéria que lecionou em quatro universidades brasileiras. Também foi o introdutor, nas universidades brasileiras, da disciplina de Antropologia Jurídica, tendo atuado no Museu Nacional do Rio de Janeiro e na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Lecionou ainda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O Brasil foi o seu grande campo de pesquisa, conforme ele mesmo escreveu: “em 1970, comecei a me interessar pelas instituições que ligam as regiões rurais e urbanas. Passei alguns meses trabalhando em cooperativas, mas acabei me estabelecendo em uma extensa pesquisa sobre direito e instituições jurídicas no Brasil”. Início da década de 1980 estudou a cultura e as tradições gaúchas, quando era professor da UFRS. Em meados da década, ainda em Porto Alegre, junto com a professora Claudia Fonseca começa sua pesquisa sobre Antropologia Jurídica e Direito Comparado e o impacto das instituições jurídicas de uma perspectiva urbana, usando o método de estudo da comunidade. Na década de 1990, inicia os estudos sobre as favelas do Rio de Janeiro e São Paulo, fazendo comparativos sobre a organização de favelas nas diferentes cidades do Brasil. Aproveita para, nessa época, estudar as religiões afro-brasileiras enquanto força organizadora de comunidades carentes. Em 1993-1994, vive o seu ano sabático e aproveita para visitar Cunha por quatro meses. Retorna a Toronto em 1994, passando a atuar na área de Criminologia, buscando uma reforma policial e uma governança comunitária e de policiamento. No verão de 1996, retorna ao Brasil, como bolsista, para o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da Universidade de São Paulo (USP). No Brasil, pesquisou a organização jurídica local, as religiões nacionais e as organizações comunitárias.

Apaixonado por artes, literatura, dança e música (principalmente música clássica), Shirley não deixou esse hobby de fora de suas andanças acadêmicas. Do Brasil levou, quando retornou ao Canadá, uma enorme coleção de gravações brasileiras de diversos músicos e ritmos, além, claro, de uma infinidade de livros sobre nosso país, por quem nutria muito mais que um interesse de pesquisa, mas profundo afeto e respeito. Apoiou e acolheu em sua casa o coreógrafo brasileiro Newton Moraes.

Faleceu em 23 de julho de 2008, em sua residência, de forma repentina, em Toronto, aos 72 anos de idade. Já tinha se tornado professor emérito de Antropologia, na Universidade de Toronto. Ficou na lembrança dos alunos, amigos e familiares como um homem extremamente gentil. Deixou saudades em seu companheiro Newton Moraes, em seus irmãos Bill Shirley e Barbara Sierra e em seus sobrinhos Stephanie, Linda, Nicholas, Ethan, na sobrinha-neta Alexandra e em muitos amigos.

Sua obra, ainda que menos importante e impactante que a de Willems, contribuiu para a Antropologia brasileira, principalmente ao introduzir um novo campo de estudo: a Antropologia Jurídica. Para Cunha, ele foi muito mais que um pesquisador “do estrangeiro”, que só via o lugar como um objeto de pesquisa.  Virou “cunheiro” de alma e coração e deu suporte acadêmico aos movimentos culturais e de preservação histórica que brotaram na cidade após a década de 1970. Apesar de ter sido um problematizador sobre o iminente desaparecimento da cultura tradicional frente ao industrialismo paulista, foi ele um dos somaram esforços para que nossas tradições não chegassem ao fim.

Livros:

1971 – The End of a Tradition: Culture Change and Development in the Município of Cunha, São Paulo, Brazil. Columbia University Press, New York and London.

1977 – O Fim de uma Tradição (tradução de João José de Oliveira Veloso, com um prefácio à edição brasileira e um capítulo extra: “Cunha, Doze Anos Depois”), Editora Perspectiva, Série Debates, n. 141, São Paulo.

1987 – Antropologia Jurídica (tradução de João José de Oliveira Veloso), Editora Saraiva, São Paulo.

Artigos:

1962 – em parceria com A.K. Romney: “Love Magic and Socialization Anxiety: A Cross Cultural Survey,” American Anthropologist, v. 64, n. 5, out., tomo I, pp. 1028-31

1964 – com R.G. Desai: “Association of Leukemia and Blood Groups,” The Journal of Medical Genetics, vol. 2, n. 3.

1967 – “The End of a Tradition”: tese de doutoramento da Universidade de Columbia, da cidade de Nova Iorque, publicada pela Universidade Microfilms, Ann Arbor, Michigan.

1970 – “Politics and Labour Migration in Brazil: The Politics of Underemployment,” in Manpower and Economic Development, Institute of Developing Areas, McGill University, Montreal, PQ., v. 2, n. 1, pp. 45-48.

1971 – “Social and Economic Change in the Municipío of Cunha,” Ciências Econômicas e Sociais, São Paulo, v. 6, n. 2, pp. 93-101.

1973 – “Patronage and Cooperation, An Analysis from São Paulo State,” in Patronage and the Power Structure in Latin America, A. Strikon and S. Greenfield, editors; The University of New Mexico Press, Albuquerque, NM.

1978 – “Legal Institutions and Early Industrial Growth: Manchester/São Paulo,” no Stanford Journal of International Studies, v. XIII, Spring, pp. 157-176. Posteriormente publicado em livro como: Manchester and São Paulo, John Wirth, and Robert L. Jones editors, Stanford University Press, Stanford, California.

1979 – “Law in Rural Brazil” em Brazil, Anthropological Perspectives: Essays in Honor of Charles Wagley, Maxine L Margolis and William E. Carter, Editors, pp. 343-361. Columbia University Press, New York.

1987 – “A Brief Survey of Law in Brazil” em NS: The Canadian Journal of Latin American and Caribbean Studies, v. XII, n. 23, 1987; pp. 1-13.

1990 – “Recreating Communities: The Formation of Community in a Brazilian Shantytown,” em Urban Anthropology, v. 19, n. 3, 1990, pp. 255-276.

1991 – “A lições de Cunha” no jornal Folha de São Paulo, 9 ago. 1991, p. 10-12.

1991 – “Gaúcho Identity and Regional Nationalism, A Case Study of the Traditionalist Movement in Rio Grande do Sul, Brazil,” no Journal of Latin American Lore, #17, pp. 199-224, Journal of the Latin American Institute of U. C. L. A.

1992 – “Brazil in Toronto” no Abacaxi Times, (jornal da comunidade brasileira em Toronto): n. 8, nov. 1992, p. 7.

1992 – “Introdução ao livro de José Velloso” em SOBRINHO, José Veloso. Um Causo Sério, pp. 11-13, Centro de Cultura e Tradição de Cunha, Cunha, São Paulo.

1994 – “Brazilians in Canada” artigo da Encyclopedia of the Canadian People, publicação da Multi – Cultural History Society of Ontario, Toronto.

1995 – “A Case of Kidnapping – and a Case of Prejudice” Review of two books: “Wrong Time, Wrong place,” by Caroline Mallan and “See no Evil,” by Isabel Vincent, em The Financial Post, 20 mai. 1995, p.33

1996 – “The Moçambique and the Parabola, How Weekend Tourism is helping to Preserve Folk Traditions in Rural São Paulo, Brazil” em ANTHROPOS: 91, Berichte und Kommentare, pp. 545-551; Köln, Germany.

1997 – “Atitudes com Relação à Polícia em uma Favela do Sul do Brasil,” em Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v. 9 – 1, mai. 1997, pp. 215-231, São Paulo.

1997 – “Faith and Freedom (a brief history of Afro-Brazilian Religion),” in The Queen’s Quarterly, inverno de 1997, pp. 690-711.

Fontes:
OBITUÁRIO de Robert W. Shirley. Disponível em: <https://www.legacy.com/obituaries/thestar/obituary.aspx?n=robert-w-shirley&pid=117514415 >. Acesso em: 23 set. 2021.
SHIRLEY, R. W. O fim de uma tradição: cultura e desenvolvimento no município de Cunha. Tradução de João José de Oliveira Veloso. São Paulo: Perspectiva, 1977.
UNIVERSITY OF TORONTO. Robert Shirley Anthropologist. Disponível em: <http://homes.chass.utoronto.ca/~rshirley/robert/index.htm >. Acesso em: 23 set. 2021.
VELLOSO SOBRINHO, J. Um causo sério. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 1992.

Frango à moda da Revolução de 1932

Frango à Revolução, receita de Laura de Azevedo Fontes. Foto: Walter Morgenthaler.
“Eu ando de quarqué jeito, de butina ou de chinela
Na roça si a fome aperta, vou apertano a fivela
Mas lá no meu ranchinho, a mulher e os filhinhos
Tem franguinho na panela (...)”

(Franguinho na panela, música composta por Moacyr dos Santos e Paraíso)

Final de setembro de 1932. Chegava a primavera no Vale, época de arar a terra e semear para aproveitar a época das águas. Mas naquele ano de 1932, especificamente naquele ano, as terras de todo o Vale do Paraíba já haviam sido lavradas por trincheiras. Plantações de capacetes de aço, caules fardados de cor cáqui, de cujo punho brotam fuzis. Rumorosas e sangrentas eram aquelas lavouras adubadas à pólvora… Grande sofrimento para as mães dos soldados que não voltaram, grande sofrimento para o povo do lugar sem poder plantar… O mundo tinha virado de pernas para o ar.

