Museu de Cunha realiza exposição sobre a Revolução de 1932

Folder de divulgação da exposição “Cidade Sitiada”, do Museu Francisco Veloso. Data: Julho de 2022.

Com o título “Cidade Sitiada”, o Museu Francisco Veloso organiza desde o dia 9 de julho de 2022 uma exposição sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, com enfoque nos acontecimentos de Cunha. A guerra civil de 1932 foi o mais importante evento histórico estadual no século XX e teve em Cunha um dos seus teatros principais, devido à proximidade com fronteira interestadual. A exposição vai até o dia 30 de setembro.

Apesar de já se ter passado 90 anos do conflito, deflagrado em 9 de julho de 1932, é um assunto que desperta defesas ou investidas apaixonadas. O historiador Hernâni Donato, em seu livro “História da Revolução Constitucionalista de 1932”, ao tratar sobre o interesse que esse remoto levante armado ainda desperta, aponta: “Extremadas. Assim têm sido as referências ao movimento cívico-político-militar ocorrido em 1932, preparado em vários estados, porém centralizado em São Paulo. Enaltecido ou denegrido”. São Paulo se levantou contra o “Governo Provisório” de Getúlio Vargas, instaurado pela Revolução de 1930, alegando a imediata reconstitucionalização e redemocratização do país. Derrotados no campo militar, os paulistas cantam vitória até hoje, pois o seu ideal, uma nova constituição, foi alcançado. Em 1933 houve eleição para composição da Assembleia Nacional Constituinte e em 1934 uma nova Constituição foi promulgada para o país. Já para o historiador Boris Fausto, em seu livro “História concisa do Brasil”, os objetivos dos paulistas e aliados eram ambíguos. Segundo ele, “a ‘guerra paulista’ teve um lado voltado para o passado e outro voltado para o futuro. A bandeira da constitucionalização abrigou tanto os que esperavam o retroceder às formas oligárquicas de poder quanto os que pretendiam estabelecer uma democracia liberal para o país”.

As ocorrências e consequências do conflito ainda estão vivas na memória de muitos cunhenses. Não as desavenças políticas das elites, mas o sofrimento do povo e a perda da inocência com tanta violência em um lugar outrora tão pacato. A tradição oral sobre a guerra civil vai desde as anedotas do contador de causos “Zé Varda” até o silêncio de traumas insuperáveis, vivos ainda nas lembranças daqueles que vivenciaram de perto os horrores de ter uma guerra acontecendo no quintal de casa.

O objetivo da exposição é provocar novos olhares e leituras sobre o movimento armado, ampliando a discussão para além das motivações políticas e das narrativas orquestradas por elas. Por isso, além de abordar os aspectos gerais do conflito, é tratado o desdobramento na cidade de Cunha, do cerco militar que a cidade passou entre julho e agosto de 1932. O envolvimento dos soldados e também dos moradores, civis, pessoas alheias aos acontecimentos políticos nacionais, mas que acabam tomando parte, sem querer, na guerra civil. Um verdadeiro drama que o tempo ainda não foi capaz de apagar.

A diretora do Museu, Dina Zélia Chimello, afirma que a exposição foi feita pensada nos cunhenses e aguarda a visita de todos. Recentemente, ela gentilmente nos concedeu uma entrevista sobre a exposição, que reproduzimos abaixo.

Jacuhy – Qual é o objetivo da exposição “Cidade Sitiada” e o que o Museu pretende promover com ela?

Dina Chimello: O objetivo principal é contar a história da Guerra Civil de 32, na cidade de Cunha, com base em relatos memorialísticos (foram feitas entrevistas com antigos moradores; e extraídos os testemunhos escritos de soldados voluntários). E assim provocar uma reflexão sobre as experiências vividas naqueles três meses de guerra, seja pelos soldados, ou pelas muitas famílias que abandonaram suas casas para viver no mato, sem alimento e proteção, segundo relato do sr. Enéas Roberto de Toledo, Dona Maria Pacheco e sr. Nino, os quais com seus testemunhos contribuíram, traduzindo os sentimentos dos seus antepassados e familiares.
O MFV (Museu Francisco Veloso) pretende, com a exposição “Cidade Sitiada”, promover e estabelecer vínculos com os cunhenses, em particular com as instituições escolares, de modo a contribuir para o envolvimento de professores e alunos com a memória e a história da cidade.

Jacuhy – Por que a escolha pela Revolução de 1932, uma guerra civil, como tema da primeira exposição do Museu sob sua gestão?

Dina Chimello: O tema foi uma sugestão do prefeito José Eder para celebrar os 90 anos da Guerra Civil de 1932. Os historiadores, Maria Izabel de Azevedo Marques Birolli, e Joaquim Roberto Fagundes foram responsáveis pela pesquisa histórica, e Andreas Guimarães pela expografia.

Jacuhy – Qual tem sido a impressão sobre a exposição dos munícipes e turistas que visitam o Museu?

Dina Chimello: É bastante impressionante como a exposição tem sido bem avaliada! Depoimentos cheios de emoção sobre a montagem da sala que conta a história dos “Lenços Brancos”, na voz de Tereza Freire. Sobre a grafia dos textos em tecidos, sobre a réplica da matraca e do boneco do soldado, obras do dedicado artesão Reginaldo da Silva Martins. Admiração ainda com a tecnologia de landing Page e QR code disponíveis em todas as salas, um recurso que possibilita maior alcance e visibilidade, trabalho técnico de Kauan Yorras Ruan Pereira, empresa, Essencial Artes Designer e Publicidade.

Jacuhy – Sabemos que a Revolução de 1932 ainda é trabalhada nas aulas de História. As escolas de Cunha têm frequentado a exposição?

Dina Chimello: Sim, uma grande quantidade de alunos e professores já visitaram a exposição, e queremos continuar a recebê-los com muita alegria e disposição. Acreditamos que, inspirados por ela, poderão surgir muitas e importantes atividades escolares. Esperamos ainda que estes alunos levem seus familiares. A exposição foi movida pelo sonho e o desejo de receber os cunhenses!

Jacuhy – Até quando vai a exposição e qual o horário que o Museu fica aberto à visitação? Ele funciona aos sábados e domingos?

Dina Chimello: Até dia 30/9 de 2022. De terça à sexta-feira, das 9h às 16 horas. Aos sábados das 10h30 às 16 horas. Aos domingos das 10h30 às 13 horas.

O Museu fica no calçadão da rua Comendador João Vaz, centro de Cunha, no casarão que pertenceu ao sr. Nenê Felipe.

Cunha: paisagem, meio ambiente e economia

Cunha vista da Serra da Bocaina. Foto: Pedro Máximo. Data: 2011.

A cidade de Cunha vista da Pedra Grande, na Serra da Bocaina, próxima à divisa com Silveiras. Está a 34 quilômetros em distância absoluta, na direção sudoeste. O interessante dessa perspectiva é que aparece a Serra do Alto do Diamante ao fundo, que está a cerca de 55 quilômetros de distância da Pedra Grande. Após essa serra, temos ainda o bairro do Sertão do Palmital e mais cerca de 5 Km (em termos absolutos) de terras cunhenses até se chegar ao limite com São Luís do Paraitinga, divisa formada com cotas altimétricas inferiores ao do Alto do Diamante e vertente do rio Paraibuna. A foto na perspectiva noroeste-sudoeste revela um pouco da extensão de nosso município, maior do Vale do Paraíba e o único no estado circundado por três 3 serras principais (além de outras ramificações), como é o caso do Alto do Diamante, do Alto Grande e do Campo Grande. Todas com picos ultrapassando os 1600 metros de altitude.

Cunha vista da Pedra Grande. Cotas altimétricas do IBGE (1973). Edição: Jacuhy.

O bairro Sertão do Palmital, ainda em 1970, completamente isolado de Cunha. Os moradores se serviam, quando podiam, de São Luiz do Paraitinga, via distrito de São Pedro da Catuçaba. Mesmo assim por trilhas acessíveis apenas a pé ou a cavalo.

Parte da carta hipsométrica das três serras. Fonte: IBGE, 1973.

Um dos morros da Serra desperta a nossa atenção por sua feição cônica, se assemelhando a um vulcão, o que obviamente não é e nem nunca foi. Trata-se de dois morros na verdade, mais pontiagudos e altos que os vizinhos que observados de longe, revelam esse contorno diferente. Essa Serra, aliás, pode ser melhor observada do Morro Grande, vide as fotos da “Estalagem Shambala” ou do loteamento recentemente aberto “Alpes de Cunha”.

Alto do Diamante e Campo Grande. Vista da Estalagem Shambala. Data: 2022.

Os morros que circundam a cidade de Cunha, e que parecem altos, praticamente se aplainam ante a imponência da Serra do Mar, que, como uma muralha, cerca o município nos limites de sudoeste a nordeste.

Vista da Serra do Campo Grande. Foto: Guto Felipe. Data: 2022.

Todo esse “Mar de Morros” é obra de milhões de anos de processos erosivos contínuos, consequência da ação do clima tropical sobre o relevo. As paisagens que temos hoje são heranças que a natureza nos legou e que devemos preservar para a posteridade.

Vista da Serra do Alto do Diamante. Foto: Rodrigo Leite. Data: 2012.

Por isso, o desmatamento incontrolável que nossa região passou nos últimos cem anos preocupa. Não só pelo aumento dos movimentos de massa e os riscos que eles trazem à segurança das pessoas e animais, além dos prejuízos, mas pela perda dos solos, um problema grave e ainda pouco abordado e tratado em Cunha. Sem solo não há agricultura, pecuária e nem vida. A aceleração dos processos erosivos e a retirada ilegal de mata ciliar levam ao assoreamento dos cursos d’água e ao desaparecimento da fauna fluvial. A retirada de mata no topo dos morros leva ao sumiço dos vertedouros. Toda ação humana gera algum impacto ambiental que, mais cedo ou mais tarde, acarretará algum impacto social.

O pouco que restou da nossa Mata Atlântica foi resultado da ação impositiva do Estado, que interveio na década de 1.970 para impedir o desaparecimento completo da cobertura vegetal, com a criação de duas unidades de conservação de proteção integral: Parque Nacional da Serra da Bocaina e Parque Estadual da Serra do Mar. Nunca partiu de nós, cunhenses, o devido cuidado com meio ambiente. É muito provável que sem as unidades de conservação, o pouco de verde que ainda restou já teria virado carvão, moirão, palanque, esteio, móveis, pasto etc. Até o nosso linguajar valida a visão antiecológica de ver árvores e matas como um problema. Chamamos de “pasto sujo” aquele que contém árvores e capoeirões espalhados pela herdade.

