A estagnação demográfica do município de Cunha

Município manteve praticamente a mesma população durante todo o século XX.

Em 1.836, a população da Vila de Cunha era de 3.403 habitantes. A população da Província de S. Paulo não passava de 327 mil habitantes. Portanto, a população da Vila de Cunha representava cerca de 1% da população provincial que, àquela época, ainda incorporava o atual Estado do Paraná. Hoje, a população de Cunha é de 21.697 habitantes, segundo o IBGE. No Estado de S. Paulo, o mais populoso da Federação, vivem mais de 43 milhões de pessoas. Portanto, em nosso Município habita cerca de 0,05% do montante da população estadual, desconsiderando, claro, a população do Paraná, que agora é uma unidade federativa.

Se nesses 180 anos decorridos de lá para cá, Cunha mantivesse a participação no total da população estadual, não “parando no tempo” (como dizem), teríamos hoje mais 400 mil habitantes! Ia faltar morro para o povo fazer casa… Pensando melhor, ainda bem que viramos uma “cidade morta” na virada do século XIX para o XX.

Vale frisar que essa estagnação é fruto do saldo migratório negativo, e não da queda da taxa de natalidade/fecundidade, tal como acontece nos países desenvolvidos. Por trás dessa aparente estagnação há, paradoxalmente, toda uma dinâmica. Os “pushs factors” que podemos destacar são:

a) Estrutura agrária equalizada por gerações de herdeiros, inviabilizando novos desmembramentos de glebas às gerações futuras, tornando o fator fundiário um instrumento de repulsa;

b) Êxodo rural impulsionado pela industrialização das cidades do Vale do Paraíba e da Grande São Paulo a partir dos anos 1950;

c) Incapacidade técnica da agricultura tradicional/familiar de disputar mercado com a agricultura moderna e mecanizada;

d) Falência das elites agrárias tradicionais de Cunha, devido aos fatores “b” (escassez de mão-de-obra) e “c” (rendimentos precários e baixa produtividade);

e) Incapacidade do Estado de suprir as demandas por educação, saúde, transporte e direitos trabalhistas para a população do campo;

f) Substituição da agricultura familiar, combinada na tríade milho, feijão e suinocultura, pela pecuária de leite e corte, atividade com menor demanda de mão-de-obra e que introduziu espécies exóticas para formação de pastagem e resistentes à sazonalidade, tornando as roçadas um trabalho menos duro;

g) Devido aos fatores “b” e “c”, início da decadência das relações de trabalho pré-capitalistas nas roças de Cunha (inquilinos, agregados, meeiros etc.) e de solidariedade camponesa (mutirões), com a introdução do trabalho assalariado, autônomos (diaristas) e arrendamentos, a fim de contrair empréstimos bancários.

Nada indica que essa estagnação demográfica seja superada tão logo. O recente aumento das atividades turísticas pode amenizar essa situação, evitando a saída de muitos cunhenses. Entretanto, a reversão desse processo depende de fatores econômicos muito mais pungentes que esse surto turístico incipiente.

Texto publicado em 30 de julho de 2016, na página Jacuhy.

A História de Cunha

Por João Veloso *

Cunha: 300 anos de História!

História

A atual região de Cunha – antiga Facam e que veio a se denominar Facão ainda nos primórdios do referido século –, desde o início do século XVII já era palmilhada por paulistas (vicentinos) e paratienses, que aproveitavam as trilhas dos indígenas guaianases (muitas delas velhos caminhos utilizados por animais, e que foram sendo ampliados pelos indígenas na Serra do Mar, por onde estes transitavam), para atingir o extenso campo de caça e o constante local de troca de produtos agrícolas: o Vale do Paraíba. A primeira incursão oficial à região foi a entrada exploradora organizada pelo filho do então governador do Rio de Janeiro, Martim Correia de Sá, saindo daquela localidade com setecentos homens brancos e dois mil indígenas escravizados, no ano de 1596. A expedição transpôs a serra de Paraty em 1597 e, ao atingir a região que logo em seguida se denominaria Facão, atravessou os rios Paraibuna e Paraitinga, alcançou as margens do rio Paraíba entre São José dos Campos, Taubaté e Pindamonhangaba, e adentrou as terras do Sul de Minas Gerais.