Não só a estação havia mudado, mas a sorte e o ânimo dos paulistas. Já se delineava o resultado do embate, apontando a vitória das tropas da ditadura. Em menor número e sem munição, os paulistas recuavam em direção à sua capital. 

Foi no dia 15 de setembro o recuo mais dramático da guerra perdida, quando abandonaram a cidade de Lorena. Os paulistas, constitucionalistas, vendo o cerco se fechar, adotaram como tática a “terra arrasada”, para retardar e enfraquecer as linhas outubristas. Dos gêneros e víveres que para tropa inimiga poderia ser comida, nada restou. Não sabiam os combatentes que com essa ação insensata, recairia a carestia muito mais sobre o valente povo paulista do que sobre os soldados da ditadura. Do pouco que ainda tinham, foram forçados a ceder às tropas famintas de pão e sangue, que invadiam sem pedir licença, fiéis representantes que eram do regime do arbítrio. Para nosso desgosto, a linha de defesa se contraiu, atingindo a estação ferroviária de Engenheiro Neiva, na velha cidade de Guaratinguetá. Essas novas trincheiras, cavadas na iminência da derrota, foram a “musa” de Guilherme de Almeida, no épico “Oração ante a Última Trincheira”.

Laura de Azevedo Fontes. Foto: Walter Morgenthaler. Ano: 1998.

E foi no alvoroço desses acontecimentos e contratempos, que Laura de Azevedo Fontes, uma moça de 14 anos na época, recebeu – com a bravura que é própria das mulheres paulistas – um contingente grande de incômodos visitantes, ameaçando o saque, exigindo a boia ou o fogo grassaria pela Fazenda do Sertão, em Cachoeira Paulista, onde ela e a família estavam refugiados naqueles dias de setembro. Sacando o que tinha na dispensa (leite talhado) e o que restava no terreiro (galinhas velhas), na base do improviso e na boa mão que Deus lhe para os temperos, nasceu um prato novo para acalmar o estômago das tropas: um frango frito à moda da Revolução. A receita agradou paladares e amansou o ânimo dos soldados. Cessado os embates, abaixada a poeira, a receita foi sendo repassada e replicada, geração após geração, até chegar até nós. Revoluções findam-se; a gula, nunca.

Frango à Revolução
1 frango caipira (ou de granja) grande, cortado em pedaços
2 colheres (sopa) de suco de limão
3 dentes de alho amassados
1 folha de louro picada
Sal e pimenta a gosto
4 colheres (sopa) de óleo de urucum (ver receita abaixo)
2 cebolas grandes, cortadas em rodelas
3 xícaras (chá) de coalhada
4 colheres (sopa) de cheiro-verde picado

Modo de preparo:
Em uma tigela, tempere o frango picado com o suco de limão, o alho, o louro, o sal e a pimenta a gosto. Cubra e deixe descansar por 3 horas ou de um dia para o outro, para o frango pegar melhor o tempero.
Aqueça o olho de urucum em panela, em fogo alto. Junte o frango e deixe dourar. Acrescente a cebola e refogue até ficar macia.
Adicione a coalhada, misture, tampe e deixe ferver. Reduze o fogo e cozinhe, mexendo de vez em quando, até o frango ficar macio.
Acrescente o cheiro-verde e misture. Prove o tempero e, se for necessário, junte mais uma pitada de sal e pimenta a gosto. Tire do fogo, passe para uma travessa e sirva.

Rendimento: 6 porções.

Como temperar o óleo com urucum:
5 colheres (sopa) de sementes de urucum
2 xícaras (chá) de óleo

Ponha o óleo em uma panela e misture as sementes de urucum. Mexa e aqueça em fogo alto até o óleo ficar bem vermelho. Tire do fogo, deixe esfriar e coe, para retirar as sementes do óleo. Reserve o óleo temperado para utilizar em outras preparações.

O urucum e a coalhada dão cor e sabor ao frango à Revolução. Um delicioso prato histórico!

Fonte:
FERNANDES, C. A Culinária Tradicional Paulista nos hotéis SENAC São Paulo. São Paulo: Editora SENAC, 1998. pp. 74-75.

Lagoinha já foi distrito de Cunha

Postagem da série “Hoje na História de Cunha”, da página Jacuhy, no Facebook.

Lagoinha possui uma história peculiar. Após conquistar sua autonomia política em 19 de fevereiro de 1.900, através da Lei n.º 38, quando a Vila de Lagoinha foi elevada à condição de município, mesmo ainda sem se constituir uma comarca, em 21 de maio de 1934, através do Decreto-Lei n.º 6.448, Lagoinha voltou novamente à condição de distrito, só que dessa vez do município de Cunha. Certamente que a decisão pegou todas as autoridades municipais de surpresa, tanto as cunhenses quanto as lagoinhenses. Cunha possuía um território enorme para uma Prefeitura com baixa arrecadação e Lagoinha jamais imaginaria que retornaria a distrito, muito menos de Cunha.

A decisão veio de uma canetada do interventor federal (que era nomeado pelo chefe de Estado) no estado de São Paulo, Armando de Salles Oliveira. Na época estávamos na vigência do Governo Provisório da Era Vargas, em sua fase final, instalado logo após a Revolução de 1.930. Salles evocava o decreto fundante da instituição do governo revolucionário de 1.930 (Decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930) para assinar o decreto-lei que extinguiu diversos municípios de São Paulo. Salles era um liberal, sócio do jornal “O Estado de S. Paulo”, apoiou o golpe de 1.930 e, descontente com a demora das eleições, apoiou a Revolução de 1.932. No entanto, em 1.933, Vargas, então chefe de Estado “provisório”, visando acalmar os ânimos paulistas após a guerra civil, nomeou-o para interventor federal em São Paulo e deixou claro que estava elevando ao cargo máximo do estado um aliado dos constitucionalistas, que haviam sido derrotados no campo militar. Em 1.935, Salles seria eleito governador de S. Paulo, já na fase constitucional da Era Vargas. Sonhava em ser presidente e concorreria nas eleições marcadas para 1.938, mas seu projeto político foi interrompido com a implantação do Estado Novo em 1.937 e suspensão das eleições e a implantação de uma ditadura protofascista. As razões alegadas por Salles para extinção de Lagoinha e mais 17 municípios paulistas constam nas considerações iniciais do Decreto: “não pódem, com seus proprios recursos, manter os encargos decorrentes de suas administrações, devido á exiguidade das respectivas rendas; considerando que a renda anual desses municipios, inferior a 25:000$000 (vinte e cinco contos de réis), em alguns deles não atinge a 10:000$000 (dez contos de réis), e é, na sua maior parte, aplicada somente com as despesas do funcionalismo, sem vantagem para os serviços publicos; considerando que é de toda a conveniencia a anexação desses municipios a outros mais prosperos e de melhores condições financeiras (…)”. Ou seja, as razões apresentadas parecem atender a um receituário liberal para Economia, visando corte de gastos públicos, diminuição do tamanho e presença do Estado e redução do funcionalismo, não muito diferente da PEC (Projeto de Emenda Constitucional) do Pacto Federativo, que o Governo Federal atual planeja implantar.

A anexação de Lagoinha a Cunha não agradou os lagoinhenses e luizenses. A comunicação entre Cunha e Lagoinha era péssima, feita por estradas de tropas e sempre em péssimas condições. Fora a distância. Enquanto São Luiz estava a 24 Km de Lagoinha, Cunha se encontrava a 45 Km. Parece que ao dar a canetada, olharam no mapa e acharam fazer sentido que, por Cunha ser maior e fazer fronteira com Lagoinha, a integração ocorreria naturalmente e sem problemas. Os luizenses, que tinham interesses políticos e comerciais em Lagoinha, também não gostaram do novo arranjo territorial. Em Lagoinha um movimento contrário a essa anexação foi encetado por Pedro Alves Ferreira, o “Pedro Mané”, um comerciante local. O movimento foi reforçado pela chegada do novo padre, Francisco Eloy de Almeida (Padre Chico), que passou a fazer coro contra a perda de autonomia e a distância do distrito da sede municipal. Um plebiscito chegou a ser organizado, visando tornar o distrito como parte de São Luiz.

Somente com a nova divisão administrativa do estado, fixada em 1.944, Lagoinha voltou a fazer parte do município de São Luiz. Para Cunha, como o contato com Lagoinha era mínimo, pouca diferença fez, tanto em sua vida política (engessada pelo Estado Novo) quanto na sua economia. Mas a luta dos lagoinhenses prosseguiu, com o intuito de reconquistar a autonomia administrativa. Em 23 de dezembro de 1.953, após muita luta política, Lagoinha reconquistou a sua emancipação territorial e administrativa. Diz a Lei Estadual n.º 2.456/1953 nas suas notas finais: “141 – O município de Lagoinha é restabelecido, com séde na vila de igual nome e com o território do atual distrito.” Foi decisivo o apoio de dois deputados estaduais à causa de Lagoinha, a saber, André Broca Filho e Alfredo Farah. Devido à emancipação política, em 03 de outubro de 1.954, foram realizadas as eleições para os cargos de prefeito, vice-prefeito e para composição da Câmara. Lagoinha contava, à época, com 1.094 eleitores legalmente inscritos. No dia das eleições compareceram e votaram apenas 787 eleitores, elegendo o prefeito: Pedro Alves Ferreira (PSD) (candidato único), com 710 votos; o vice-prefeito (na época, o vice era eleito separado do prefeito): José Maria Landim (PSD), com 542 votos; e os vereadores: José de Oliveira Santos (PSP), Geraldo Pereira Coelho (PSP), Albertino José Ferreira (PSP), Antônio Alves da Rocha (PSP), Bento Januário de Gouveia (PSP), Geraldo Antônio de Souza (PSD) e José Gonzaga de Campos (PSP). Sua reinstalação verificou-se no dia 01 de janeiro de 1955.