O desenvolvimento do turismo surge como uma esperança. Ao retirar do setor primário o sustento de muitas famílias e realocá-lo no terciário, ameniza a pressão sobre os recursos naturais do município. Ademais, a paisagem natural ou regenerada deixa de ser um “pasto sujo” e passa a ser valorizada. Valorizada no sentido financeiro mesmo, pois o turismo é uma atividade econômica que promove o consumo do espaço e das paisagens. Desde que não seja predatório ou privilégio de alguns empreendedores, o turismo pode ser uma das saídas para Cunha.

A pergunta que fica é: o que deixaremos para as futuras gerações? Mais do que esperar do Estado e atribuir responsabilidades a outrem, sempre é bom fazer um exercício de reflexão pessoal, focado na nossa ação no mundo. Cabe a nós, enquanto comunidade, buscar alternativas econômicas sustentáveis.

Referências:
AB’SÁBER, Aziz N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. 5 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
CRUZ, Rita de C. A. da. Introdução à geografia do turismo. 2. ed. São Paulo: Roca, 2003.
IBGE. Lagoinha: região sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1973. 1 carta topográfca, color., 4465 × 3555 pixels, 5,50 MB, jpeg. Escala 1:50.000. Projeção UTM. Datum horizontal: marégrafo Imbituba, SC, Datum vertical: Córrego Alegre, MG. Folha SF 23-Y-D-III-2.
O ESTADO DE S. PAULO. Palmital, um bairro isolado. 4 out. 1970, p. 42.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
VELOSO, João J. de O. O ambiente natural cunhense. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 1996.

Campos Novos se torna Distrito de Paz

Arte feita para a série #HojeNaHistóriaDeCunha, da página Jacuhy, no Facebook.

Foram os antigos caminhos que cortavam a região a causa do povoamento. Havia o “Caminho das Boiadas” ou “Estrada da Bocaina”. Surgiu para não destruir o Caminho do Ouro oficial, pela Serra do Facão, pois o gado, em seu transitar, vai socavando com suas patas e destruindo a estrada. Assim, o gado era tocado por outro caminho. O Caminho das Boiadas saía de Guaratinguetá ou Lorena, passava pelos campos da Bocaina e alcançava o porto de Mambucaba ou Angra dos Reis, dependendo do rumo que tomava. Posteriormente (séc. XIX), esse caminho seria utilizado e calçado para o transporte do café. Mais que uma conexão entre o planalto e o litoral, foram esses caminhos vetores de ocupação e colonização.

No final do século XVIII, algumas famílias paulistas e fluminenses conseguiram sesmarias no vale do Paraitinga e nos contrafortes da Bocaina. Eram os Fialho, os Galvão dos Santos (Carmo), os Gomes Siqueira, os Ayres dos Reis, os Vaz da Silva, os França Mota, os Rodrigues da Silva, os Mariano Rodrigues, os Santos Pinto, os Pinto dos Santos, os Pinto Leite, os Cardoso de Miranda, os Marques, os Galvão Freire, os Almeida, os Pereira, os Moraes, os Lopes dos Santos, os Siqueira França, os Albano da Silva, os Müller etc. Terra boa, ainda ínvia. Vão povoando e abrindo passagem. De vez em quando ainda viam, esses pioneiros, os Puris cortando, apressadamente, aquelas florestas intactas. Caminhos foram se abrindo, novas famílias chegando e desmatando. A mata caía onde novos sítios eram erguidos. Por volta de 1.820 já se registra 400 almas, entre brancos e escravos. Denominava-se “Bocaina”, apenas. Em 1.859, Manoel Lopes dos Santos (D’Assunção) edifica a primeira capela da redondeza, orago de Nossa Senhora dos Remédios. Por esse tempo, ganha notoriedade a Fazenda da Serra, no bairro da Guabiroba. Era propriedade de Maria do Carmo dos Santos, viúva do Alferes José Gomes dos Santos Pinto e casada em segundas núpcias com Luiz Pereira Paes de Almeida. Latifundiária e rica, bancou boa parte da edificação da capela. Como centro religioso da redondeza, em torno da capela brota um povoado: Campos Novos. Povoado é um termo que significava à época “pequeno aglomerado rural ou urbano, sem autonomia administrativa; lugar ou sítio no qual já se formou uma pequena população ou um pequeno núcleo de habitantes.” (SEADE, 1995).

Croqui da vila de Campos de Cunha, distrito do município de Cunha. Atentar para o diminuto arruamento. Fonte: Instituto Geográfico e Cartográfico do Estado de São Paulo (IGC). Data: maio de 1940.

Vivia a região um enorme crescimento econômico proporcionado pela riqueza do café, que ia modificando a paisagem. Respingo da pujança econômica do médio Vale do Paraíba no planalto. “Campos”, devido aos campos de altitude da Serra da Bocaina, e “Novos”, porque a ocupação do Distrito era mais recente do que o restante do município. Campos Novos vingou à margem de um (Lorena – Mambucaba) das dezenas de caminhos que conectavam o vale produtor aos portos de exportação. Por isso, pulsou no ritmo regional: viveu o apogeu e a decadência da cafeicultura valeparaibana. Depois veio a fonte de água mineral (na década de 1910), depois a pecuária leiteira (década de 1940) … O turismo ainda é uma promessa, pois o potencial de Campos de Cunha é grande demais para seguir ainda inexplorado.

A região passa por um rápido crescimento econômico e populacional. Até que em 8 de março de 1.872, o povoado de Nossa Senhora dos Remédios de Campos Novos de Cunha se torna um Distrito de Paz, pela Lei Municipal nº. 5. Assim, passa a contar com uma autoridade administrativa nomeada pela Vila de Cunha especialmente para o lugar. Um Distrito era uma “divisão territorial e administrativa em que certa autoridade administrativa, judicial ou fiscal exerce sua jurisdição” (SEADE, 1995).

Em 11/09/1873, a capela passa a ser paróquia, com vigário próprio nomeado. Dessa forma, torna-se de fato Freguesia de Nossa Senhora dos Remédios de Campos Novos de Cunha, pois só se tornava freguesia se fosse paróquia, isto é, tivesse um padre regular atuando na igreja. O primeiro que chegou a Campos Novos para a missão foi o padre italiano Nicolau Polito Derosa (“Padre Derosa”). O termo “freguesia” se refere a: “circunscrição eclesiástica que forma a paróquia; sede de uma igreja paroquial, que servia também, para a administração civil; categoria oficial institucionalmente reconhecida a que era elevado um povoado quando nele houvesse uma capela curada ou paróquia na qual pudesse manter um padre à custa destes paroquianos, pagando a ele a côngrua anual (…)” (SEADE, 1995).

Na divisão administrativa referente ao ano de 1911 já consta o Distrito de “Campos Novos de Cunha” como pertencente à Comarca de Cunha. Esse topônimo foi simplificado para “Campos de Cunha” apenas, na lei de divisão administrativa de 1938, permanecendo assim até os dias atuais. Mas para o cunhense ainda é “Campos Novos”.

Em 1912, o Barão da Bocaina compra a fazenda onde estava as fontes de águas minerais, conhecidas desde o século XIX. Seu projeto era construir uma nova cidade no local, uma estância hidromineral seguindo o exemplo de Campos do Jordão, que fora um projeto seu. E bem-sucedido. Com a morte do Barão, os planos são abandonados. Na década de 1970, a fazenda é comprada pelo italiano Ghisleni Giulio. Seu projeto era criar um loteamento, seguindo, modestamente, os planos do Barão. Não consegue vender os lotes, então decide envasar e vender a água mineral. A qualidade das “Águas Virtuosas Santa Rosa” conquista o mercado regional, mas na década de 1990 o envasamento é suspenso. Em 2021, a água mineral volta a ser vendida com o nome de “Serras de Cunha”, uma marca da Águas Prata Ltda.

Entre as décadas de 1920-1950, muitas famílias mineiras (os Fagundes, os Gonçalves etc.) migram para o município de Cunha, inclusive Campos de Cunha, atraídas pelo baixo preço das terras. Aqui desenvolvem a pecuária leiteira e, posteriormente, a pecuária de corte. Hoje, Cunha é a maior produtora de leite do estado. Então, Campos de Cunha se torna famoso pela qualidade de seus queijos e por sua produção de leite. Até pouco tempo, o Distrito contava com 2 grandes laticínios e outros artesanais espalhados pela zona rural, as fabriquetas.

Antiga fotografia capturada na vila de Campos de Cunha, possivelmente da década de 1940, postada no grupo “Memória Cunhense” (Facebook).

Nos anos de 1970-1980, devido ao abandono do Distrito pelas administrações municipais, cresce entre os moradores o desejo de emancipar-se de Cunha. Ademais, Campos de Cunha sempre manteve mais ligação com Lorena e Silveiras do que com a sede municipal. O pleito dos moradores é levantado pela SADICAC (Sociedade de Amigos do Distrito de Campos de Cunha) e recebe apoio dos deputados da região. Em 1991 é aprovado a realização de um plebiscito pela Assembleia Legislativa de São Paulo para votar a emancipação do Distrito de Campos da Cunha. Todavia, mudanças nas normas estaduais para emancipação de municípios, concernente à autossuficiência econômica, adia o sonho de Campos de Cunha.

É uma longa história, bem resumida pelo poeta e cantor Celso Galvão “…mas o lugar cresceu/ o tempo passou/ as porteiras se abriram / o progresso chegou/ Uma estrada novinha/ e a freguesia no meio da serra aflorou (…) uma gente que sonha e constrói para o futuro uma linda cidade/ na certeza de que/ a união e a fé/ é o caminho e verdade…”. Hoje, Campos de Cunha celebra 150 anos de elevação a Distrito. Parabéns a todos os moradores: da vila, da Bocaina e de todos os bairros rurais. Felicitação que estendo aos que se encontram dispersos por outras paragens.

Campos de Cunha em dois tempos: na década de 1980, na foto superior; na inferior, em 2016. Crescimento da mancha e adensamento urbano. Fotos: Página “Lá em Campos Novos” (Facebook).

