Frango à moda da Revolução de 1932

Frango à Revolução, receita de Laura de Azevedo Fontes. Foto: Walter Morgenthaler.
“Eu ando de quarqué jeito, de butina ou de chinela
Na roça si a fome aperta, vou apertano a fivela
Mas lá no meu ranchinho, a mulher e os filhinhos
Tem franguinho na panela (...)”

(Franguinho na panela, música composta por Moacyr dos Santos e Paraíso)

Final de setembro de 1932. Chegava a primavera no Vale, época de arar a terra e semear para aproveitar a época das águas. Mas naquele ano de 1932, especificamente naquele ano, as terras de todo o Vale do Paraíba já haviam sido lavradas por trincheiras. Plantações de capacetes de aço, caules fardados de cor cáqui, de cujo punho brotam fuzis. Rumorosas e sangrentas eram aquelas lavouras adubadas à pólvora… Grande sofrimento para as mães dos soldados que não voltaram, grande sofrimento para o povo do lugar sem poder plantar… O mundo tinha virado de pernas para o ar.

Não só a estação havia mudado, mas a sorte e o ânimo dos paulistas. Já se delineava o resultado do embate, apontando a vitória das tropas da ditadura. Em menor número e sem munição, os paulistas recuavam em direção à sua capital. 

Foi no dia 15 de setembro o recuo mais dramático da guerra perdida, quando abandonaram a cidade de Lorena. Os paulistas, constitucionalistas, vendo o cerco se fechar, adotaram como tática a “terra arrasada”, para retardar e enfraquecer as linhas outubristas. Dos gêneros e víveres que para tropa inimiga poderia ser comida, nada restou. Não sabiam os combatentes que com essa ação insensata, recairia a carestia muito mais sobre o valente povo paulista do que sobre os soldados da ditadura. Do pouco que ainda tinham, foram forçados a ceder às tropas famintas de pão e sangue, que invadiam sem pedir licença, fiéis representantes que eram do regime do arbítrio. Para nosso desgosto, a linha de defesa se contraiu, atingindo a estação ferroviária de Engenheiro Neiva, na velha cidade de Guaratinguetá. Essas novas trincheiras, cavadas na iminência da derrota, foram a “musa” de Guilherme de Almeida, no épico “Oração ante a Última Trincheira”.

Laura de Azevedo Fontes. Foto: Walter Morgenthaler. Ano: 1998.

E foi no alvoroço desses acontecimentos e contratempos, que Laura de Azevedo Fontes, uma moça de 14 anos na época, recebeu – com a bravura que é própria das mulheres paulistas – um contingente grande de incômodos visitantes, ameaçando o saque, exigindo a boia ou o fogo grassaria pela Fazenda do Sertão, em Cachoeira Paulista, onde ela e a família estavam refugiados naqueles dias de setembro. Sacando o que tinha na dispensa (leite talhado) e o que restava no terreiro (galinhas velhas), na base do improviso e na boa mão que Deus lhe para os temperos, nasceu um prato novo para acalmar o estômago das tropas: um frango frito à moda da Revolução. A receita agradou paladares e amansou o ânimo dos soldados. Cessado os embates, abaixada a poeira, a receita foi sendo repassada e replicada, geração após geração, até chegar até nós. Revoluções findam-se; a gula, nunca.

Frango à Revolução
1 frango caipira (ou de granja) grande, cortado em pedaços
2 colheres (sopa) de suco de limão
3 dentes de alho amassados
1 folha de louro picada
Sal e pimenta a gosto
4 colheres (sopa) de óleo de urucum (ver receita abaixo)
2 cebolas grandes, cortadas em rodelas
3 xícaras (chá) de coalhada
4 colheres (sopa) de cheiro-verde picado

Modo de preparo:
Em uma tigela, tempere o frango picado com o suco de limão, o alho, o louro, o sal e a pimenta a gosto. Cubra e deixe descansar por 3 horas ou de um dia para o outro, para o frango pegar melhor o tempero.
Aqueça o olho de urucum em panela, em fogo alto. Junte o frango e deixe dourar. Acrescente a cebola e refogue até ficar macia.
Adicione a coalhada, misture, tampe e deixe ferver. Reduze o fogo e cozinhe, mexendo de vez em quando, até o frango ficar macio.
Acrescente o cheiro-verde e misture. Prove o tempero e, se for necessário, junte mais uma pitada de sal e pimenta a gosto. Tire do fogo, passe para uma travessa e sirva.

Rendimento: 6 porções.

Como temperar o óleo com urucum:
5 colheres (sopa) de sementes de urucum
2 xícaras (chá) de óleo

Ponha o óleo em uma panela e misture as sementes de urucum. Mexa e aqueça em fogo alto até o óleo ficar bem vermelho. Tire do fogo, deixe esfriar e coe, para retirar as sementes do óleo. Reserve o óleo temperado para utilizar em outras preparações.