Assim, nesses 10 anos (1.934-1.944), por ser distrito de Cunha, tal como Campos de Cunha é hoje, Lagoinha era parte de nosso território em 1.940, quando o IBGE realizou seu recenseamento. Isso explica a queda de população verificada entres os Censos de 1940, quando Cunha teve uma contagem de 24.818 habitantes, e 1.950, quando o verificou-se um contingente menor, com 20.784 habitantes. Evidentemente que, embora o êxodo rural já estivesse em curso, a queda foi causada pela perda de território e da população residente nele. A aparente estabilização populacional de Cunha, a partir de meados do século XX, encoberta os impactos do êxodo rural na nossa estatística demográfica. As perdas migratórias expressivas que o município passou não se refletem negativamente nos recenseamentos, pois como a taxa de natalidade e fecundidade eram muito altas, compensava os impactos demográficos do êxodo na população total e mantendo a população em torno dos 20 mil habitantes.

Ano passado, na PEC do Pacto Federativo sugerida pelo Ministério da Economia, havia a proposta de que municípios pequenos e com baixa arrecadação perdessem sua autonomia política e passassem a integrar, como distrito, outro município mais sustentável. Essa proposta, bastante polêmica por sinal, visava reduzir o tamanho do Estado, com cortes de gastos públicos, objetivando o equilíbrio fiscal. A alegação do ministro neoliberal Paulo Guedes era que esses municípios pequenos eram caros demais para sua manutenção e funcionam como cabides de empregos públicos para cidades pequenas, que não buscavam outro meio de se desenvolver e aumentar sua arrecadação e obter, desse moto, autonomia financeira em relação aos Estados e União. Obviamente que a proposta foi rechaçada pelos deputados, com medo de perder votos em seus nichos eleitorais, além daqueles que apontavam a importância do Estado se fazer presente nos municípios pequenos e pobres, com equipamentos públicos e prestação de serviços básicos, contendo assim a migração maciça para cidades maiores e reduzindo as desigualdades sociais. Entre os municípios que poderiam perder seu status político na Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte estava Lagoinha. Muito provavelmente, se vingasse PEC liberal, retornaria a São Luiz do Paraitinga na condição de distrito.

Com o município de Lagoinha, Cunha divide além do território, parte de sua história, e muitas manifestações culturais e tradicionais, que caracterizam a Paulistânia, manjedoura da cultura caipira.

Fontes:
ALESP. Decreto n. 6.448, de 21 de maio de 1934: Extingue os municipios de Araçariguama, Buquira, Capoeiras, Espirito Santo do Turvo, Igaratá, Iporanga, Jataí, Lagoinha, Pilar, Pinheiros, Platina, Redenção, Ribeira, Ribeirão Branco, Ribeirão Vermelho, Sarapuí, Santa Cruz da Conceição e Vila Bela, e dispõe sobre sua anexação a outros municipios. Disponível em: < https://www.al.sp.gov.br/…/1934/decreto-6448-21.05.1934.html >, acesso em: 18 mai. 2020.
ALESP. Decreto-Lei 14.334, de 30 de novembro de 1944: Divisão administrativa e judiciária do Estado. Disponível em: < https://www.al.sp.gov.br/…/decreto.lei-14334-30.11.1944.html >, acesso em: 20 mai. 2020.
ALESP. Lei n. 2.456, de 30 de dezembro de 1953: Dispõe sôbre o Quadro Territorial, Administrativo e Judiciário do Estado, para o quinquênio 1954/1958 e dá outras providências. Disponível em: < https://www.al.sp.gov.br/…/lei/1953/lei-2456-30.12.1953.html >, acesso em: 21 mai. 2020.
IBGE. Cidades: História & Fotos. Disponível em: < https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/lagoinha/historico >, acesso em: 19 mai. 2020.
SANTOS, Rosângela I. T. C. dos. As capelas de roça no município de Lagoinha, SP. Lagoinha (SP): Clube de Autores, 2008.

Foto:
Ana Maria Coelho Moura (Ana do Zé Robertinho), da Festa do Divino de Lagoinha em 1.966, publicada no blog da Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Lagoinha – SP. Disponível em: < http://pnscl.blogspot.com/…/fotos-dia-da-festa-do-divino-es… >, acesso em mai. 2020.

PARA SABER MAIS:

Municípios da nossa região podem perder sua autonomia política, se aprovada for a PEC do Pacto Federativo:
https://www.facebook.com/Jacuhy/posts/2407871856137599
10 curiosidades sobre Lagoinha:
https://www.facebook.com/Jacuhy/posts/2575075362750580

10 curiosidades sobre Lagoinha – SP

Igreja Matriz e Cachoeira Grande: cartões-postais de Lagoinha, no interior de São Paulo.