A passagem de Martim Correia de Sá pela picada da serra de Paraty, sertão adentro, evidencia a importância desse caminho, que passa, a partir de então, a ser utilizado por outras expedições, não apenas as oficiais, como também as particulares.

O Desbravamento

Com a descoberta das primeiras jazidas de ouro nas “minas gerais”, a partir de 1695 é que a região do Facão começa a ser palmilhada e desbravada de modo mais acentuado por aventureiros portugueses, por portugueses já radicados na região vale-paraibana e por outros moradores desses locais, todos à procura de enriquecimento fácil nas “Gerais”. Desse modo, a região do Facão torna-se passagem obrigatória como “boca do sertão”, no percurso litoral – região das “minas gerais” –, e começa o povoamento desordenado do Facão.

Devido ao trânsito intenso à extensa região do Facão, o local se torna também chamariz de vadios, desertores da Marinha e até de criminosos, que se ajuntam aos novos moradores da região e vão compondo esparsamente aquilo que logo se denominaria povoado.

Trânsito agitado. De um modo geral, o lugarejo sofre consequência dessa azáfama, que durou por volta de 30 anos – tempo de todas as jazidas serem descobertas. O povoado do Facão é o local de descanso e de provimento das tropas de ouro coloniais (ouro em pó, inicialmente carregado às costas pelos escravos).

O Clima, o Vale e a Montanha

A excelência do clima foi um dos fatores que justificaram o estabelecimento dos europeus e demais pessoas na região do Facão, entre o final do século XVII e o começo do século XVIII.

No trajeto obrigatório para as “minas gerais”, os exploradores e aventureiros portugueses, sesmeiros da região vale-paraibana e demais pessoas, que se tornariam os primeiros povoadores do

Facão, tiveram de se curvar ao impacto causado pelo panorama agradável, deslumbrante e ímpar da majestosa região. E, em contato com a terra, viram-na fértil, dotada de clima ameno, salutar e de águas límpidas, diferentes daquelas situadas no litoral, local das primeiras povoações.

A Povoação do Facão

De antigos povoamentos dispersos, o extenso espaço passou a ter a sua fundação oficial como Povoação do Facão em 1724, transformando-se, logo mais, entre 1748 – 1749, em Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão, e atraindo grande fluxo de interessados no solo fértil para a agricultura, aliado ao clima temperado; e ainda nas atividades de tropeirismo, tudo isso até aproximadamente o início do século XIX, quando a região já não mais dispunha de terras agricultáveis localizadas em setores privilegiados que margeavam os principais meios de acesso.

Um dos núcleos esparsos de povoamento da região do Facão se localizava nas cercanias da atual cidade, onde havia a capelinha de Nossa Senhora do Facão, erigida antes de 1700, no Alto do José Dias ou Alto da Mantiquira, bem na lateral esquerda do acesso ao atual bairro urbano Vila Rica. Como toda a terra do Facão não era ainda considerada povoação oficial, essa capelinha, situada na parte alta da região – e que tinha a imagem de Nossa Senhora do Facão e outras imagens, segundo dados históricos –, não representou, oficialmente, a primeira capela da região e nem marco do início da povoação.

Fundação

A fundação oficial da região do Facão deu-se em 1724, pela Vila de Santo Antonio de Guaratinguetá, a qual pertencia, com a edificação da Capela de Jesus, Maria e José, pelo povoador Capitão Luiz da Silva Porto, em seu sítio, no bairro rural da Boa Vista. Primeiramente, no início de 1724, um núcleo mais organizado de moradores se estabeleceu no bairro rural do Campo Alegre, aquém da Boa Vista; e ainda nesse mesmo ano, o referido grupo de povoadores se deslocou para a Boa Vista – antigo pouso de tropeiros, e aí foi construída a citada capela pelo dono das terras, iniciando-se consequentemente, a povoação oficial do Facão – que era a denominação antiga de Cunha.

Por outro lado, as terras em derredor da citada capelinha do Alto da Mantiquira atraíam um contingente razoável de povoadores com maior expressão social e econômica, por se situarem no meio do roteiro das tropas, numa região bem aprazível. Essas terras – que se seguiam do Bairro do Jacuizinho até o morro do Facão (Morro Grande) – pertenciam ao Capitão José Gomes de Gouveia e sua mulher, dona Maria Nunes de Siqueira.