Referências:
CUNHA, M. W. V. da. O Povoamento no Município de Cunha. Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia, v. II, p. 641-49, Florianópolis (SC), 1944.
FUNDAÇÃO SISTEMA ESTADUAL DE ANÁLISE DE DADOS (SEADE). Memória das estatísticas demográficas: definições. Disponível em: < http://produtos.seade.gov.br/produtos/500anos/index.php?tip=defi >. Acesso em 8 mar. 2022.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Cidades: Cunha (SP): História e fotos. Disponível em: < https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/cunha/historico >. Acesso em 8 mar. 2022.
VELOSO, J. J. de O. A História de Cunha – 1600 – 2010 – Freguesia do Facão: A rota da exploração das minas e abastecimento de tropas. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2010.

Música homenageando Campos de Cunha, composta e interpretada por Celso Galvão.

Cunha, cidade das serras

Vista aérea de Cunha. Ao fundo, vê-se a Serra do Mar. Foto: Instituto Chão Caipira. Ano: 2011.

No final do século XIX e até no início do XX, Cunha era conhecida como “Cidade das Serras”. Faz jus ao epíteto. Qual fortaleza, é ladeada por três serras. Só não é inteiramente flanqueada porque o rio Paraitinga abriu um vale para se esvair. A alcunha orográfica não perdurou até nossos dias, apesar de geograficamente factual.

Serra do Mar vista da Praça do Rosário. Ano: 2010.

São as três muralhas: a Serra do Mar, a leste e a sul; a Serra da Bocaina, a norte; a Serra do Quebra-Cangalha, a noroeste. Desconheço município deste estado com mais cordilheiras em seu território. Cunha é única.

Serra da Bocaina vista do Cemitério Municipal de Cunha. Ano: 2012.

E ainda dos seus morros é possível ter uma vista esplêndida dos topos da Serra da Mantiqueira, que ao longe, ao norte, demarca o limite litosférico ante ao horizonte e ainda põe termo ao território paulista, nos contrafortes de Minas Gerais.

Serra do Quebra-Cangalha vista de Cunha. Ano: 2021.

Por isso, dizem que não há ocaso mais bonito, do que o visto desta pequena e pacata cidade. E eu, mesmo suspeito, concordo plenamente.

“O Gigante Adormecido”: a Serra da Mantiqueira vista de Cunha. Foto: Paulo Zaccaro. Data: agosto, 2012.

Situação orográfica de Cunha:

Criação: Jacuhy.

O trecho paulista da Bacia Hidrográfica do Paraíba do Sul

Rio Paraíba do Sul, quando cruza o município de Cruzeiro (SP), com a Serra da Mantiqueira ao fundo. Fonte: Wikipédia. Data: 2014.

A porção paulista do rio Paraíba do Sul (também chamada de Alto Paraíba do Sul) ocupa uma área de drenagem de 14.444 Km², onde vivem 2,1 milhões de pessoas, abrangendo 34 municípios de nossa região. A bacia de drenagem de um rio, segundo Teixeira et al. (2009, p. 308), inclui todos os afluentes que deságuam na drenagem principal e eventuais lagos associados a esse sistema, ela é separada das bacias de drenagem vizinhas por divisores de água (elevações topográficas), como as serras do Mar, da Bocaina, Mantiqueira e Quebra-Cangalha, por exemplo

Dentro dessa região hidrográfica há 16 unidades de conservação, com destaque para os núcleos do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM) e o Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB), recentemente tombado como Patrimônio da Humanidade. Ambas as unidades são de proteção integral. Todas essas unidades de conservação visam preservar as seguintes vegetações: Floresta Ombrófila Densa, Floresta Estacional Semidecidual, Floresta Ombrófila Mista Alto Montana, Campos de Altitude e Floresta Ombrófila Mista. A área ocupada com vegetação natural remanescente corresponde a 3.846 Km², o que equivale a 26,5% da área de drenagem da bacia.

Mapa mostrando o trecho paulista da Bacia Hidrográfica do Paraíba do Sul. Fonte: Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos. Data: 2015.

O rio Paraíba do Sul é formado pela confluência dos rios do Paraibuna, que nasce no município de Cunha (SP), no bairro da Aparição; e do Paraitinga, que nasce no topo da Serra da Bocaina, no município de Areias (SP). A junção dos cursos d’água ocorre onde hoje é a área alagada da Usina Hidrelétrica de Paraibuna, pertencente à Companhia Energética de São Paulo (CESP), localizada entre os municípios paulistas de Natividade da Serra, Paraibuna e Redenção da Serra. Da nascente na Serra da Bocaina até a foz em Atafona, município de São João da Barra, no norte do estado do Rio de Janeiro, o Paraíba do Sul realiza um percurso de 1.137 km de extensão, até alcançar o Oceano Atlântico. Seus principais afluentes no trecho paulista são: Paraibuna, Paraitinga e Jacuí (formadores); Jaguari, Uma, Buquira, Ferrão, Embaú, Piquete, Bocaina, Pitangueiras e Itagaçaba (tributários).

Imagem de satélite da foz do Paraíba do Sul, mostrando o seu delta assimétrico dominado por ondas, formado pelo acúmulo de sedimentos ao longo de milhares de anos. Imagem: Divisão de Sensoriamento Remoto – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Data: 2019. Fonte: Flickr.

As principais atividades econômicas desenvolvidas são a agropecuária (rizicultura, pecuária leiteira e de corte, milho etc.), indústria e pesquisa tecnológica (automobilística e aeroespacial), química e alimentícia (laticínios, principalmente), o turismo (religioso, ecológico, de montanha, cultural etc.), comércio e serviços e mineração de areia. A maioria dos municípios que estão inseridos dentro da bacia hidrográfica é pobre e vulnerável socioeconomicamente, com a exceção de São José dos Campos, Guararema, Jacareí e Aparecida (SEADE, 2018), que foram classificados e. Índice Paulista de Responsabilidade Social (IPRS) como dinâmicos, isto é, municípios com índice elevado de riqueza e bons níveis nos indicadores sociais (longevidade e escolaridade médio /alto). Os municípios que são cortados pela Serra do Mar e da Bocaina apresentam os piores indicadores sociais da região, como é o caso de Cunha.

Outros indicadores ambientais: 99,7% dos resíduos sólidos são destinados a aterros sanitários adequados; 91,1% do esgoto urbano é coletado, porém, apenas 63,9% é tratado; a redução da carga orgânica poluidora do esgoto doméstico foi de apenas 40,2%; a demanda total (superficial e subterrânea) corresponde a apenas 10,7% da vazão do rio Paraíba do Sul, no trecho paulista, o que mostra uma baixa pressão sobre os recursos hídricos disponíveis; dos 21 pontos de coleta de água de rios da bacia para análise, 4 foram qualificados como ótimos, 18 como bons e apenas 1 como regular, o que favorece a proteção da vida aquática.

Rio Paraíba do Sul na proximidade de sua nascente, na Serra da Bocaina. Imagem: Marco Cruz. Data: 2011. Fonte: YouTube.

Por estar localizado entre as duas maiores metrópoles do país, o rio Paraíba do Sul sofre com a poluição de suas águas, seja pelo esgoto doméstico ou pelo industrial. Além disso, boa parte de suas cabeceiras, onde estão as nascentes, estão desmatadas e degradadas. Todavia, trata-se de um rio de suma importância social: abastece mais de 14,2 milhões de pessoas, pois parte de suas águas são desviadas para a bacia hidrográfica do rio Guandu, com a finalidade de gerar energia e abastecer a população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Outros usos de suas águas são para irrigação (na rizicultura no Vale do Paraíba paulista, principalmente), geração de energia hidrelétrica e diluição de esgotos, este é uma das principais fontes de poluição do rio Paraíba do Sul, sobretudo nos trechos que cruzam as áreas urbanas. A vazão média do rio Paraíba do Sul, na divisa com o estado do Rio de Janeiro, é de 217 m³/s e a vazão mínima é de 72 m³/s, ou seja, cerca de um terço da vazão média. A situação é preocupante, pois só neste século o rio Paraíba do Sul já passou por duas crises hídricas, a primeira em 2004 e a última entre 2014 e 2016, atingindo sua fase de maior escassez em 2015. Nessas crises, as vazões diminuem muito, devido à baixa precipitação, causando impactos nos níveis de armazenamento dos reservatórios e, consequentemente, na irrigação, na geração de energia e no abastecimento de água para a população. A precipitação média no trecho paulista da bacia é de 1.385 mm ao ano. Devido à escassez hídrica e alta demanda das regiões metropolitanas do entorno, a água do Paraíba tem sido alvo de disputa entre as unidades federativas. Por isso e pela sua relevância ambiental, projetos que objetivem recuperar o rio – da nascente até a foz – são para ontem.

Vídeo com imagens de drone da foz do rio Paraíba do Sul, no norte fluminense. Fonte: YouTube / Canal Macaé Drone. Data: 2021.