1. RELIGIÃO: É o município mais católico de São Paulo. Em termos percentuais, segundo o Censo 2010, 93,4% dos lagoinhenses se declaram católicos romanos. Valor relativo bem acima dos registrados no estado e no país. O segundo município mais católico do estado é Ribeirão dos Índios, no Oeste, com 89,1%.
2. PADRES: Devido à importância da religião junto aos seus moradores, em Lagoinha os padres sempre tiveram um papel social e político relevante, destacando-se dois deles: padre Francisco Eloy de Almeida (Padre Chico) e padre Osmar Barbosa, ambos mineiros e já falecidos. O primeiro chegou a Lagoinha em 1.937. Logo se tornou líder religioso, comunitário e político, um defensor da fé e muito querido junto ao povo. A principal escola da cidade faz homenagem à sua figura. O segundo também foi um líder comunitário e muito conhecido e querido não só pelo povo de Lagoinha, mas por muitas pessoas do Vale. Sua clarividência, sempre negada por ele, e seus aconselhamentos eram considerados divinos e eram buscados por muitas pessoas que passavam por problemas. Também era um dos devotos da Menina Izildinha, uma menina nascida em Portugal em 1897 e falecida com apenas 13 anos vítima de leucemia e considerada santa. O catolicismo popular também é muito forte em Lagoinha e há entre muitos moradores a devoção à Sá Mariinha das Três Pontes (Maria Guedes), curandeira e vidente cunhense, considerada santa por muitos. Essa devoção é resultado da proximidade do bairro da Três Pontes com a zona rural lagoinhense, onde muitos moradores visitavam e se consultavam com Sá Mariinha.
3. PADROEIRA – A padroeira de Lagoinha é Nossa Senhora da Conceição. Lagoinha se tornou freguesia de São Luiz em 26 de março de 1.866. Por freguesia se entende paróquia, ou seja, a antiga capela passou a contar padre regular. A capelinha foi construída em meados do XIX, sendo que por volta de 1.863, a imagem da Virgem da Conceição foi trazida por tropeiros de Portugal, segundo a tradição, a pedido da família dos “Antocas” (os irmãos Joaquim e Francisco Antônio Ribeiro e Antônio Alves da Silva e suas respectivas esposas, antigos sesmeiros). Aliás, é a mesma padroeira de Cunha. Isso se deve à influência dos portugueses, pois a devoção à Imaculada Conceição, padroeira da nossa antiga Metrópole, é bastante antiga e interligada a própria história do país ibérico, sobretudo com os grandes acontecimentos decisivos para a independência e identidade nacional durante a Reconquista. Consta como um dos atos fundantes de Portugal, uma Missa pontifical de ação de graças, em honra da Imaculada Conceição, que foi celebrada em Lisboa, recém conquistada aos islâmicos, em 1.147, pelo primeiro Rei de Portugal, D. Afonso Henriques.
4. NOME: O nome Lagoinha tem relação direta com sua origem tropeira. A palavra “lagoinha” é um diminutivo de “lagoa”. Consta que o sítio onde está a cidade foi, desde o século XVII, um pouso de tropeiros. Estes usavam o lugar como paragem e ponto de apoio, em suas viagens comerciais entre as fazendas, vilas, portos e freguesias coloniais. E nesse lugar, por ser um ponto de descanso e reabastecimento, existia uma pequena lagoa, que servia como bebedouro para as tropas e para uso dos tropeiros, daí então vem o nome que os tropeiros batizaram o lugar: “Pouso da Lagoinha”. Em 1.863, chega na região a família dos “Antocas”. Oriunda de Ubatuba, essa devota família, assim que chegou para a sesmaria que havia recebido, resolveu doar uma gleba de terra no entorno do pouso, para que ali se construísse uma capela dedicada à Virgem Imaculada. Casa após casa, no entorno dessa capela começou a surgir o que viria a ser hoje a cidade de Lagoinha.
5. ELEITORES: Lagoinha possui mais eleitores do que habitantes. Em 2018 eram 5.041 eleitores para uma população total de 4.896 habitantes, segundo estimativa do IBGE para o ano de 2019. Apesar dessa situação causar estranheza e desconfiança, não há nada de errado com ela. É típica de municípios que sofrem perda de população por migração intermunicipal e êxodo rural, como ocorre aqui no Alto Vale do Paraíba, onde a mudança de município de residência não é acompanhada pela mudança de domicílio eleitoral. As pessoas mudam de cidade, mas preferem continuar votando na cidade natal, aproveitando a eleição para rever a família e amigos ou mesmo para participar do pleito no lugar onde possuem relação mais próxima com a política. Cunha também possui um número elevado de eleitores, se comparado à população residente. Consequentemente isso acaba gerando uma alta taxa de abstenção, por essa razão o Tribunal Regional Eleitoral tem sido mais exigente no recadastramento eleitoral no que concerne à comprovação de residência.
6. TAUBATÉ: Atualmente o município possui uma forte ligação e dependência em relação a Taubaté, apesar dos laços históricos e da maior proximidade com Guaratinguetá. Essa ligação com Taubaté se estreitou a partir de 1.981, com a pavimentação da Rodovia Nelson Ferreira Pinto (SP-153), que liga a cidade de Lagoinha com a vizinha São Luiz do Paraitinga.
7. FAZENDAS: Apesar da sede da Fazenda Santana ficar no município de Cunha, próxima à divisa com Lagoinha, os seus donos sempre tiveram mais ligação com Lagoinha e São Luiz do que com Cunha, com destaque para o coronel (da Guarda Nacional) Manoel Antônio Domingues de Castro, figura política importante no passado lagoinhense. Em 1.873, ocupava o cargo de subdelegado na então freguesia pertencente a São Luiz do Paraitinga. Chegou a ser deputado estadual em 1.907. E em 1.892 conseguiu que fossem transferidas para a Vila de Lagoinha as terras de suas fazendas, a saber: as fazendas “Santa Anna” (pertencente a São Luiz do Paraitinga na época) e “João Ferraz” (atual bairro do Ferraz, município de Cunha). Com o advento do República, acabou por prevalecer o princípio da divisa intermunicipal por vertentes e não a partir de interesses particulares.
8. FRONTEIRAS: Vários bairros rurais de Cunha se comunicam mais com Lagoinha do que com nossa cidade. Isso se deve à proximidade e facilidade de acesso com a cidade vizinha. Por estarem na região de fronteira, é mais fácil ir até Lagoinha do que vir até Cunha. É o caso, por exemplo, do bairro do Barro Vermelho. Geograficamente, é Cunha; no entanto, os moradores votam, estudam, fazem consultas médicas, negócios e compras em Lagoinha. Por conseguinte, gera atrito entre as duas prefeituras, pois ambas querem se livrar da prestação de serviços públicos a esses moradores, que no final acabam sendo prejudicados e tendo que reivindicar seus direitos por causa de sua localização. Claro que, do ponto de vista legal, o atendimento aos moradores compete à Prefeitura de Cunha, pois estão dentro de nossa circunscrição territorial e nos recenseamentos, que servem de base para o repasse de verbas estaduais e federais, os moradores entram na soma da população de Cunha. Nos últimos tempos, acordos entre as duas prefeituras têm sido feito no tocante à manutenção das estradas rurais, principal queixa desses moradores.
9. TURISMO: A Cachoeira Grande, no bairro do Faxinal, é o principal ponto turístico de Lagoinha. Com 38 metros de queda livre, é uma das maiores e mais bonitas da região. A cachoeira é formada pelo rio do Pinhal, afluente do rio Paraitinga, que corta o município no sentido oeste-leste. Lagoinha está cercada por duas serras: a do Quebra-Cangalha (Serra Fria ou dos Forros) ao norte e ao sul a do Mar (Serra do Alto do Chapéu).
10. TRADIÇÃO: Lagoinha é uma das cidades mortas do Vale Paraíba, tão bem descritas pela narrativa ácida de Monteiro Lobato. Assim como Cunha, o município entrou em estagnação econômica com a subutilização dos caminhos serranos para escoamento da produção valeparaibana, depois da inauguração da Estrada de Ferro Central do Brasil e com o fim do ciclo do café na nossa região. Atualmente conta com 220 estabelecimentos agropecuários, uma produção leiteira de 25 mil litros por dia e mais 20 mil cabeças de gado. É uma das maiores bacias leiteiras do estado e um dos centros da pecuária de corte da RM do Vale do Paraíba. Se no passado a falta de indústrias e a perda de dinamismo econômico eram entraves, hoje o fato de ser uma cidade bucólica e distante dos grandes centros industriais é um fator que impulsiona o turismo rural e o ecoturismo, atraindo visitantes ansiosos para explorar as belezas com que Lagoinha foi, generosamente, agraciada pela natureza. E tudo isso em um lugar que vem conservando a fé, a tradição e os valores que, repassados geração a geração desde tempos imemoriais, fez esse rincão de São Paulo ser um bastião da mais autêntica cultura paulista.

Mapa e dados de Lagoinha – SP. Cartografia: Jacuhy.

FONTES:
A religiosidade de Lagoinha, SP. Trip Rural, 30 ago. 2019. Disponível em: < http://www.triprural.org.br/a-religiosidade-de-lagoinha-sp/>, acesso em: 18 mai. 2020.
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO (ALESP). LEI N. 22, DE 26 DE MARÇO DE 1866. Eleva à categoria de freguesia a capela de Nossa Senhora da Lagoinha, e autoriza o governo provincial a determinar as divisas entre essa Freguesia e os municípios de São Luiz, Cunha, Guaratinguetá e Pindamonhangaba. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/…/…/lei/1866/lei-22-26.03.1866.html, acesso em: 20 mai. 2020.
______. LEI N. 85, DE 6 DE SETEMBRO DE 1892 (Transfere para a villa de Lagoinha fazendas do cidadão Manoel Antonio Domingues de Castro). Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/…/l…/lei/1892/lei-85-06.09.1892.html>, acesso em: 19 mai. 2020.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Lagoinha: São Paulo. Rio de Janeiro: IBGE, 1973. 1 carta topográfica, color., 4465 x 3555 pixels, 5,50 MB, jpeg. Escala 1:50.000. Projeção UTM. Datum horizontal: marégrafo Imbituba, SC, Datum vertical: Córrego Alegre, MG. Folha SF-23-Y-D-III-2. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/…/GEBIS%…/SF-23-Y-D-III-2.jpg>. Acesso em: 19 mai. 2020.
______. Mapa Municipal Estatístico: Lagoinha – SP. Escala: 1: 50.000. IBGE, Rio de Janeiro: 2011. Disponível em: <ftp://geoftp.ibge.gov.br/…/mapas_municip…/sp/lagoinha_v2.pdf>, acesso em: 20 mai. 2020.
______. Produção da Pecuária Municipal 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.
INSTITUTO CHÃO CAIPIRA MALVINA BORGES DE FARIA. Lagoinha. Disponível em: <http://www.chaocaipira.org.br/cidades/lagoinha>, acesso em: 20 mai. 2020.
LUNÉ, Antônio J. B. de; FONSECA, P. D. da. Almanak da Província de São Paulo para 1873. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Arquivo do Estado, 1985.
PREFEITURA MUNICIPAL DE LAGOINHA. Turismo religioso. Disponível em: <https://www.lagoinha.sp.gov.br/…/…/0/9/858/Turismo-Religioso>, acesso em: 20 mai. 2020.
SANTOS, Rosângela I. T. C. dos. As capelas de roça no município de Lagoinha, SP. Lagoinha (SP): Clube de Autores, 2008.
SILVA, Altair V. da. Lagoinha – SP: sua origem e razões de sua localização. Disponível em: < https://youtu.be/tOxP5oJ_ySE>, acesso em: 18 mai. 2020.
SPINELLI, Evandro. Osmar Barbosa (1928-2011): padre Osmar, o milagreiro que previa o futuro. Folha de S. Paulo. Cotidiano. Obituário. São Paulo, 7 nov. 2011. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0711201115.htm>, acesso em: 20 mai. 2020.
VELOSO, João J. de O. Fazenda Sant’anna – Roteiro Turístico e Histórico de Cunha. Cunha: Museu Municipal Francisco Veloso, dez. 2019. Disponível em: <https://www.facebook.com/joaoveloso.veloso.5/posts/10206544664212941>, acesso em 19 mai. 2020.

Folia de Reis de Caixa de Cunha

Na foto de 1.947, tirada pelo sociólogo Alceu Maynard de Araújo, aparece o Alferes (chefe da folia) – José Tomaz da Silva (Tomazinho); o Mestre-Violeiro – Paulo Rita (do bairro da Capivara); o tocador de adufe (pandeiro) – José Prudente, na época com 12 anos de idade, o mais moço da folia; e outros componentes não identificados.