Desse modo, com o interesse de povoadores em se estabelecerem em suas terras, o Capitão José Gomes de Gouveia procedeu a transferência da Capelinha de Nossa Senhora do Facão, com todas as suas imagens e alfaias, para a capela recém-inaugurada em 1731, no planalto contíguo em suas terras, denominando-a Capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão.

Uma vez desativada a capelinha do Alto da Mantiquira, a região, a partir de 1731, passa a contar com duas capelas: A capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, erigida em 1724 e que foi o marco oficial da povoação e fundação da região do Facão; e a capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão, inaugurada em 08 de dezembro de 1731.

A capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, também denominada popularmente capela de São José, ou capela da Boa Vista, desde a sua edificação em 1724, mantinha capelão particular para celebrar missas a expensas do seu fundador, Capitão Luiz da Silva Porto, ou ainda da autoridade episcopal da época. Após a devida licença para sua bênção, efetivada em 1º de abril de 1742, pelo vigário da vara do Distrito, padre José Alves Vilela, a capela também passou a realizar casamentos e batizados.

De 1742 a 1746, em ambas as capelas se celebravam concomitantemente missas e se realizavam casamentos e batizados. A capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, nos anos subsequentes à sua bênção em 1742, também atuou como freguesia, pois o instituidor mantinha pároco na mesma, a qual chegou, por esse motivo, a ser considerada freguesia interina, devido inclusive à sua importância na região do Facão, o que evidenciava a prevalência da capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista sobre a recém-edificada capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão.

SINOPSE HISTÓRICA:

  • A povoação e fundação oficiais da região do Facão se deram com a edificação da capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, em 1724;
  • A inauguração da capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão, construída pelo Capitão José Gomes de Gouveia, em suas terras, ocorreu em 8 de dezembro de 1731;
  • A capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão tornou-se sede da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão (criada entre 1748-1749); enquanto a capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista continuou funcionando normalmente, para a alegria de seus devotos;
  • Em 15 de setembro de 1785, a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão é elevada à condição de Vila de Nossa Senhora da Conceição de Cunha. O novo nome é dado em homenagem ao então governador da Província de São Paulo, Capitão-General Francisco da Cunha e Menezes. Desse modo, emancipada a nova vila política e administrativamente da Vila de Guaratinguetá, cria-se município próprio, com sua primeira câmara municipal, cadeia e pelourinho;
  • Em 20 de abril de 1858, a Vila de Cunha eleva-se à condição de Cidade pela Lei Provincial de Nº 30, sancionada pelo presidente da Província, Senador José Joaquim Fernandes Torres através do decreto da Assembleia Provincial de 19 de abril de 1858;
  • Em 29 de março de 1883, o Município torna-se Comarca por Lei Provincial de nº 27, classificada por decreto do Ministério da Justiça de 23/12/1889, e instalada em 10/01/1890;
  • O Distrito de Campos de Cunha (ex-Campos Novos de Cunha) foi criado por Lei Municipal de nº 5, de 08/03/1872. O topônimo Campos Novos de Cunha foi simplificado para Campos de Cunha pelo Decreto-Lei estadual de nº 9073, de 31 de março de 1938, e fixado pela Lei nº 9775, de 30 de novembro de 1938
  • Em 28 de outubro 1948, cria-se a Estância Climática de Cunha;
  • Em 12 de setembro de 1972, através da Lei Municipal de nº 222, criaram-se o brasão e outros símbolos municipais, de autoria de Manoel Galvão Moreira e confeccionados oficialmente pelo heraldista Alcinoé Antônio Peixoto de Faria;
  • Criado em 1998, o Hino Municipal, cuja letra fora elaborada pelo Professor Ernesto Veloso dos Santos, recebeu a melodia, composta por Antonio Benedito dos Santos (Tonico Capítulo), e orquestração oficial para banda de música e coro, pelo Maestro Professor Victor Amato dos Santos. O Hino foi oficializado em 12 de maio de 1999, através da Lei Municipal nº 819/99;
  • Aprovada na sessão ordinária realizada pela Câmara Municipal de Cunha em 20 de novembro de 2017, e sancionada no dia 24 de novembro do mesmo ano, a Lei Municipal nº 1569/2017 oficializou a capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista como o marco zero da Fundação de Cunha, assim como fixou a data de comemoração do aniversário local no dia 19 de março de cada ano, com a contagem da idade de Cunha a partir do ano de 1724.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Arquivo do Museu Francisco Veloso, Estância Climática de Cunha.