Referências:

AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO (ANA). Paraíba do Sul. Disponível em: < https://www.gov.br/ana/pt-br/sala-de-situacao/paraiba-do-sul/paraiba-do-sul-saiba-mais >. Acesso em: 19 out. 2021.
FUNDAÇÃO SEADE. Índice Paulista de Responsabilidade Social. São Paulo: Fundação Seade, 2018. Disponível em: < http://www.iprs.seade.gov.br/ >. Aceso em 19 out. 2021.
RIO PARAÍBA DO SUL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Rio_Para%C3%ADba_do_Sul&oldid=62208470 >. Acesso em: 19 out. 2021.
SÃO PAULO (ESTADO). Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE). Comitê de Bacias Hidrográficas do Rio Paraíba do Sul (CBH-PS). Capacitação de agentes no processo de gestão de recursos hídricos em atividades de educação ambiental. Taubaté (SP): CBH-PS, 2009.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos. Guia do Sistema Paulista de Recursos Hídricos. 3. ed. São Paulo: SSRH, 2015.
TEIXEIRA, W. et al. (org.). Decifrando a Terra. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009

Inverno em Cunha

Paisagem do bairro do Barreiro – Cunha – SP. Julho, 2018.
aos poucos os nossos verdes vales vão esvaecendo
as pastagens vão se rareando, ficando ralas, tosquiadas
e, olhando aqui de riba, dá pra ver a poeira
acompanhando as estradinhas lá embaixo
o ar começa a ficar pesado, meio azulado, 
parece querer também ficar deitado, 
aninhar-se entre as montanhas
por isso a neblina só dissipa depois que o Sol está alto
ou "rachando mamona", como dizia meu avô
é o frio, é a geada, é inverno em Cunha
tempo de tudo se recolher, guardar-se
como a gente mesmo se recolhe dentro de casa
na boca do fogão ou num agasalho, 
os bichos e os matos também têm a mesma ciência
quase nada que é plantado sai, os bichos se entocam,
vaca esconde o leite, galinha não gosta de chocar,
e até o tempo, arisco que é, obedece
perceberam que até as noites ficam mais longas?
há quem prefira a primavera, com suas chuvas de trovoada
e que faz os passarinhos sair em festança pelo céu,
dançando e se fartando entre as revoadas de aleluias
nos quatro cantos, tudo o que tem na terra acaba brotando
trazendo o verde mais vivo que a esperança de volta
até a terra entra no cio, dá pra sentir que ela fica quente, 
esperando o caboclo lançar a semente de milho e feijão
mas prefiro mesmo o inverno, não por que gosto 
das coisas estorricadas pela geada e pelo vento frio
nem de ver os vitelos encarangados no canto do mangueiro
Mas por que através dele, o Criador, penso eu, nos ensina
uma grande lição e que não pode ser esquecida
que no vai-e-vem da vida, no acontecer das coisas,
também temos que dar uma parada
para assentar as ideias no lugar, esperar a poeira abaixar,
matutar sobre o que fizemos e como fazer diferente,
assuntar sobre a nossa própria vida e - por que não? - 
para descansar os cambitos e prosear 
Para daí, sim, voltar com a mesma força e palpite
que voltam os matos e os bichos quando chega a primavera

(julho, 2018)

Fazenda Sant’Anna

Fazenda Santana, Cunha SP, 1980. Foto: Marcos Santilli. Matriz-negativo. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural.

Segundo o professor João Veloso, historiador cunhense, “no que tange à arquitetura do século XIX – a majestosa Fazenda Sant’Anna, no bairro do mesmo nome, pertencente à família Domingues de Castro”, é um dos maiores patrimônios de Cunha. Na fotografia acima, ela aparece em uma tomada feita pelo fotógrafo Marcos Santilli, ex-diretor do MIS, e atualmente proprietário da Pousada dos Anjos, no bairro da Aparição, em Cunha. A foto é do ano de 1.980 e capta um tempo que já se foi, das roças de milho e do transporte da produção em jacás, pelas tropas, até o paiol da família. Milho, o “trigo americano”, alimento tão caro à nossa História, que sustentou nossas famílias e economia por quase três séculos.

O professor Veloso relembra “a magnitude e importância da Fazenda Sant’Ana que, além de cultivar a policultura – milho, feijão, mandioca, algodão e criar muares, foi a principal fazenda do Alto Paraíba a desenvolver o cultivo de café, com produção substancial”, entretanto, ainda não explorada turisticamente. Aponta-se a sua distância de tudo, pois a fazenda fica próxima à divisa de Cunha com Lagoinha. Além do mais, as vias de acesso, todas de terra batida, são precárias e mal-conservadas.

A Fazenda Sant’Anna começou a ser construída nos anos 1840 e só foi terminada em 1861, pelo Coronel José Domingues de Castro, no antigo bairro do “Sítio Velho”.

Segundo pesquisa do professor João, “os proprietários da Fazenda Sant’Anna, na ordem cronológica desde sua fundação, foram os seguintes: Coronel José Domingues de Castro, Manoel Antônio Domingues de Castro, Milton Domingues de Castro, João Domingues de Castro; atualmente, os cinco filhos de João Domingues de Castro herdaram a fazenda com 170 alqueires, o restante das terras ficou com os outros herdeiros.”. Na época dos coronéis, a área da fazenda chegou até ser transferida para o território de São Luiz do Paraitinga, por capricho do seu antigo proprietário, mostrando assim o poder político das elites rurais locais, que podiam até alterar as divisas municipais. Coisas de antigamente.

Referências:

1) Fotografia de Marcos Santilli: https://www.facebook.com/pousadadosanjos/photos/a.318522951534808/662523033801463/?type=3&theater

2) Postagens do professor João Veloso:

a) FAZENDA SANT’ANNA – ROTEIRO TURÍSTICO HISTÓRICO DE CUNHA: https://www.facebook.com/joaoveloso.veloso.5/posts/10206544664212941

b) Fazenda Sant’Anna: https://www.facebook.com/joaoveloso.veloso.5/posts/10206544671133114

Localização da Fazenda:

https://www.google.com.br/maps/place/Fazenda+Sant’Anna/@-23.1675238,-45.1186422,844m/data=!3m1!1e3!4m8!1m2!2m1!1sfazenda+santana+cunha!3m4!1s0x94cd30f959cfbc91:0x77c66c9f1be32278!8m2!3d-23.1682707!4d-45.117344

Mapa:

Folia de Reis de Caixa de Cunha

Na foto de 1.947, tirada pelo sociólogo Alceu Maynard de Araújo, aparece o Alferes (chefe da folia) – José Tomaz da Silva (Tomazinho); o Mestre-Violeiro – Paulo Rita (do bairro da Capivara); o tocador de adufe (pandeiro) – José Prudente, na época com 12 anos de idade, o mais moço da folia; e outros componentes não identificados.

Tradições se acabam. Infelizmente. Porque elas formam a nossa identidade cultural. Porque elas se perdem na massificação de culturas hegemônicas promovidas pela Globalização. Resistir é preciso. Relembrar é resistir. Há muito tempo, a Folia de Reis de Caixa percorria a extensa zona rural de Cunha, passando por seus bairros, sítios e fazendas, entre os dias 24 de dezembro até 06 de janeiro do ano seguinte (Dia de Santos Reis), podendo prolongar-se até dia 2 de fevereiro (Dia de Nossa Senhora das Candeias ou da Luz) ou até 6 de janeiro (Dia de Santo Reis). Esse período festivo fazia parte da Festa do Deus-Menino, que celebrava o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, conforme a liturgia católica. A Folia de Reis era a popularização da celebração religiosa. Era uma forma de como o povo interpretava as verdades de fé. E celebrava o nascimento, isto é, a vida. Saíamos foliões sempre à noite, imitando os Reis Magos, que viajam guiados por uma estrela. Cantando e louvando o nascimento do Menino Deus e pedindo óbolos, renovavam a fé e a esperança pelos rincões de Cunha daquele tempo. Não havia televisão, rádio mesmo era difícil, internet, então, nem se pensava em existir… Não era só fé, mas divertimento e congraçamento comunitário. Havia também a Folia de Reis de Banda de Música, mas essa só se apresentava na cidade.

A Folia de Reis de Caixa de Cunha percorria a imensa área rural cunhense, cantando e esmolando. Paravam nas casas que tinham presépio (outra tradição cunhense), por mais rústico que fossem. E quase sempre eram mesmo. O povo era pobre em recursos materiais, mas abundava a fé a fartura de honestidade, bondade, hospitalidade, virtudes que dinheiro nenhum podia comprar. A Folia tinha os seguintes participantes: alferes, mestre-violeiro, contra-mestre, tocador de adufe, Tocador de caixa, além deles a Folia contava com os palhaços (Pai João, Catirina, Palhaço) e as pastorinhas, formada por meninas e vestidas a caráter.

Notação musical de “Visita ao Presépio”, da Folia de Reis de Cunha, feita por Alceu Maynard Araujo, 1947.

A Folia de Reis de Cunha foi estudada por Alceu Maynard Araujo, sociólogo paulista e grande folclorista. E foi ele quem popularizou a música “Visita ao Presépio”, da Folia de Reis de Cunha, muito executada e cantada por diversos intérpretes e quase nunca creditada à nossa Folia de Reis. A saudosa Inezita Barroso, por exemplo, gostava muito de cantá-la em seu programa “Viola, minha viola”, na TV Cultura (veja vídeo abaixo), mas sempre creditava assim: “recolhida por Alceu Maynard Araujo”, sem dizer onde e nem de quem o eminente sociólogo teria recolhido. É um desleixo do programa, pois o próprio Araujo deixou registrada a letra, as notas e autoria correta em dois de seus livros “Cultura Popular Brasileira” (2. ed., 1973, p. 27) e no “Canta Brasil” (1957, p. 43 – 45) e no artigo “Folia de Reis de Cunha”, que saiu na Revista do Museu Paulista, volume III, p. 424-425, 1949. A música “Vista ao Presépio” (mais conhecida pelo seu primeiro verso “Acordai quem está dormindo”) é patrimônio cultural do município de Cunha.

Vista da cidade de Cunha em 1.979

Foto de Maria Helena Cassinha Oliveira, publicada no grupo Memória Cunhense, mostrando a nossa cidade.

Essa foto, tirada em setembro de 1979, como se vê no canto inferior direito, mostra a cidade de Cunha vista do Cruzeiro, no entroncamento da Rua Manoel Prudente de Toledo e a Rodovia Vice-Prefeito Salvador Pacetti (SP-171). A névoa da manhã, no fundo dos vales, sempre foi um charme à parte e característica cunhense desde sempre.

Ainda que a cidade não tenha crescido tanto, é possível identificar algumas mudanças na paisagem urbana; já na paisagem rural o que chama a atenção é a ausência de matas e o predomínio absoluto de pastagens e plantações. Hoje, tirando uma foto do mesmo lugar, poderemos contemplar – com satisfação – uma Cunha muito mais verde que a 40 anos atrás.

Museu Francisco Veloso inaugura site

Print da página inicial do site do Museu de Cunha.

O Museu Municipal Francisco Veloso, localizado no casarão Rua Comendador João Vaz, no Centro Histórico de Cunha, inaugurou o seu site. Uma excelente iniciativa encabeçada por Sueda Carolina (estagiária do Museu) e pelo historiador Joaquim Roberto Fagundes.

O Museu foi idealizado e criado pelo professor e historiador João José de Oliveira Veloso (1945-2021) e é referência para pesquisa histórica local e regional, contendo diversos documentos do século XIX, além de artefatos de grande valor histórico para Cunha.