O urucum e a coalhada dão cor e sabor ao frango à Revolução. Um delicioso prato histórico!

Fonte:
FERNANDES, C. A Culinária Tradicional Paulista nos hotéis SENAC São Paulo. São Paulo: Editora SENAC, 1998. pp. 74-75.

Inverno em Cunha

Paisagem do bairro do Barreiro – Cunha – SP. Julho, 2018.
aos poucos os nossos verdes vales vão esvaecendo
as pastagens vão se rareando, ficando ralas, tosquiadas
e, olhando aqui de riba, dá pra ver a poeira
acompanhando as estradinhas lá embaixo
o ar começa a ficar pesado, meio azulado, 
parece querer também ficar deitado, 
aninhar-se entre as montanhas
por isso a neblina só dissipa depois que o Sol está alto
ou "rachando mamona", como dizia meu avô
é o frio, é a geada, é inverno em Cunha
tempo de tudo se recolher, guardar-se
como a gente mesmo se recolhe dentro de casa
na boca do fogão ou num agasalho, 
os bichos e os matos também têm a mesma ciência
quase nada que é plantado sai, os bichos se entocam,
vaca esconde o leite, galinha não gosta de chocar,
e até o tempo, arisco que é, obedece
perceberam que até as noites ficam mais longas?
há quem prefira a primavera, com suas chuvas de trovoada
e que faz os passarinhos sair em festança pelo céu,
dançando e se fartando entre as revoadas de aleluias
nos quatro cantos, tudo o que tem na terra acaba brotando
trazendo o verde mais vivo que a esperança de volta
até a terra entra no cio, dá pra sentir que ela fica quente, 
esperando o caboclo lançar a semente de milho e feijão
mas prefiro mesmo o inverno, não por que gosto 
das coisas estorricadas pela geada e pelo vento frio
nem de ver os vitelos encarangados no canto do mangueiro
Mas por que através dele, o Criador, penso eu, nos ensina
uma grande lição e que não pode ser esquecida
que no vai-e-vem da vida, no acontecer das coisas,
também temos que dar uma parada
para assentar as ideias no lugar, esperar a poeira abaixar,
matutar sobre o que fizemos e como fazer diferente,
assuntar sobre a nossa própria vida e - por que não? - 
para descansar os cambitos e prosear 
Para daí, sim, voltar com a mesma força e palpite
que voltam os matos e os bichos quando chega a primavera

(julho, 2018)

Cunha: maior produtora paulista de leite

Fazenda Aracatu, uma das inúmeras propriedades rurais de Cunha que produzem leite e queijo. Foto: Fazenda Aracatu.

Os resultados do Censo Agropecuário de 2017, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostraram que o município de Cunha é o maior produtor de leite do estado de São Paulo, com uma produção anual de 32,5 milhões de litros, sendo seguido por Araras. Estima-se que o total produzido seja bem maior que o apurado pelo Censo, já que muitos produtores declaram uma quantidade inferior à sua real produção. A produção estadual de leite chega a 1,5 bilhão de litros. De qualquer forma, o resultado municipal evidencia a importância da pecuária leiteira para economia local e a necessidade do governo estadual de investir na pecuária cunhense, visando aumentar a produtividade, a qualidade do leite e a melhora do plantel, já que é o maior produtor estadual de leite, mas a baixa produtividade é um desafio a ser superado.

Cunha possui o 6º maior efetivo de rebanho bovino do estado, com 75.347 cabeças, sendo o maior da região do Vale do Paraíba paulista. A liderança estadual fica com Mirante do Paranapanema, município da região de Presidente Prudente, na divisa com o Paraná, com 101 mil cabeças de gado. Além da produção total, nosso município ocupa a liderança no ranking estadual em número de vacas ordenhadas (13.951 cabeças), no valor obtido com a produção de leite de vaca (35,8 milhões de reais) e no número de estabelecimentos agrícolas que se dedicam à pecuária leiteira (1.281 unidades). Aliás, a maioria (61%) das propriedades rurais locais são voltadas, pelo menos em parte, à produção de leite, uma que vez que as duas modalidades de pecuária (leite e corte) ocorrem de maneira simultânea, em consórcio, nos minifúndios de Cunha.