Tradições se acabam. Infelizmente. Porque elas formam a nossa identidade cultural. Porque elas se perdem na massificação de culturas hegemônicas promovidas pela Globalização. Resistir é preciso. Relembrar é resistir. Há muito tempo, a Folia de Reis de Caixa percorria a extensa zona rural de Cunha, passando por seus bairros, sítios e fazendas, entre os dias 24 de dezembro até 06 de janeiro do ano seguinte (Dia de Santos Reis), podendo prolongar-se até dia 2 de fevereiro (Dia de Nossa Senhora das Candeias ou da Luz) ou até 6 de janeiro (Dia de Santo Reis). Esse período festivo fazia parte da Festa do Deus-Menino, que celebrava o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, conforme a liturgia católica. A Folia de Reis era a popularização da celebração religiosa. Era uma forma de como o povo interpretava as verdades de fé. E celebrava o nascimento, isto é, a vida. Saíamos foliões sempre à noite, imitando os Reis Magos, que viajam guiados por uma estrela. Cantando e louvando o nascimento do Menino Deus e pedindo óbolos, renovavam a fé e a esperança pelos rincões de Cunha daquele tempo. Não havia televisão, rádio mesmo era difícil, internet, então, nem se pensava em existir… Não era só fé, mas divertimento e congraçamento comunitário. Havia também a Folia de Reis de Banda de Música, mas essa só se apresentava na cidade.

A Folia de Reis de Caixa de Cunha percorria a imensa área rural cunhense, cantando e esmolando. Paravam nas casas que tinham presépio (outra tradição cunhense), por mais rústico que fossem. E quase sempre eram mesmo. O povo era pobre em recursos materiais, mas abundava a fé a fartura de honestidade, bondade, hospitalidade, virtudes que dinheiro nenhum podia comprar. A Folia tinha os seguintes participantes: alferes, mestre-violeiro, contra-mestre, tocador de adufe, Tocador de caixa, além deles a Folia contava com os palhaços (Pai João, Catirina, Palhaço) e as pastorinhas, formada por meninas e vestidas a caráter.

Notação musical de “Visita ao Presépio”, da Folia de Reis de Cunha, feita por Alceu Maynard Araujo, 1947.

A Folia de Reis de Cunha foi estudada por Alceu Maynard Araujo, sociólogo paulista e grande folclorista. E foi ele quem popularizou a música “Visita ao Presépio”, da Folia de Reis de Cunha, muito executada e cantada por diversos intérpretes e quase nunca creditada à nossa Folia de Reis. A saudosa Inezita Barroso, por exemplo, gostava muito de cantá-la em seu programa “Viola, minha viola”, na TV Cultura (veja vídeo abaixo), mas sempre creditava assim: “recolhida por Alceu Maynard Araujo”, sem dizer onde e nem de quem o eminente sociólogo teria recolhido. É um desleixo do programa, pois o próprio Araujo deixou registrada a letra, as notas e autoria correta em dois de seus livros “Cultura Popular Brasileira” (2. ed., 1973, p. 27) e no “Canta Brasil” (1957, p. 43 – 45) e no artigo “Folia de Reis de Cunha”, que saiu na Revista do Museu Paulista, volume III, p. 424-425, 1949. A música “Vista ao Presépio” (mais conhecida pelo seu primeiro verso “Acordai quem está dormindo”) é patrimônio cultural do município de Cunha.

A vida imita o cinema

Três estrelas decadentes da sétima arte.

Por Mário Ferreira dos Santos

O cinema tem ido buscar na vida o tema para os seus mais eloqüentes dramas. E muitos olhos humanos têm chorado as dores e as tragédias das heroínas da tela e os corações têm pulsado ante a emoção da vitória dos seus heróis. O cinema tem imitado a vida. Muitas vezes tem-na enobrecido, ornamentando-a com histórias fugidas da realidade, e que povoam os sonhos, de ilusões, terminando, quase sempre com o clássico “happy end”, tão a gosto das platéias vulgares.

Há pouco tempo, o cinema projetou, na tela da tela da vida, esse final de filme: É outono e o vento varre as ruas de Nova Iorque. Num tribunal, uma mulher comparece. A voz é apagada e as roupas envelhecidas não escondem um certo porte aristocrático. No rosto descuidado, perduram ainda os traços de uma beleza apagada:

— Sr. Juiz, meu pedido é o mais justo. Tenho uma filha e o meu ex-marido, pai dessa menina, é rico. Ele bem poderia dar uma pensão que permitisse continuar a educação de minha e de sua filha, que está num colégio, onde trabalha para poder se educar.  Como não tenho nada e vivo miseravelmente e sem trabalho, sou forçada a tirá-la do colégio, e ela terá que seguir os azares da vida, sem ter recebida a educação necessária que lhe garanta o seu futuro. Estou com muitas mensalidades atrasadas e, ultimamente, tudo me tem corrido mal. Não tenho a quem apelar, senão ao pai de minha filha. Ele é o príncipe M’Divani, e nega-se a atender-me. Por isso recorro, hoje, à justiça.

O juiz franze a testa e carrega o sobrolho. Põe sobre a mulher o seu olhar profissional, admira aqueles cabelos louros desalinhados, e observa atentamente em silêncio o vestido velho que cobre o seu corpo. Por sua imaginação, talvez passem reminiscências de emoções que já experimentara. Talvez recorde ainda trechos de músicas que não se apagaram de sua memória, e tenho nos olhos uma imagem quase desfeita de cenas que já vivera. Fecha levemente os olhos como para fitar melhor, e diz lentamente:

— Não está você em condições de sustentar a sua filha?

— Não, sr. juiz…

— Não ganhou você milhares de “dólares” no cinema e no teatro?

— Sim, ganhei… – responde ela abaixando a cabeça – ganhei… mas hoje estou na miséria. Não tenho casa, nem sempre tenho o que comer…

— Isso é incrível!!! Onde mora você, Mae Murray?

— No Parque Central, sr. juiz. É ali, num banco, que eu tenho passado estas três últimas noites…”

Mae Murray, a estrela que dominou o céu cinematográfico até 1929, a intérprete de “Viúva Alegre”, “Saxofonomania”, “Fascinação”, e tantos outros que foram os grandes êxitos do passado, não tem casa, não tem roupa, não tem com quem possa educar a sua filha.

Dirão: por que não foi providente e não juntou o necessário para garantir o seu futuro? Mas é o triste destino das cigarras humanas, esse. Aqueles que levam a vida dando o seu trabalho inteligente para divertir as multidões, que pararam à luz da ribalta para receber os aplausos das platéias emocionadas, nem sempre possuem o espírito utilitário e providente dos seres “normais” e comuns. Vivem a glória do momento que os embriaga, e o dia de amanhã é sempre algo longínquo que os olhos não vêem como uma fatalidade. São anormais ante a normalidade corriqueira da vida. E a miséria é, às vezes, o epílogo de suas glórias.

John Gilbert, outro grande astro do passado, galã de celulóide que arrebatou os corações femininos, morreu na mais extrema miséria.

O grande David Griffith, o diretor máximo da tela dos tempos do cinema mudo, viveu implorando, de estúdio em estúdio, que lhe dessem um pouco de trabalho, e lhe concedessem mais uma oportunidade, pois sabia que ainda tinha talento para criar algo de belo e imenso.

Não é de admirar que hoje os artistas sejam utilitários, porque hoje vivemos num mundo apenas utilitário, até que o homem, faminto de idéias, vá procurá-los outra vez.

Texto extraído do livro “Páginas Várias”, 2. ed., 1963, pág. 170 – 172, do filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos.

A História de Cunha

Por João Veloso *

Cunha: 300 anos de História!

História

A atual região de Cunha – antiga Facam e que veio a se denominar Facão ainda nos primórdios do referido século –, desde o início do século XVII já era palmilhada por paulistas (vicentinos) e paratienses, que aproveitavam as trilhas dos indígenas guaianases (muitas delas velhos caminhos utilizados por animais, e que foram sendo ampliados pelos indígenas na Serra do Mar, por onde estes transitavam), para atingir o extenso campo de caça e o constante local de troca de produtos agrícolas: o Vale do Paraíba. A primeira incursão oficial à região foi a entrada exploradora organizada pelo filho do então governador do Rio de Janeiro, Martim Correia de Sá, saindo daquela localidade com setecentos homens brancos e dois mil indígenas escravizados, no ano de 1596. A expedição transpôs a serra de Paraty em 1597 e, ao atingir a região que logo em seguida se denominaria Facão, atravessou os rios Paraibuna e Paraitinga, alcançou as margens do rio Paraíba entre São José dos Campos, Taubaté e Pindamonhangaba, e adentrou as terras do Sul de Minas Gerais.

A passagem de Martim Correia de Sá pela picada da serra de Paraty, sertão adentro, evidencia a importância desse caminho, que passa, a partir de então, a ser utilizado por outras expedições, não apenas as oficiais, como também as particulares.

O Desbravamento

Com a descoberta das primeiras jazidas de ouro nas “minas gerais”, a partir de 1695 é que a região do Facão começa a ser palmilhada e desbravada de modo mais acentuado por aventureiros portugueses, por portugueses já radicados na região vale-paraibana e por outros moradores desses locais, todos à procura de enriquecimento fácil nas “Gerais”. Desse modo, a região do Facão torna-se passagem obrigatória como “boca do sertão”, no percurso litoral – região das “minas gerais” –, e começa o povoamento desordenado do Facão.