Para celebrar a sua inauguração e o 89º aniversário da deflagração da Revolução Constitucionalista de 1932, iniciada em 9 de julho, de grande importância para Cunha, o Museu está promovendo a “Exposição Virtual Revolução Constitucionalista de 1932 em Cunha – SP” (veja roteiro e links para acesso abaixo), um modo adequado de apresentar ao público a epopeia paulista, respeitando as restrições sanitárias para contenção da pandemia de COVID-19.

A Exposição ficará na web durante todo o mês de julho. Bem ilustrada e fundamentada, conta com textos dos historiadores João Veloso (“in memoriam”) e Joaquim Fagundes, além de fotos de peças usadas na Revolução de 1932, que estão guardadas no Museu. Conta também com depoimentos e áudios do movimento armado, além de fotos e mapas do conflito em território cunhense, extraídos do livro “Cunha em 1932”, publicado em 1935 e de autoria do ex-voluntário Clementino de Souza e Castro Junior.

A visita virtual à Exposição vale muito a pena, não só para os interessados no assunto, mas por aqueles que amam Cunha e querem conhecer um pouco mais desse episódio triste e marcante da nossa História local. Cunha foi um dos poucos fronts em que os paulistas obtiveram vitória contra as tropas da ditadura de Getúlio Vargas. E aqui também tombou Paulo Virgínio, um cunhense, caipira, civil, herói e mártir da causa paulista; que mesmo torturado, se recusou a ajudar as tropas da ditadura, preferindo a própria morte à desonra.

Exposição Virtual Revolução Constitucionalista
de 1932 em Cunha – SP

Museu Municipal Francisco Veloso
Rua Comendador João Vaz, s/nº – Centro
Telefone: (012) 3111-1499
E-mail: museufrancisoveloso.cunha@gmail.com

Grupo Memória Cunhense: revivendo histórias e matando saudades

Muitas fotos antigas de Cunha e de seu povo podem ser encontradas no grupo Memória Cunhense.

Outono de 2.012. Os cunhenses, não só daqui, mas os dispersos por outras paragens, resolveram que era chegada a hora de invadir a rede social do Mark Zuckerberg, deixando juntar mato nas hortas de “colheita feliz” do Orkut. Cingidos com chapéu de palha e armados com enxada na cacunda partiram todos para o “Feice”. E assim que chegaram, trataram logo de colonizar o novo espaço virtual, demarcando o território com café, farinha, pinhão, preocupação com a vida alheia e muito “ar”, “er”, “ir”, “or”, “ur” para todos os lados. Porém, trouxeram consigo muitas postagens interessantes e saudosistas sobre Cunha e seu povo. Já que a Globo não mostra Cunha mesmo (nem quando houve o “L’Étape Brasil”, lembram?), nós mostramos. E do nosso jeito! Com muito sentimento envolvido, porque Cunha é nossa pátria e o nosso bairrismo interiorano “imporrrta, sim, senhorrr”.

E foi no meio de tantas postagens proveitosas e desencontradas que se ocultavam no feed de notícias e que desapareciam nos algoritmos da rede, que a doutora Vânia Zaccaro, “cunhêra raiz” e delegada de Polícia Civil, resolveu pôr ordem na casa. Teve então a ideia de criar um grupo que reunisse todas as postagens sobre Cunha. Para tal empreitada convidou o professor e escritor Victor Amato dos Santos, historiador e maestro da Banda Furiosa, para manter as publicações afinadas com o propósito do grupo. E chamou o Paulo Henrique de Campos Reis, que carrega no sangue a saga dos tropeiros, para transportar para o espaço virtual conteúdos que estivessem perdidos pelos sertões da rede social. E foi assim que, em 22 de junho de 2.012, foi criado o grupo Memória Cunhense com algumas dezenas de membros.

As primeiras postagens e colaborações foram feitas pelos próprios idealizadores, já que tudo aquilo era novidade para muitos e “nóis”, caipiras, somos ressabiados por natureza ante qualquer modernidade. O professor Victor já dispunha e publicara em seu perfil um riquíssimo material de cunhenses inolvidáveis de outrora (Tio Malaquias, Zé Veloso, Zé Varda, Seu Ubirajara, Tia Ção, Victor Amato & Maria Tereza Fornitano, entre outros). Então coube a ele inaugurar e abastecer o grupo nos primeiros dias, trazendo ao público a memória de tanta gente boa desta terra que, quando viva, era indispensável; e mesmo morta, é inesquecível. O Paulo Reis publicou o relato de seu pai, Sr. Roque Inácio, um dos últimos tropeiros de Cunha. E a Vânia resolveu aguçar a nossa memória gustativa, publicando a tradicional receita do bolinho de arroz, que tanto sucesso faz nas alvoradas da Festa do Divino, iguaria cunhense por excelência. A memória compreende várias dimensões do ser humano, passando, inclusive, pelo estômago.

À medida que o grupo ia crescendo e ganhando novos membros, o alcance das postagens se ampliava e novas contribuições foram surgindo. A quantidade de fotos e informações postadas aumentava diariamente. Os baús familiares foram se abrindo, fotografias antigas eram digitalizadas e lembranças diversas eram compartilhadas. A cada nova postagem, uma grata surpresa. Em cada surpresa, uma emoção. Para o cunhense ausente, que migrou, mas que manteve os laços afetivos, familiares e de pertencimento ligados a esta terra, relembrar é reviver. E reviver é sentir de novo. E assim, foto após foto, comentário após comentário, foi-se tecendo a memória coletiva de tanta gente dispersa e desencontrada, trazendo a lume o que foi olvidado, mas que não devia ter sido esquecido nunca. E quantos reencontros não aconteceram nos comentários? Reencontro com o passado, com o esquecido, com os parentes, com os amigos, com os lugares, consigo mesmo e com a comunidade. E quantos desses reencontros não começaram com a peculiar indagação: “Ocê é fio di queim?”. Frase-gatilho para despertar uma boa prosa e tantas reminiscências.

O professor Victor aponta que o sucesso do grupo se deve à seriedade e qualidade dos conteúdos postados, o que tornou o Memória Cunhense uma fonte de pesquisa para estudantes, professores, curiosos e interessados na História local, graças à “riqueza e precisão de informações nas publicações feitas nele quase que diariamente pelos participantes/colaboradores”, arremata.

Sem dúvida que o lançamento do livro “A História de Cunha”, pelo saudoso professor e historiador João Veloso, em setembro de 2.010, despertou o interesse dos cunhenses para com o seu passado e contribuiu para o surgimento de grupos de natureza memorialista e histórica. Sobre essa questão, o professor Victor acredita que o Memória Cunhense é um complemento ao livro do João Veloso, pois dá voz e vez ao povo cunhense para narrar a sua própria História. Esse pensamento converge com o objetivo da Vânia ao criar o grupo, pois conforme relato seu: “achei uma boa ideia reunir essas fotos, a maioria de anônimos ou pessoas que, embora não tivessem grande relevância para História oficial da cidade, estavam presentes no imaginário dos habitantes de Cunha”.

Foi também no Memória Cunhense que a ideia de se retificar a data de fundação do município de Cunha ganhou força e apoiadores, gerando muitos debates e questionamentos. Até que em 2.017, em um movimento encetado pelo professor Victor e respaldado nas pesquisas do historiador João Veloso, três audiências públicas ocorreram na Câmara de Cunha para debater a questão. Concluídas as audiências, um projeto de lei foi aprovado pelos vereadores e sancionado, posteriormente, pelo então prefeito Rolien Guarda Garcia, estabelecendo o dia 19 de março de 1.724 como data oficial de fundação do município de Cunha.

Em 2020, o grupo já contava com um acervo virtual de mais de 4 mil fotos, 50 mil comentários e mais de 7 mil membros que interagiam e colaboravam ativamente nas postagens. E tudo isso está acessível a todos, pois o grupo é público. O Memória Cunhense é único porque foi pioneiro e precursor de outros grupos similares em municípios vizinhos. É único porque tem cumprido à risca a sua missão de matar a saudade e fazer reviver o que foi esquecido. Continua firme e forte em seu propósito inicial de ser uma exposição permanente e aberta para as belezas da Cunha de ontem, de hoje e de sempre, pois, como disse o poeta:

” (…)

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão. “

Carlos Drummond de Andrade, in “Memória”.
Imagem da postagem da série “Hoje na História de Cunha”, da página Jacuhy. O fundo é formado por fotos que estão no acervo digital do Memória Cunhense.

Fontes:

Carlos Drummond de Andrade. Memória (poema). Disponível em: < https://www.escritas.org/pt/t/1779/memoria > , acesso em jun. 2020.

Grupo público Memória Cunhense (Facebook). Disponível em: < https://pt-br.facebook.com/groups/memoriacunhense/ > , acesso em jun. 2020

Relato escrito concedido pela Dra. Vânia Idalira Zaccaro de Oliveira, advogada, delegada e criadora do grupo (via Messenger). Guaratinguetá, junho de 2.020.

Relato escrito concedido por Victor Amato dos Santos, professor, historiador e criador do grupo (via Whatsapp). Cunha, junho de 2.020.

Imagens: Banco de imagens do grupo Memória Cunhense (Facebook).

Observações: Agradeço a contribuição e a gentileza da Vânia e do Victor por atender à solicitação da página prontamente, enviando os relatos que embasaram esta postagem.

Texto escrito originalmente para página do Facebook “História de Cunha” (atual Jacuhy), postado em 22 junho de 2.020.

Pedra do Frade – Cunha – SP

Pedra do Frade, no bairro do Sertãozinho. Foto: Alessandro Ferraz.

1. Localização:

Está localizada no bairro do Sertãozinho, zona rural do município Cunha (SP). Possui um paredão de 80 metros de altura (IGC, 1978). Está a 14 quilômetros da sede urbana municipal em distância absoluta. As coordenadas geográficas da Pedra, obtidas pelo SIG on-line DataGEO, do Sistema Ambiental Paulista, são as seguintes: 23º10’23.7″S; 45º02’51.1″W (Datum: Sirgas 2000).

Localização da Pedra do Frade no município de Cunha. Cartografia: Jacuhy.

2. Altitude:

Varia conforme o produto cartográfico, site geoespacial ou SIG utilizado. Assim, tem-se:

  • na carta do IBGE: 1.220 metros.
  • na carta do IGC: 1.246 metros.
  • no software Google Earth: 1.233 metros.
A Pedra do Frade está a 1.246 metros de altitude. Fonte: IGC.