Ao analisar o resultado desse último recenseamento agrícola, é possível perceber que Cunha é, ao lado de Mirante do Paranapanema, o município que possui a mais forte agricultura familiar do estado, devido à grande quantidade de estabelecimentos agrícolas (o maior número do estado, com 2.287 unidades de produção), à equânime estrutura fundiária (área média dos estabelecimentos é de 35,5 hectares) e à diversidade produtiva, ainda que em pequena escala, de cada unidade agrícola. A ocorrência de víveres, de equinos e muares e de plantações de hortifrutis em quase todos os sítios e pequenas fazendas evidenciam que em Cunha o modo de produção caipira, típico do interior paulista, ainda resiste e persiste em pleno século XXI. Por agricultura familiar entende-se que é aquela onde a gestão da propriedade é compartilhada pela família e a atividade produtiva agropecuária é a principal fonte geradora de renda da propriedade, sendo diferenciada da agricultura comercial pelo Decreto Federal nº 9.064, de 31 de maio de 2017. Como se nota, a agricultura familiar é uma força econômica do nosso município, precisando ser mais apoiada por todas as esferas do poder público, para que possa garantir renda, emprego e permanência à população rural. A produção captada por laticínios e cooperativas inspecionadas pelos serviços oficiais chega a 23 milhões de litros por ano. Mas nem todas as propriedades produtoras possuem certificação sanitária ou vendem leite para laticínios regularizados.

Outra questão relacionada à pecuária leiteira em nosso município é a produção artesanal de queijo (frescal, muçarela, nozinho, provolone etc.), que ocorre em fabriquetas espalhadas por diversos bairros rurais. A Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável Regional (CDRS) de Guaratinguetá estima, por exemplo, que o processamento artesanal do leite cunhense chega a atingir cerca de mil propriedades, com produção de cerca de 30 mil litros de leite diários. Apesar de não serem registradas e muitas não contarem nem mesmo com o SIM (Serviço de Inspeção Municipal), trata-se de uma atividade que é sustento de muitas famílias rurais e de pequenos pecuaristas que não são cooperativados e que vendem sua produção a essas fábricas artesanais. As queijarias artesanais buscam a regularização de sua produção, visando receber certificação sanitária dos órgãos competentes, para que possam comercializar com tranquilidade e legalmente seus queijos em Cunha e em outros lugares. Para tanto, organizaram uma associação e buscam apoio junto à Prefeitura de Cunha, visando receber apoio técnico e político para alcançar as certificações exigidas pelos organismos sanitários e de controle, buscando, desse modo, equivaler o SIM, de abrangência no território municipal, ao Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISBI/POA), certificação federal. Uma vez reconhecida essa equivalência do SIM com o Serviço de Inspeção Federal (SIF), garante-se oficialmente a segurança dos alimentos produzidos em Cunha e possibilita a venda dos queijos feitos aqui para todo o território nacional. Apesar de desconsiderada nas estatísticas oficiais, a produção desses pequenos laticínios familiares não é pequena. Recentemente, inclusive, a produção artesanal e familiar de queijo em Cunha, bem como as reivindicações dos produtores, foi tema de reportagem do canal Terra Viva. O queijo de Cunha já conquistou muitos paladares, resta conquistar o aval da burocracia federal.

A intensa geada de julho mudou a cor da paisagem rural de Cunha e deve trazer prejuízos à produção de leite. Local: bairro do Encontro – Cunha – SP. Data: julho, 2021.

Apesar da liderança estadual, os pecuaristas de Cunha devem passar por dificuldades em 2021. O inverno por si só, pela falta de chuvas, já faz a produção diária de leite despencar, encarecendo o preço do produto nas prateleiras (Lei da Oferta e da Procura). Só que este ano, além da estiagem e do aumento dos insumos produtivos, a intensidade da geada deve afetar a produção de leite e trazer prejuízos aos retireiros. A paisagem rural cunhense mudou de cor, passou de verde a castanho, após as últimas geadas. Os pastos foram tostados pelo congelamento do orvalho. Sem pastagem, os produtores rurais devem recorrer à compra de silagem ou comprar ração industrializada para alimentação do rebanho, o que deve encarecer a produção e aumentar o preço do leite e seus derivados aos consumidores. As dificuldades para o produtor rural cunhense são muitas (como sempre foram), mas a resiliência é a marca dessa gente que, com trabalho pertinaz, tudo supera. E prevalece. Sorte a nossa, pois sem produção não há comida.

Fontes:

CANAL TERRAVIVA. De Cunha-SP para o Brasil: Produtores buscam venda do queijo para fora do município. Youtube, 19 fev. 2021. Disponível em: < https://youtu.be/pykJ-G3Zvps >. Acesso em: 3 ago. 2021.
IBGE. Censo Agropecuário 2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2017. Disponível em: < https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/ >. Acesso em: 3 ago. 2021.
SECRETARIA de Agricultura apoia a produção de queijo dos laticínios de Cunha. Governo do Estado de São Paulo, 9 abr. 2020. Disponível em: < https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/secretaria-de-agricultura-apoia-a-producao-de-queijo-dos-laticinios-de-cunha/ >. Acesso em: 8 ago. 2021.