Devido ao trânsito intenso à extensa região do Facão, o local se torna também chamariz de vadios, desertores da Marinha e até de criminosos, que se ajuntam aos novos moradores da região e vão compondo esparsamente aquilo que logo se denominaria povoado.

Trânsito agitado. De um modo geral, o lugarejo sofre consequência dessa azáfama, que durou por volta de 30 anos – tempo de todas as jazidas serem descobertas. O povoado do Facão é o local de descanso e de provimento das tropas de ouro coloniais (ouro em pó, inicialmente carregado às costas pelos escravos).

O Clima, o Vale e a Montanha

A excelência do clima foi um dos fatores que justificaram o estabelecimento dos europeus e demais pessoas na região do Facão, entre o final do século XVII e o começo do século XVIII.

No trajeto obrigatório para as “minas gerais”, os exploradores e aventureiros portugueses, sesmeiros da região vale-paraibana e demais pessoas, que se tornariam os primeiros povoadores do

Facão, tiveram de se curvar ao impacto causado pelo panorama agradável, deslumbrante e ímpar da majestosa região. E, em contato com a terra, viram-na fértil, dotada de clima ameno, salutar e de águas límpidas, diferentes daquelas situadas no litoral, local das primeiras povoações.

A Povoação do Facão

De antigos povoamentos dispersos, o extenso espaço passou a ter a sua fundação oficial como Povoação do Facão em 1724, transformando-se, logo mais, entre 1748 – 1749, em Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão, e atraindo grande fluxo de interessados no solo fértil para a agricultura, aliado ao clima temperado; e ainda nas atividades de tropeirismo, tudo isso até aproximadamente o início do século XIX, quando a região já não mais dispunha de terras agricultáveis localizadas em setores privilegiados que margeavam os principais meios de acesso.

Um dos núcleos esparsos de povoamento da região do Facão se localizava nas cercanias da atual cidade, onde havia a capelinha de Nossa Senhora do Facão, erigida antes de 1700, no Alto do José Dias ou Alto da Mantiquira, bem na lateral esquerda do acesso ao atual bairro urbano Vila Rica. Como toda a terra do Facão não era ainda considerada povoação oficial, essa capelinha, situada na parte alta da região – e que tinha a imagem de Nossa Senhora do Facão e outras imagens, segundo dados históricos –, não representou, oficialmente, a primeira capela da região e nem marco do início da povoação.

Fundação

A fundação oficial da região do Facão deu-se em 1724, pela Vila de Santo Antonio de Guaratinguetá, a qual pertencia, com a edificação da Capela de Jesus, Maria e José, pelo povoador Capitão Luiz da Silva Porto, em seu sítio, no bairro rural da Boa Vista. Primeiramente, no início de 1724, um núcleo mais organizado de moradores se estabeleceu no bairro rural do Campo Alegre, aquém da Boa Vista; e ainda nesse mesmo ano, o referido grupo de povoadores se deslocou para a Boa Vista – antigo pouso de tropeiros, e aí foi construída a citada capela pelo dono das terras, iniciando-se consequentemente, a povoação oficial do Facão – que era a denominação antiga de Cunha.

Por outro lado, as terras em derredor da citada capelinha do Alto da Mantiquira atraíam um contingente razoável de povoadores com maior expressão social e econômica, por se situarem no meio do roteiro das tropas, numa região bem aprazível. Essas terras – que se seguiam do Bairro do Jacuizinho até o morro do Facão (Morro Grande) – pertenciam ao Capitão José Gomes de Gouveia e sua mulher, dona Maria Nunes de Siqueira.

Desse modo, com o interesse de povoadores em se estabelecerem em suas terras, o Capitão José Gomes de Gouveia procedeu a transferência da Capelinha de Nossa Senhora do Facão, com todas as suas imagens e alfaias, para a capela recém-inaugurada em 1731, no planalto contíguo em suas terras, denominando-a Capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão.

Uma vez desativada a capelinha do Alto da Mantiquira, a região, a partir de 1731, passa a contar com duas capelas: A capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, erigida em 1724 e que foi o marco oficial da povoação e fundação da região do Facão; e a capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão, inaugurada em 08 de dezembro de 1731.

A capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, também denominada popularmente capela de São José, ou capela da Boa Vista, desde a sua edificação em 1724, mantinha capelão particular para celebrar missas a expensas do seu fundador, Capitão Luiz da Silva Porto, ou ainda da autoridade episcopal da época. Após a devida licença para sua bênção, efetivada em 1º de abril de 1742, pelo vigário da vara do Distrito, padre José Alves Vilela, a capela também passou a realizar casamentos e batizados.

De 1742 a 1746, em ambas as capelas se celebravam concomitantemente missas e se realizavam casamentos e batizados. A capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, nos anos subsequentes à sua bênção em 1742, também atuou como freguesia, pois o instituidor mantinha pároco na mesma, a qual chegou, por esse motivo, a ser considerada freguesia interina, devido inclusive à sua importância na região do Facão, o que evidenciava a prevalência da capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista sobre a recém-edificada capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão.

SINOPSE HISTÓRICA:

  • A povoação e fundação oficiais da região do Facão se deram com a edificação da capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, em 1724;
  • A inauguração da capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão, construída pelo Capitão José Gomes de Gouveia, em suas terras, ocorreu em 8 de dezembro de 1731;
  • A capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão tornou-se sede da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão (criada entre 1748-1749); enquanto a capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista continuou funcionando normalmente, para a alegria de seus devotos;
  • Em 15 de setembro de 1785, a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão é elevada à condição de Vila de Nossa Senhora da Conceição de Cunha. O novo nome é dado em homenagem ao então governador da Província de São Paulo, Capitão-General Francisco da Cunha e Menezes. Desse modo, emancipada a nova vila política e administrativamente da Vila de Guaratinguetá, cria-se município próprio, com sua primeira câmara municipal, cadeia e pelourinho;
  • Em 20 de abril de 1858, a Vila de Cunha eleva-se à condição de Cidade pela Lei Provincial de Nº 30, sancionada pelo presidente da Província, Senador José Joaquim Fernandes Torres através do decreto da Assembleia Provincial de 19 de abril de 1858;
  • Em 29 de março de 1883, o Município torna-se Comarca por Lei Provincial de nº 27, classificada por decreto do Ministério da Justiça de 23/12/1889, e instalada em 10/01/1890;
  • O Distrito de Campos de Cunha (ex-Campos Novos de Cunha) foi criado por Lei Municipal de nº 5, de 08/03/1872. O topônimo Campos Novos de Cunha foi simplificado para Campos de Cunha pelo Decreto-Lei estadual de nº 9073, de 31 de março de 1938, e fixado pela Lei nº 9775, de 30 de novembro de 1938
  • Em 28 de outubro 1948, cria-se a Estância Climática de Cunha;
  • Em 12 de setembro de 1972, através da Lei Municipal de nº 222, criaram-se o brasão e outros símbolos municipais, de autoria de Manoel Galvão Moreira e confeccionados oficialmente pelo heraldista Alcinoé Antônio Peixoto de Faria;
  • Criado em 1998, o Hino Municipal, cuja letra fora elaborada pelo Professor Ernesto Veloso dos Santos, recebeu a melodia, composta por Antonio Benedito dos Santos (Tonico Capítulo), e orquestração oficial para banda de música e coro, pelo Maestro Professor Victor Amato dos Santos. O Hino foi oficializado em 12 de maio de 1999, através da Lei Municipal nº 819/99;
  • Aprovada na sessão ordinária realizada pela Câmara Municipal de Cunha em 20 de novembro de 2017, e sancionada no dia 24 de novembro do mesmo ano, a Lei Municipal nº 1569/2017 oficializou a capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista como o marco zero da Fundação de Cunha, assim como fixou a data de comemoração do aniversário local no dia 19 de março de cada ano, com a contagem da idade de Cunha a partir do ano de 1724.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Arquivo do Museu Francisco Veloso, Estância Climática de Cunha.

Atas da Câmara Municipal de Cunha – 1947-1948.

FERRAZ, Mário Sampaio. Cunha. São Paulo: Secretaria da Agricultura e Comércio do Estado de São Paulo / Diretoria de Publicidade Agrícola, 1940.

SILVEIRA, Carlos da. Documentos Interessantes sobre Cunha. Revista do Arquivo Municipal: São Paulo, 1939.

VELOSO, João José de Oliveira Veloso. A História de Cunha – 1600-2010 – Freguesia do Facão: A Rota da Exploração das Minas e Abastecimento de Tropas. Centro de Cultura e Tradição de Cunha: São José dos Campos/SP: JAC – Gráfica e Editora, 2010.

CUNHA, Mário Wagner Vieira da. O Povoamento no Município de Cunha In: Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia, II:641-49, 1944.

Texto publicado no sítio eletrônico oficial da Prefeitura Municipal da Estância Turística de Cunha, São Paulo: < http://www.cunha.sp.gov.br/a-cidade/historia/ >. Acesso em: 27 jun. 2021.