3. História:

A Pedra do Frade está dentro do sítio do Frade, propriedade do Sr. José Wagner e pertenceu às terras da fazenda do Sr. Décio Mariano Leite, que era filho de Crispim Mariano Leite e neto do capitão Joaquim Mariano de Toledo, povoador da região. Tem esse nome, segundo a tradição oral, porque na época da escravidão morava um frade no local, que a usava como refúgio, pois era defensor dos escravizados. Segundo dizem, há em um dos lados da Pedra a entrada para uma gruta, que serviu como abrigo para o frade e para os seus protegidos, que fugiam dos horrores da escravidão. Um frade é um religioso católico, não necessariamente um clérigo, que pertence a uma ordem religiosa mendicante. Diferente dos monges, os frades não ficavam tão enclausurados nos mosteiros, mas exerciam seu ministério junto ao povo. São notórios defensores dos pobres e oprimidos.

Pedra do Frade e o Alto do Diamante. Foto: Jorge Prudente. Arte: Jacuhy.

É muito difícil atestar a veracidade sobre a existência desse frade, mas relatos como esse são repassados pelos moradores locais ao longo do tempo. Há um fundo de verdade por trás de todos eles. A escravidão foi uma triste realidade no município de Cunha desde os tempos coloniais. No século XIX, por exemplo, quase metade da população de Cunha era formada por negros escravizados. A Pedra do Frade está próxima ao bairro da Catioca, primitiva zona de ocupação e povoamento do município de Cunha (VELOSO, 2010). Região privilegiada e propícia à colonização, pois estava situada no caminho que ligava a Freguesia do Facão (Cunha) à Vila de Taubaté. Assim, foi desde o século XVIII toda fatiada em sesmarias. Muitas fazendas surgiram na região da Catioca. Poucas permaneceram até hoje, como é o caso da Fazenda Sant’Anna, um testemunho de uma época pretérita. Mesmo se o relato não passar de mito e lenda, é certo que na região da Pedra do Frade houve escravidão e que muitos negros, como forma de resistir à opressão, fugiam e procuravam abrigo em lugares remotos.

Em 1933, o terreno no qual está a Pedra do Frade foi arrolado no espólio do capitão Joaquim Mariano de Toledo (“Quim Mariano”), maior fazendeiro de Cunha no início do século XX, com a seguinte descrição: “(…) i) – Três partes de terras no lugar denominado ‘Frade’ (…)” (VELOSO, 2010, p. 251). Os moradores do bairro do Sertãozinho figuraram entre os primeiros moradores de Cunha a se converterem ao metodismo, ainda nas primeiras décadas do século XX.

Aspecto do relevo da região. Foto: Adilson Toledo.

A Pedra do Frade é um prolongamento da Serra do Alto do Diamante e se encontra em uma região de Cunha onde as montanhas com os cumes pedregosos embelezam ainda mais a paisagem rural. Mas por que Alto do Diamante? Do ponto de vista geológico é muitíssimo improvável encontrar essas pedras preciosas em Cunha. Porém, por estar sobre o embasamento cristalino, há grande ocorrência de pedras de quartzo nas terras cunhenses. Essas pedras eram antigamente confundidas com diamantes ou consideradas como indícios de que haveria diamantes no lugar. Daí a crença popular de que poderia haver diamantes naqueles outeiros, onde brotam quartzos de variados aspectos e cores. Outros afirmam que o lajedo de gnaisse, após uma chuva ou garoa, tendo ficado molhado, tem brilho intenso como diamante, ao refletir a luz do Sol. Parece que os afloramentos rochosos marcaram a toponímia local. É muito provável, por exemplo, que o bairro do Itambé, vizinho do Sertãozinho, tenha recebido esse nome em razão do aspecto da Serra do Alto do Diamante. Itambé é topônimo (litotopônimo, no caso) de origem tupi (“itá-aimbé”) e significa “pedra pontuda e afiada” ou “pedra de amolar”,podendo, por extensão, ser traduzido como “borda; beira; precipício” (NAVARRO, 2013). Seria uma possível referência ao afloramento rochoso do Alto do Diamante? Vejam as fotos e tirem suas conclusões.

Aspecto do Alto do Diamante. Foto: Jorge Prudente.

4. Meio físico:

A Pedra do Frade, bem como todo o território cunhense, está inserida dentro do Domínio Morfoclimático dos Mares de Morros, possuindo as seguintes características:

  • a) Hidrografia: a Pedra exerce a função de divisor de águas, separando as microbacias do ribeirão do Limão e a do ribeirão das Abóboras, ambos tributários do ribeirão Itaim, que deságua no rio Paraitinga, na divisa com Lagoinha (SP). No sopé da face noroeste da Pedra nasce o córrego dos Peros (IBGE, 1974).
  • b) Climatologia: ocorre o tropical de altitude típico, com suas estações bem definidas, podendo ocorrer geada no inverno. Entretanto, essa região localizada em uma área serrana é mais úmida do que boa parte do município, devido à altitude e à proximidade com a Serra do Mar, sendo comum a ocorrência de eventos orográficos (garoa, serração) de manhã ou na parte da tarde.
  • c) Vegetação: no passado pré-colonial, era a região coberta por Mata Atlântica. Atualmente o entorno da Pedra está ocupado por pastagens, em função da atividade pecuária que se desenvolve no lugar. Na proximidade topo do encontra-se uma pequena mancha de Floresta Ombrófila Densa em estágio médio (SÃO PAULO, 2020). No topo da Pedra, entre as lascas seixosas que se desprenderam do monólito, brotam flores rupestres, o que ressalta a beleza do lugar.
  • d) Geologia: área de contato das entidades tectono-estratigráficas Terrenos Embu e Terreno Serra do Mar, formada há 587 milhões de anos, durante a Era Neoproterozoica (CPRM, 2006). A geotecnia aponta ser o local sujeito a alta suscetibilidade a escorregamentos (naturais e induzidos), com rochas cristalinas no embasamento (NAKAZAWA; FREITAS; DINIZ, 1994). Há o predomínio de rochas ígneas plutônicas. Registra-se a ocorrência dos seguintes tipos de rochas: gnaisse, biotita, granito, monzogranito, migmatito, xisto, metapelito, quartzito, meta-arenito etc. A região está inserida no maciço do Corpo Granito Natividade da Serra (IPT, 2010).
  • e) Geomorfologia: está dentro da unidade morfoestrutural do Cinturão Orogênico do Atlântico, mais especificamente no Planalto do Paraitinga-Paraibuna. A Pedra em si é um penedo granítico, fruto da erosão diferencial e resultado do ataque dos agentes exógenos sobre o relevo. A Pedra está passando por um processo de esfoliação esferoidal. Do ponto de vista topográfico é a Pedra um esporão, um interrompimento da declividade da linha de crista da Serra do Alto do Diamante. Esta serra chega a atingir em seu cume a altitude de 1.640 metros. O relevo da região é todo orientando pela litografia, sendo o bairro do Sertãozinho um vale em “v”, aninhado entre dois esporões lançados do maciço central da Serra do Alto do Diamante. A Pedra do Frade é apresentada no Mapa Geomorfológico do Município de Cunha (IPT, 2010) como parte integrante das serras alongadas, com morros altos e fortemente ondulados.
  • f) Pedologia: o solo predominante é o cambissolo háplico (SÃO PAULO, 2007), ocorrendo ainda em associação com os latossolos amarelo e vermelho-amarelo típico. Ambos são distróficos. Apresenta textura média, é argiloso e típico de relevo fortemente ondulado, com profundidade variável de pouco até muito profundo.
Pedra do Frade, hipsometria e vizinhança. Fonte: IBGE.

5. Ecoturismo:

Apresenta enorme potencial, porém ainda permanece inexplorada. Além de ser um mirante fascinante, nela pode se desenvolver atividades como: montanhismo, rapel, trekking, mountain bike etc. As formações rochosas e altas montanhas do entorno são um espetáculo que merece ser apreciado por mais pessoas.

Pastagens dominam o entorno da Pedra do Frade. Foto: Alessandro Ferraz.

6. Acesso:

Antes de tudo, é importante ressaltar que a Pedra está em propriedade particular, sendo assim, o acesso até ela necessita de anuência prévia dos proprietários.Para chegar até o local, deve-se seguir pelos seguintes caminhos:SP – 171 (Rodovia Vice-Prefeito Salvador Pacetti, de Cunha até a divisa com o estado do Rio de Janeiro), em asfalto, por 3,3 Km, daí entra à direita e segue pela Estrada Municipal Benedito Galvão de França (Cunha – Catioca), em terra batida, por 10,3 Km; daí entra à esquerda e segue pela estrada que interliga o bairro das Abóboras ao bairro do Jericó, em terra batida, por 0,5 Km, daí entra à direita, subindo e seguindo pela Estrada do Limão/Sertãozinho, em terra batida, por 6,3 Km até a entrada da trilha que dá acesso à Pedra, que está à esquerda da estrada. É um caminho de tropa frequentado pelos íncolas locais, que liga o bairro do Sertãozinho ao bairro do Sertão dos Marianos, do outro lado da cadeia de montanhas. Da estrada do Sertãozinho segue-se por trilha, em direção ao Sertão dos Marianos, subida a pique, por 1,4 Km.

Imagem de satélite da Pedra do Frade. Fonte: EMPLASA, 2010.

7. Outras informações:

a) Localização da Pedra do Frade no Google Maps: https://www.google.com.br/maps/place/23%C2%B010’22.3%22S+45%C2%B002’50.1%22W/@-23.1728611,-45.0485514,674/data=!3m2!1e3!4b1!4m14!1m7!3m6!1s0x9d7ce47f825ea7:0xb0e1ed8f9db1d15a!2sCunha,+SP,+12530-000!3b1!8m2!3d-23.0743544!4d-44.9561012!3m5!1s0x0:0x0!7e2!8m2!3d-23.1728643!4d-45.0472496!5m1!1e4

b) Rota da cidade de Cunha até o início da trilha para a Pedra do Frade: https://goo.gl/maps/CgmRpPTBuvmS1EJh6;

c) Não temos nenhuma informação sobre as condições de trafegabilidade, no momento, da estrada que leva à Pedra do Frade.

d) O presente artigo contou com informações valiosas fornecidas pelas seguintes pessoas Sr. Jorge Prudente (sitiante no bairro do Sertãozinho), Sr. Adilson Galvão (quem sugeriu esta publicação) e pela guia turística Sra. Edna Maria. Nosso agradecimento a eles.