* João José de Oliveira Veloso (1945 – 2021), foi um professor, tradutor e historiador cunhense. Atuou como professor da rede pública de ensino, lecionando Língua Portuguesa e Literatura e Língua Estrangeira Moderna (Inglês) durante toda sua vida. Era formado pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Foi membro do Instituto de Estudos Valeparaibanos (IEV) e diretor e fundador do Museu Municipal Francisco Veloso e do Centro de Cultura e Tradição de Cunha. Foi criador do COMPHACC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural de Cunha). É autor de inúmeros livros e artigos sobre a história de Cunha, fruto dos seus 40 anos dedicados a pesquisar a história do lugar, com destaque para o livro “A História de Cunha”, lançado em 2010, com mais de 500 página de sólida pesquisa historiográfica em fontes primárias. Este artigo publicado em dezembro de 2017 e se encontra disponível no site da Prefeitura de Cunha.

Grupo Memória Cunhense: revivendo histórias e matando saudades

Muitas fotos antigas de Cunha e de seu povo podem ser encontradas no grupo Memória Cunhense.

Outono de 2.012. Os cunhenses, não só daqui, mas os dispersos por outras paragens, resolveram que era chegada a hora de invadir a rede social do Mark Zuckerberg, deixando juntar mato nas hortas de “colheita feliz” do Orkut. Cingidos com chapéu de palha e armados com enxada na cacunda partiram todos para o “Feice”. E assim que chegaram, trataram logo de colonizar o novo espaço virtual, demarcando o território com café, farinha, pinhão, preocupação com a vida alheia e muito “ar”, “er”, “ir”, “or”, “ur” para todos os lados. Porém, trouxeram consigo muitas postagens interessantes e saudosistas sobre Cunha e seu povo. Já que a Globo não mostra Cunha mesmo (nem quando houve o “L’Étape Brasil”, lembram?), nós mostramos. E do nosso jeito! Com muito sentimento envolvido, porque Cunha é nossa pátria e o nosso bairrismo interiorano “imporrrta, sim, senhorrr”.

E foi no meio de tantas postagens proveitosas e desencontradas que se ocultavam no feed de notícias e que desapareciam nos algoritmos da rede, que a doutora Vânia Zaccaro, “cunhêra raiz” e delegada de Polícia Civil, resolveu pôr ordem na casa. Teve então a ideia de criar um grupo que reunisse todas as postagens sobre Cunha. Para tal empreitada convidou o professor e escritor Victor Amato dos Santos, historiador e maestro da Banda Furiosa, para manter as publicações afinadas com o propósito do grupo. E chamou o Paulo Henrique de Campos Reis, que carrega no sangue a saga dos tropeiros, para transportar para o espaço virtual conteúdos que estivessem perdidos pelos sertões da rede social. E foi assim que, em 22 de junho de 2.012, foi criado o grupo Memória Cunhense com algumas dezenas de membros.

As primeiras postagens e colaborações foram feitas pelos próprios idealizadores, já que tudo aquilo era novidade para muitos e “nóis”, caipiras, somos ressabiados por natureza ante qualquer modernidade. O professor Victor já dispunha e publicara em seu perfil um riquíssimo material de cunhenses inolvidáveis de outrora (Tio Malaquias, Zé Veloso, Zé Varda, Seu Ubirajara, Tia Ção, Victor Amato & Maria Tereza Fornitano, entre outros). Então coube a ele inaugurar e abastecer o grupo nos primeiros dias, trazendo ao público a memória de tanta gente boa desta terra que, quando viva, era indispensável; e mesmo morta, é inesquecível. O Paulo Reis publicou o relato de seu pai, Sr. Roque Inácio, um dos últimos tropeiros de Cunha. E a Vânia resolveu aguçar a nossa memória gustativa, publicando a tradicional receita do bolinho de arroz, que tanto sucesso faz nas alvoradas da Festa do Divino, iguaria cunhense por excelência. A memória compreende várias dimensões do ser humano, passando, inclusive, pelo estômago.

À medida que o grupo ia crescendo e ganhando novos membros, o alcance das postagens se ampliava e novas contribuições foram surgindo. A quantidade de fotos e informações postadas aumentava diariamente. Os baús familiares foram se abrindo, fotografias antigas eram digitalizadas e lembranças diversas eram compartilhadas. A cada nova postagem, uma grata surpresa. Em cada surpresa, uma emoção. Para o cunhense ausente, que migrou, mas que manteve os laços afetivos, familiares e de pertencimento ligados a esta terra, relembrar é reviver. E reviver é sentir de novo. E assim, foto após foto, comentário após comentário, foi-se tecendo a memória coletiva de tanta gente dispersa e desencontrada, trazendo a lume o que foi olvidado, mas que não devia ter sido esquecido nunca. E quantos reencontros não aconteceram nos comentários? Reencontro com o passado, com o esquecido, com os parentes, com os amigos, com os lugares, consigo mesmo e com a comunidade. E quantos desses reencontros não começaram com a peculiar indagação: “Ocê é fio di queim?”. Frase-gatilho para despertar uma boa prosa e tantas reminiscências.

O professor Victor aponta que o sucesso do grupo se deve à seriedade e qualidade dos conteúdos postados, o que tornou o Memória Cunhense uma fonte de pesquisa para estudantes, professores, curiosos e interessados na História local, graças à “riqueza e precisão de informações nas publicações feitas nele quase que diariamente pelos participantes/colaboradores”, arremata.

Sem dúvida que o lançamento do livro “A História de Cunha”, pelo saudoso professor e historiador João Veloso, em setembro de 2.010, despertou o interesse dos cunhenses para com o seu passado e contribuiu para o surgimento de grupos de natureza memorialista e histórica. Sobre essa questão, o professor Victor acredita que o Memória Cunhense é um complemento ao livro do João Veloso, pois dá voz e vez ao povo cunhense para narrar a sua própria História. Esse pensamento converge com o objetivo da Vânia ao criar o grupo, pois conforme relato seu: “achei uma boa ideia reunir essas fotos, a maioria de anônimos ou pessoas que, embora não tivessem grande relevância para História oficial da cidade, estavam presentes no imaginário dos habitantes de Cunha”.

Foi também no Memória Cunhense que a ideia de se retificar a data de fundação do município de Cunha ganhou força e apoiadores, gerando muitos debates e questionamentos. Até que em 2.017, em um movimento encetado pelo professor Victor e respaldado nas pesquisas do historiador João Veloso, três audiências públicas ocorreram na Câmara de Cunha para debater a questão. Concluídas as audiências, um projeto de lei foi aprovado pelos vereadores e sancionado, posteriormente, pelo então prefeito Rolien Guarda Garcia, estabelecendo o dia 19 de março de 1.724 como data oficial de fundação do município de Cunha.

Em 2020, o grupo já contava com um acervo virtual de mais de 4 mil fotos, 50 mil comentários e mais de 7 mil membros que interagiam e colaboravam ativamente nas postagens. E tudo isso está acessível a todos, pois o grupo é público. O Memória Cunhense é único porque foi pioneiro e precursor de outros grupos similares em municípios vizinhos. É único porque tem cumprido à risca a sua missão de matar a saudade e fazer reviver o que foi esquecido. Continua firme e forte em seu propósito inicial de ser uma exposição permanente e aberta para as belezas da Cunha de ontem, de hoje e de sempre, pois, como disse o poeta:

” (…)

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão. “

Carlos Drummond de Andrade, in “Memória”.
Imagem da postagem da série “Hoje na História de Cunha”, da página Jacuhy. O fundo é formado por fotos que estão no acervo digital do Memória Cunhense.

Fontes:

Carlos Drummond de Andrade. Memória (poema). Disponível em: < https://www.escritas.org/pt/t/1779/memoria > , acesso em jun. 2020.

Grupo público Memória Cunhense (Facebook). Disponível em: < https://pt-br.facebook.com/groups/memoriacunhense/ > , acesso em jun. 2020

Relato escrito concedido pela Dra. Vânia Idalira Zaccaro de Oliveira, advogada, delegada e criadora do grupo (via Messenger). Guaratinguetá, junho de 2.020.

Relato escrito concedido por Victor Amato dos Santos, professor, historiador e criador do grupo (via Whatsapp). Cunha, junho de 2.020.

Imagens: Banco de imagens do grupo Memória Cunhense (Facebook).

Observações: Agradeço a contribuição e a gentileza da Vânia e do Victor por atender à solicitação da página prontamente, enviando os relatos que embasaram esta postagem.

Texto escrito originalmente para página do Facebook “História de Cunha” (atual Jacuhy), postado em 22 junho de 2.020.

10 curiosidades sobre Cunha

Cunha: Cidades das Serras

1 – Seu antigo nome era “Facão”. Somente em 1.785, com a independência política-administrativa, passando a ser então um município, é que denominar-se “Villa de Nossa Senhora da Conceição de Cunha”, uma homenagem a Francisco da Cunha e Meneses, governador e capitão-general da Capitania de São Paulo de 1.782 a 1.786, responsável pela outorga de sua elevação à condição de vila. A ereção da capela de Jesus, Maria e José, no bairro da Boa Vista, no ano de 1.724, é considerado o evento fundador.