Bairro do Sertãozinho. Foto: Adilson Toledo.

8. Fotos:

Adilson Toledo, Alessandro Ferraz e Jorge Prudente.

9. Referências:

AB’SÁBER, A. N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

COMPANHIA DE PESQUISA DE RECURSOS MINERAIS (CPRM). Mapa geológico do estado de São Paulo. Escala 1:750:000. Breve descrição das unidades litoestratigráficas aflorantes no estado de São Paulo. São Paulo: CPRM, 2006.

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NAVARRO, E. de A. Dicionário de tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São Paulo: Global, 2013.

ROMARIZ, Dora de Amarante. Biogeografia: conceitos e temas. São Paulo: Scortecci, 2008.

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VELOSO, J. J. de O. A História de Cunha: 1600-2010 – Freguesia do Facão – A rota da exploração das minas e abastecimento de tropas. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2010.

Mapa concêntrico mostrando os pontos de referência próximos à Pedra do Frade. Cartografia: Jacuhy.

Viagem no tempo através dos mapas, fotos e ilustrações

Por Ciência Hoje

Mapas não são apenas registros geográficos. Com o passar dos anos, tornam-se importantes artefatos históricos, memórias feitas de papel e tinta de certas configurações locais, regionais e mundiais que nunca mais serão as mesmas. Por isso, todo projeto que disponibiliza acervos de mapas na rede para acesso público contribui para resgatar parte da história de nosso mundo. 

Mapa climático do mundo, mostrando a distribuição das raças humanas e os reinos animal e vegetal. Data: 1.893. Fonte: Arquivo Digital da Biblioteca Pública de Nova Iorque.

Um exemplo recente foi dado pela Biblioteca Pública de Nova Iorque, que disponibilizou na internet para download e sob uma licença Creative Commons sua coleção de mais de 20 mil mapas, todos em alta resolução. As cartas podem ser acessadas na plataforma Map Warper. A coleção conta com registros elaborados do século 16 às primeiras décadas do século 20 que retratam a Europa, a América do Sul e os Estados Unidos, além, é claro, de uma grande coleção de mapas da própria ‘grande maçã’.

A plataforma digital também conta com recursos muito interessantes: permite combinar parte de seu acervo com coordenadas geográficas reais, recriando os registros antigos como espaços virtuais, que podem ser percorridos e complementados com informações adicionais, como fotos históricas – tudo isso de forma colaborativa. Vale conferir! 

“Festa de Santa Rosalia, padroeira dos negros”. Autor: Rugendas. Data: 1835. Fonte: The New York Public Library
Digital Collections

Não apenas mapas estão presentes no acervo digital da Biblioteca Pública de Nova Iorque. Ela conta também com muitas ilustrações, quadros e fotos em domínio público, todas disponíveis para serem baixadas, inclusive retratando o nosso país.

Para acessar os mais de 900 mil itens digitalizados: The New York Public Library Digital Collections

Boa pesquisa e descobertas!

Igreja Metodista do Jericó: 120 anos de fé entre as montanhas

Recém-inaugurado, o segundo templo metodista e o primeiro de alvenaria da Igreja Metodista do Jericó. Substituiu o antigo, feito de pau-a-pique e sapé. Hoje é o salão social “W. B. Lee”. Foto: “Expositor Cristão”. Data: década de 1910.

Jericó, bairro rural na região sudoeste do município de Cunha. Jericó do requeijão de prato, do “café medroso”, da cachoeira belíssima, do chapéu e do embornal, dos lajeados de pedra, dos velhos casarões de taipa, dos fazendeiros de outrora… Jericó da Igreja Metodista! O “bairro dos metodistas”, qualificativo que os cunhenses davam ao bairro no passado.

Panorama do bairro do Jericó, zona rural de Cunha – SP. Um pequeno vale que começa com a igreja. Foto: Pedaleiros de Cunha (Instagram). Data: 2021.

Quando o Metodismo chegou, através dos “tropeiros de Cristo” reverendo J. R. Carvalho e diácono J. C. de Andrade, o bairro ainda se chamava Mandinga. Na língua dos africanos, “terra do feitiço”. Após a conversão completa dos moradores, trataram logo os metodistas de mudar o nome do lugar para Jericó. Uma alusão à primeira cidade que os hebreus conquistaram em Canaã, após o retorno da escravidão no Egito, sob a liderança de Josué. A comparação realmente faz sentido quando levamos em conta a beleza paisagística e a fertilidade do lugar, comparável à Terra Prometida dos hebreus. A igreja local coloca em destaque na pracinha alguns versículos bíblicos, que se referem à Canaã, mas cabem perfeitamente também ao bairro do Jericó:

“Porque o Senhor teu Deus te põe numa boa terra, terra de ribeiros de águas, de fontes, e de mananciais, que saem dos vales e das montanhas; Terra de trigo e cevada, e de vides e figueiras, e romeiras; terra de oliveiras, de azeite e mel. Terra em que comerás o pão sem escassez, e nada te faltará nela; terra cujas pedras são ferro, e de cujos montes tu cavarás o cobre. Quando, pois, tiveres comido, e fores farto, louvarás ao Senhor teu Deus pela boa terra que te deu. Guarda-te que não te esqueças do Senhor teu Deus, deixando de guardar os seus mandamentos, e os seus juízos, e os seus estatutos que hoje te ordeno.”

Deuteronômio 8: 7 – 11

Longe de todas as cidades, Jericó era o lugar perfeito para que os crentes pudessem cultuar a Deus em paz. O sociólogo Emílio Willems apontou que a implantação do Metodismo em Cunha não sofreu oposição católica devido ao isolamento do bairro.  O antropólogo Robert W. Shirley afirma que os missionários preferiram Jericó porque na zona urbana a hostilidade da elite e do clero católico seria inevitável, dada a experiência desagradável que tiveram os missionários evangélicos em outras cidades paulistas. Novidade no início da República, a separação entre religião e Estado ainda não estava plenamente consolidada. No interior do Brasil, regido sob o arbítrio dos coronéis, as leis constitucionais não valiam plenamente. Perseguições religiosas, sob a chancela das autoridades locais, não eram raras. Não foi o caso de Cunha. Ainda bem.

Metodistas do Jericó junto ao seu pastor Rev. William B. Lee, missionário enviado pela Igreja Metodista Episcopal do Sul, dos EUA, ao Brasil. Os pés descalços e os chapéus de palha dos homens dos moços e meninos chamam a atenção. Caipiras protestantes. Tempos difíceis… Foto: Valquíria Leite. Data: década de 1930.

Em seu livro “O fim de uma tradição”, Robert Shirley traz um detalhe importante sobre a implantação do Metodismo: o capitão da região do Jericó foi simpático à nova fé e a própria família desse capitão “desempenhou papel vital” no desenvolvimento da Igreja. O antropólogo está se referindo ao Capitão Joaquim Mariano de Toledo (Caçapava, 8 de maio de 1850 – Sertão dos Marianos – Cunha, 8 de janeiro de 1933), maior latifundiário de Cunha e conhecido como “Quim Mariano” ou “Quim Caçapava”. Foi povoador do Sertão dos Marianos, Frade, Campo Grande, Itambé, Peros, Sertão do Xavier, Sertãozinho e da Mandinga (atual Jericó). O capitão sempre permaneceu católico. Certamente, se se opusesse ao trabalho missionário dos metodistas, poderia ter trazido algum problema ou empecilho. Mas não foi o seu procedimento. Todavia, é preciso relembrar que a família do capitão vai aderindo à Igreja Metodista aos poucos, no decorrer das primeiras décadas do século XX. Nos primórdios, não esteve a evangelização ligada à família Mariano. Entre as famílias pioneiras encontramos os Almeida, os Eufrásio, os Campos e os Monteiro, não os Mariano Leite. A doação do terreno para a construção do primeiro templo, por exemplo, foi feita pelo sr. José Tomás Monteiro (Juca Tomás). O primeiro culto, realizado em 18 de março de 1899, ocorreu no lar do sr. Lethargino José Almeida. Com o passar do tempo, a união dessas famílias via se enlaçando através dos casamentos e os Mariano Leite vão ganhando proeminência no metodismo cunhense, com destaque para liderança religiosa exercida pelo sr. Luís Mariano Leite e dona Maria Cesarina de Jesus (“Cotinha”), dois grandes metodistas.

A Igreja Metodista do Jericó foi fundada em 26 de maio de 1901, separando-se da Igreja Metodista Central em Taubaté. Em seguido, começam os metodistas a construção de um templo para adorar o SENHOR, bem modesto e rústico, de taipa de mão e coberto de sapé. Tudo muito simples e de acordo com as condições econômicas das primeiras famílias metodistas. Pobres, mas determinados, trabalhadores. Contava a Igreja nessa fase inicial com 60 membros, todos conversos do Catolicismo e recebidos por pública profissão de fé. O grande número de crianças impressionava os missionários e indicava um futuro promissor para aquele pequenino e modesto templo, cujo entorno viria a se formar a maior comunidade protestante e rural do Brasil e única sob muitos aspectos. Também se tornaria a maior congregação metodista do Brasil, superando, inclusive, as comunidades urbanas.

Tempos áureos: metodistas reunidos para foto comunitária. A Igreja Metodista do Jericó atingia o seu maior número de membros. Mais de 150 pessoas aparecem nesta foto. Tem crente pendurado até nas árvores, lembrando Zaqueu, na narração do Evangelho segundo São Lucas. Foto: Jorge Prudente. Data: década de 1940.

O Metodismo cresceu rapidamente nos primeiros anos, alcançado a estabilidade na década de 1920, quando os recebidos por batismo ultrapassaram os recebidos por conversão e pública profissão de fé. É o sinal de que todos os moradores do lugar já haviam se convertido. Seus filhos já eram batizados na nova fé. Daí, concluída a tomada de Jericó, os missionários metodistas partiram para outras terras: Cume, Monjolo, Rio Manso, Bom Retiro, Guandu, Bangu, Desterro, Palmeiras, Lajinha, todos na região leste de Cunha. O trabalho nessa nova zona missionária se inicia na década de 1920 e vai até o estabelecimento da Igreja Metodista do Cume, entre 1928 e 1933. Mas não obteve o mesmo sucesso que Jericó, embora tenha dado origem a uma sólida congregação metodista. Os cientistas sociais que estudaram a implantação do Metodismo em Cunha apontam que o rápido crescimento se deu em função dos casamentos. Na época, tanto a Igreja Católica como a Igreja Metodista desencorajavam os enlaces inter-religiosos. Muitos rapazes aderiram ao Protestantismo para poder se casar com as moças da Igreja. Por isso, era comum ocorrer os maridos ou esposas fazerem a profissão de fé no mesmo dia do casamento.