2 – Possui o maior rebanho bovino do Vale do Paraíba e é uma das maiores bacias leiteiras do estado. Por isso é tão comum encontrar deliciosos queijos artesanais pelas roças de Cunha. No passado foi grande produtora de toucinho, milho e fumo: produtos agrícolas que abasteciam a zona cafeeira do Vale do Paraíba. O turismo é atividade econômica recente, desenvolvida nas últimas décadas, impulsionada pela pavimentação da Estrada-Parque Paraty-Cunha. Seu passado econômico sempre esteve ligado à agricultura familiar e de subsistência e ao tropeirismo, já que era pouso obrigatório entre o sertão e o litoral. Era uma espécie de “celeiro do Vale”.

 3 – No passado, antes da chegada dos colonizadores portugueses, o planalto cunhense era povoado pelos índios Guaianás. Esse povo originário abriu vários caminhos ligando o planalto até a costa atlântica. Andejos, exímios caçadores e coletores, esse povo autóctone era nômade e migravam sazonalmente: no verão viviam na serra; no inverno desciam para beira do mar. Pessoas ligeiras no esgueirar-se pelas matas densas, de baixa estatura, falavam uma língua do tronco Macro-Jê.

 4 – É a Capital Nacional da Cerâmica de Alta Temperatura, segundo projeto de lei que tramita no Congresso Nacional, já em fase de aprovação. Isso se deve ao fato de Cunha receber, desde a década de 1.970, inúmeros ceramistas que utilizavam a queima de suas peças no forno Noborigama. De lá para cá, muitos outros artistas se instalaram em Cunha, produzindo peças reconhecidas nacionalmente, e transformando a cidade no maior polo de cerâmica de autor da América do Sul. Antes da chegada dos artistas-ceramistas, havia em Cunha as “paneleiras”: ceramistas, geralmente mulheres, que produziam peças utilitárias, para ser utilizado no dia a dia da vida caipira. Os vasilhames eram confeccionados através de técnicas ancestrais, de origem indígena.

5 – Cunha possui os maiores campos de lavandas do estado de São Paulo e os mais famosos do Brasil, fato que motivou a imprensa especializada em turismo em chamá-la de “a Provence paulista”. Um tanto exagerado o epíteto, tendo em vista que o município possui apenas dois campos de lavandas: o Lavandário e o Contemplário. São belos e dão um certo ar de paisagem incomum (pelo menos nos trópicos), mas não se comparam ao que há na França. Cunha possuía há alguns anos uma enorme frota de fusca, que chamava a atenção dos turistas e viajantes que passavam pela cidade. Seria Cunha a “capital do Fusca” também? Inúmeras reportagens sobre a relação do cunhense com esse carro, tão adequado às condições das estradas rurais do município, foram feitas. Até uma festa para celebrar o mais famoso auto da Volkswagen foi organizada: a “FusCunha”. Virou matéria no “Me leva Brasil”, quadro da revista eletrônica “Fantástico”, da TV Globo.

6 – Em 1.932 o município foi palco dos combates entre federais e paulistas, durante a Revolução Constitucionalista. A “Batalha de Cunha”, travada no estilo da Primeira Grande Guerra e com o auxílio da aviação, foi uma das maiores batalhas daquela guerra civil e uma das poucas em que as tropas paulistas venceram. Paulo Virgínio, trabalhador rural do bairro do Taboão, foi capturado, torturado e morto pelas tropas federais, que apoiavam manutenção no poder do ditador Getúlio Vargas. Por não ter revelado os caminhos que levavam às trincheiras paulistas – nem mesmo sob tortura – foi considerado herói e mártir da causa paulista e constitucionalista.

7 – É a maior produtora de pinhão de São Paulo. Isso só é possível porque o território cunhense é salpicado por araucárias (pinheiro brasileiro). Os produtores rurais aproveitam para catar e comercializar os pinhões que caem no outono, e, assim, ter uma renda extra com o extrativismo vegetal. A Festa do Pinhão, atualmente o maior evento turístico de Cunha, conta com feira de comidas típicas à base de pinhão, além de shows e atrações outras. As araucárias são nativas em Cunha, pois mesmo sendo típicas de climas frios e subtropicais, encontraram na Mata Atlântica das altas montanhas um refúgio ecológico propício para sua espécie.

 8 – Possui mais de 250 bairros rurais e seu território está cercado por três serras: do Mar, da Bocaina e da Quebra-Cangalha. O relevo é tipicamente montanhoso, área exemplar da paisagem de “mares de morros”. A associação de montanhas, rios e seixos dá origem há inúmeras cachoeiras, variando de tamanho e beleza. O clima é tropical de altitude, com ocorrência de geadas no inverno, mas muito úmido nas áreas mais altas, próximas à Serra do Mar, devido à ocorrência de garoas. Devido à salubridade do seu clima ameno, um sanativo para os tuberculosos e para os acometidos de outras moléstias respiratórias, fez o Governo Estadual transformar Cunha em uma Estância Climática em 1.948.

9 – Em seu território há duas unidades de conservação de proteção integral: o Parque Estadual da Serra do Mar (Núcleo de Cunha) e o Parque Nacional da Serra da Bocaina. O rio Paraibuna nasce no município e o rio Paraitinga nele se encorpa. Ambos são os formadores do rio Paraíba do Sul, o curso d’água mais estratégico do país, por estar localizado entre as duas maiores regiões metropolitanas brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro. Possui várias fontes hidrominerais inexploradas, que brotam do seio do aquífero Cristalino, com destaque para as fontes do complexo das Águas Virtuosas de Santa Rosa, uma das melhores do mundo e a única explorada comercialmente até o momento.

10 – É o maior município do Vale do Paraíba em extensão territorial e o 11º do estado de São Paulo. Sua população está estagnada em torno de 20 mil habitantes há mais de um século, devido às perdas migratórias por razões econômicas e ao êxodo rural. Cunha é um dos berços e redutos da autêntica cultura caipira (paulista), que se manifesta no modo do povo falar, no jeito de andar e se vestir, no modo de ser e viver, nas construções, nas tradições religiosas seculares, nas danças (congada, jongo, são-gonçalo, moçambique, catira etc.), folias (de Reis e do Divino) e cantigas de viola, na culinária, com uma variedade deliciosa de doces e pratos salgados, que alimentam a alma e o espírito. Conhecer Cunha, já diziam os antigos cientistas sociais que estudaram o lugar, é mais que uma viagem no espaço; é uma viagem no tempo! Uma possibilidade de reencontro consigo mesmo e com a paz perdida na confusão da “civilização urbana”.

Primeira gravação de uma moda de viola caipira, 1.929

“Jorginho do Sertão” foi a primeira moda de viola gravada no Brasil. Isso em 1.929. Jorginho do Sertão faz parte do folclore paulista e foi adaptada por Cornélio Pires, grande incentivador da cultura caipira e folclorista, e interpretada por Caçula e Mariano, com gravação em disco de 78 rotações (ou rpm). Como sempre, as modas de viola contam uma história. Nesse “causo” tudo se passa em uma carpa de café, provavelmente no velho Oeste Paulista. O Jorginho lá do Sertão, rapazinho inteligente, queria casar-se com as filhas do patrão. E um dos meios de se conseguir isso era provar que conseguia sustentar uma família no “cabo da enxada”. Era preciso conquistar o pai da pretendente primeiro, demonstrando que era trabalhador. O patrão gostou do serviço do moço e resolveu oferecer suas filhas em casamento. As três filhas se apresentaram, cada uma com suas qualidades, mas o Jorginho, esperto como só, queria casar-se com as três de uma vez. Impedido de tal intento, o Jorginho montou no seu cavalo e foi-se embora: “Não posso casá cum as treis, eu num caso cum nenhuma”.

A cultura paulista é riquíssima e ajuda a contar a história e costumes de nossa gente.

Letra: cantiga popular do folclore paulista
Adaptação: Cornélio Pires
Interpretação: Caçula & Mariano
Data: 1929
Gravadora: Columbia
Acervo: Discoteca Pública Municipal – Oneyda Alvarenga – Centro Cultural São Paulo

JORGINHO DO SERTÃO

O Jorginho do Sertão
Rapazinho de talento
Numa carpa de café
Enjeitô treis casamento
Logo veio o seu patrão
Cheio de contentamento
(tenho treis filhas "sorteira que
Ofereço em casamento)
Logo veio a mais nova
Vestidinho cheio de fita
Jorginho case comigo
Que das treis
Sô a mais bonita
Logo veio a do meio
Vestidinho cor de prata
Jorginho case comigo
Ou então você me mata
Logo veio a mais véia
Por ser mais interesseira
Jorginho case comigo
Sou a mais trabaiadeira
Jorginho pegou o cavalo
Ensilhô na mesma hora
Foi dizê pra morenada
Adeus que eu já vou me embora
Na hora da despedida,
Ai, ai, ai
É que a morenada chora
Ai, ai, ai
O Jorginho arresorveu
É melhor que eu mesmo suma
Não posso casá cum as treis, ai
Eu num caso cum nenhuma.