Um dia de festa em Jericó! Centenas de pessoas entoando hinos adentram ao atual templo: mais amplo, moderno e com torre. Foto: Valquíria Leite. Data: 15 de dezembro de 1957.

Com a conversão da elite agrária do bairro, se tem então uma comunidade rural inteiramente evangélica. O que diferia totalmente da característica geral do Protestantismo brasileiro, que atraia, geralmente, pessoas das classes mais baixas da estratificação social e de não nascidos nas igrejas protestantes. Esse perfil social que marca os protestantes brasileiros até os nossos dias. Assim, em Jericó, a elite também era protestante. Ali, o Protestantismo era majoritário e a minoria era católica. Jericó era única por esse motivo também. Os metodistas eram a maioria e a Igreja Metodista possuía adeptos em todos os estratos sociais: fazendeiros, sitiantes, administradores, agregados, meeiros, peões, pedreiros, artesãos, doceiras, cozinheiras, inquilinos, retireiros, tropeiros, comerciantes, diaristas e trabalhadores rurais pobres; mulheres, crianças, professores.

A neblina cobrindo os montes, o templo novo, o templo antigo (hoje salão social), o muro no estilo da torre, a escola, a casa pastoral e a cocheira, a “garagem” do povo da roça guardar o seu veículo: o cavalo, à moda dos antigos tropeiros que trouxeram o Metodismo para Jericó, à moda de John Wesley. Símbolos de uma época. Foto: Valquíria Leite. Data: década de 1960.

A chegada da Igreja na cidade de Cunha levará mais tempo, vindo a acontecer somente na década 1950. Na zona urbana, os metodistas encontraram, inicialmente, uma ferrenha oposição católica. Houve algumas querelas teológicas entre os dois grupos e certas hostilidades religiosas por parte dos católicos contra os metodistas.  A cessão das hostilidades aconteceu somente na década de 1960, após o Concílio Vaticano II, sínodo que levou o Catolicismo a promover uma abertura maior ao movimento ecumênico e a maior tolerância com os demais movimentos cristãos.

Igreja Metodista do Jericó e adro. Data: década de 1980.

Os cientistas sociais que estudaram Cunha como “comunidade-laboratório” destacaram a forte coesão social e religiosa dos metodistas. Um aspecto positivo mas que fazia deles uma força segregadora no contexto cultural caipira. A mais segregadora depois da política local. Sem muitas conexões locais, os metodistas mantinham comunicação com o universo exterior, através da literatura e dos periódicos religiosos que a Igreja Metodista enviava às igrejas locais. Willems estava em Cunha, exilado da Alemanha, durante o início da década de 1940. Quando tratava com os metodistas, era sempre interpelado sobre a situação da Segunda Guerra Mundial. Nas roças de Cunha a maioria do povo nem sabia que estava havendo guerra. Muito menos mundial. E nem queriam saber. Assunto aleatório e irrelevante para o cotidiano marcado pelo ciclo das plantações. Jamais os caipiras “de fato” perguntariam sobre isso… Os metodistas não só perguntavam, mas estavam informados sobre e queriam saber mais. Para os cientistas sociais, essa característica indicava um forte indício de ruptura, não só religiosa, mas social, psicológica e cultural com universo caipira. Era o fim de uma tradição?

Metodistas reunidos na frente do templo para foto com os pastores Rev. Sérgio Marcos Leite e Rev. Omir Andrade. Foto: Sérgio M. Leite. Data: década de 1990.

A forte coesão dos metodistas, segundo Willems e Shirley, provinha de algumas peculiaridades: culto doméstico, ênfase na educação e trabalho árduo, integração do núcleo familiar, leitura da Bíblia e periódicos etc. Saber ler, condição essencial para o culto protestante, foi um verdadeiro obstáculo! Nenhuma montanha ou caminho de tropa foi barreira maior para os missionários metodistas que a leitura. O analfabetismo imperava e a escolarização era uma ideia estranha para aquela sociedade agrária, onde os filhos, desde muito cedo, ingressavam na agricultura familiar. A escola parecia desnecessária aos pais. Assim, boa parte dos recursos humanos e financeiros dos metodistas cunhenses foram investidos na criação de escolas paroquiais. A do Cume e a do Jericó foram as primeiras de suas regiões. Por elas passaram gerações de metodistas. E de católicos. Apesar de confessional, essas escolinhas rurais atendiam a toda a comunidade, independente da crença dos pais. Posteriormente, foram incorporadas pela rede estadual, se tornando públicas de fato.

Metodistas do Jericó participam do Encontro Distrital de Jovens, na Igreja Metodista do Cume, Cunha (SP), junto com o seu pastor Rev. Felinto R. dos Santos Macedo. Foto: Salete Toledo. Data: 2002.

Todas essas características, estranhas ao universo caipira e rural, eram valores de uma vida urbana. E muitas famílias metodistas partiram para as urbes, para “estudar os filhos”. É o êxodo. Não o que se passa em Sinai, mas o rural, que impactou de sobremaneira o Brasil moderno. Outro fator que contribuiu para essa diáspora foram as mudanças no meio agrícola, relacionadas com o sistema de trabalho e o uso da terra. Nos anos de 1960, Cunha estava vivenciando a transição da agricultura familiar para a pecuária de leite e corte. As plantações davam lugar às pastagens, que eliminavam as roçadas e eram permanentes. O retiro suprimia a lavoura, o pousio e os mutirões. Era o fim de um ciclo. As igrejas rurais entram em declínio. Os bairros rurais perdem população. Outros ficam desabitados completamente, existindo apenas na memória dos mais antigos.

Hoje, a Igreja Metodista Central em Cunha, apesar de mais recente, é muito maior em número de membros do que as igrejas rurais, que são mais antigas e de quem foi filial. Mas os cultos em Jericó não cessaram. Não contam mais com mesma quantidade de gente, é verdade, que havia no passado. Nem há mais a cocheira ao lado do templo, onde os metodistas amarravam o seu cavalo para participar do culto dominical. Muitas famílias se mudaram para Cunha ou para outras cidades. Tantos já faleceram… Mas os cultos continuam a ocorrer e os hinos do Hinário Evangélico ainda são ouvidos, domingo após domingo, naquele aquele lugar que abrigou a fé dos pioneiros. Porque a fé permanece firme, intacta, como aquelas pedras que enfeitam os outeiros do lugar .

Igreja Metodista do Jericó. Foto: Renate Esslinger. Data: 2016.

A Igreja Metodista levou o bairro do Jericó ao crescimento: escola, templo novo e amplo, cooperativa, eletricidade e água corrente etc. E os jericoenses levaram o Metodismo para outras terras, expandindo a fé para outros pousos.

E o futuro? “A minha Graça te basta”, palavra do SENHOR.

Livro: “Cerâmica em Cunha: 40 anos do forno noborigama no Brasil”

Mais uma obra comemorativa e publicitária sobre os ceramistas de Cunha. Produzida em 2015 e publicada em 2016 pelo Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha (ICCC), em conjunto com a Secretaria de Turismo de Cunha, a obra segue as pegadas da publicação anterior sobre os ceramistas de Cunha, fazendo um documentário histórico, biográfico e artístico, no mesmo estilo da publicação feita na década anterior.

Capa do livro “Cerâmica em Cunha”, com textos de Liliana de Morais e fotos de Johnny Mazzilli.

Sob a coordenação artística de Laurentino Gonçalves Dias Júnior, com pesquisa e textos de Liliana Granja Pereira de Morais e belíssimas fotografias de Johnny Mazzilli, saiu mais uma obra do forno sobre a cerâmica de Cunha.

A publicação segue a mesma senda da anterior. No princípio, apresenta o testemunho de Alberto Cidraes, testemunha ocular da história em primeira pessoa, pois está entre no grupo de pioneiros. No seu relato ele deixa claro: escolheram Cunha porque ficava no eixo Rio-São Paulo e isso facilitava a comercialização das suas obras. Além do mais, foram bem recebidos pelas autoridades cunhenses: receberam um espaço para criar um ateliê coletivo. Um antigo e abandonado matadouro. Pensando bem, um “presente de grego“. Mas que no fim das contas acabou dando certo. Nenhum cavalo de Troia é suficiente para derrotar o talento.

A obra segue apontando as especificidades da cerâmica moldada e queimada em Cunha, o fogo do forno Noborigama, um estrangeiro que se adaptou bem aos trópicos, encaipirando-se por completo no coração da Paulistânia. Delineia os principais fatos históricos relacionados ao grupo de pioneiros e o contexto local. Apresenta o processo de estabelecimento dos primeiros ateliês individuais, as estratégias de comercialização artística adotadas pelos ceramistas, a necessidade de alavancar o turismo em Cunha, feito em que foram bem-sucedidos. Trata do Noborigama, o ícone, e expõe os processos criativos de uma peça cerâmica, da retirada da argila até a queima.

Há, como na obra anterior, breves biografias dos ceramistas de Cunha, com foto deles e de suas criações. Uma forma de mostrar a pluralidade de concepções artísticas que apresenta a cerâmica de Cunha atualmente e também de apresentar muitos filhos da terra, jovens que ingressaram na cerâmica e hoje já produzem e expõem suas peças. Eis o legado da cerâmica, eis o legado o Instituto Cultural de Cerâmica de Cunha (ICCC)

A novidade nessa obra é mesmo o ICCC , um instituto pedagógico que teve o instinto de perceber a importância de formar uma nova leva de ceramistas locais, focando nos mais jovens, nos estudantes, para aqueles que Cunha oferece tão poucas oportunidades. A criação desse instituto demonstra a responsabilidade social dos ceramistas e amor que nutrem pela nossa terra; terra em um sentido muito mais amplo do que fonte de argila. Terra como torrão, como chão, como lar, como pátria. O legado para Cunha será mais riquíssimo porque já está sendo e dando resultados. O epílogo é uma esperança, um sonho. E tudo se fecha em um glossário.

O livro pode ser lido on-line.