Atas da Câmara Municipal de Cunha – 1947-1948.

FERRAZ, Mário Sampaio. Cunha. São Paulo: Secretaria da Agricultura e Comércio do Estado de São Paulo / Diretoria de Publicidade Agrícola, 1940.

SILVEIRA, Carlos da. Documentos Interessantes sobre Cunha. Revista do Arquivo Municipal: São Paulo, 1939.

VELOSO, João José de Oliveira Veloso. A História de Cunha – 1600-2010 – Freguesia do Facão: A Rota da Exploração das Minas e Abastecimento de Tropas. Centro de Cultura e Tradição de Cunha: São José dos Campos/SP: JAC – Gráfica e Editora, 2010.

CUNHA, Mário Wagner Vieira da. O Povoamento no Município de Cunha In: Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia, II:641-49, 1944.

Texto publicado no sítio eletrônico oficial da Prefeitura Municipal da Estância Turística de Cunha, São Paulo: < http://www.cunha.sp.gov.br/a-cidade/historia/ >. Acesso em: 27 jun. 2021.

* João José de Oliveira Veloso (1945 – 2021), foi um professor, tradutor e historiador cunhense. Atuou como professor da rede pública de ensino, lecionando Língua Portuguesa e Literatura e Língua Estrangeira Moderna (Inglês) durante toda sua vida. Era formado pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Foi membro do Instituto de Estudos Valeparaibanos (IEV) e diretor e fundador do Museu Municipal Francisco Veloso e do Centro de Cultura e Tradição de Cunha. Foi criador do COMPHACC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural de Cunha). É autor de inúmeros livros e artigos sobre a história de Cunha, fruto dos seus 40 anos dedicados a pesquisar a história do lugar, com destaque para o livro “A História de Cunha”, lançado em 2010, com mais de 500 página de sólida pesquisa historiográfica em fontes primárias. Este artigo publicado em dezembro de 2017 e se encontra disponível no site da Prefeitura de Cunha.

As perdas migratórias e a pirâmide etária de Cunha

Migrar é ação inerente à história da Humanidade. Desde os mais remotos tempos, mudar de lugar para suprir suas necessidades parece ser uma condição que acompanhou e garantiu a existência das sociedades humanas, levando à sua dispersão pelo Globo. A geógrafa francesa BEAUJEU-GARNIER (1980, p. 191) discorre a esse respeito: “o homem é uma criatura móvel, capaz de investigar, suscetível à sugestão e dotada de imaginação e iniciativa. Isso explica a razão pela qual, tendo concebido a idéia de que suas necessidades podem ser satisfeitas algures, decide não só ir a esse lugar como, também, sobre os meios por que seu projeto pode ser realizado.”. E assim tem feito desde que se pôs a andar, há milhões de anos.

Pirâmide etária do estado de São Paulo, segundo Censo de 2010. Não se nota nela a retração das barras que compreendem a população em idade ativa. Fonte: IBGE

São Paulo, nosso estado, foi receptáculo, desde o final do século XIX, de inúmeras levas de imigrantes que partiram para o Novo Mundo: italianos, japoneses, libaneses, alemães etc. Já no século XX, foi a vez dos nordestinos fluir em grandes levas para cá, acompanhando a necessidade das indústrias por mão de obra barata, abandonando a região de origem e os graves problemas e disparidades sociais até hoje não superados. Por isso o geógrafo brasileiro Milton Santos faz questão de anotar e chamar a atenção para a complexidade do fenômeno migratório, ao escrever que “o fenômeno das migrações aparece, portanto, estreitamente ligado ao da organização da economia e do espaço, vistos de um ponto de vista dinâmico.” (SANTOS, 2008, p. 306). A questão migratória vai além dos fatores psicológicos e mesmo das diferenças de renda entre os trabalhadores do campo e da cidade.

Evolução da população de Cunha ao longo dos últimos 40 anos. Criação: Jacuhy. Fonte dos dados: Fundação SEADE.

Cunha e outros municípios do Alto Vale do Paraíba vivenciaram no século passado um processo inverso do estadual. Porque, como afirmou SANTOS (2008, p. 301), as migrações são expressões da desigualdade espacial, resultado dos mecanismos de modernização, da influência da grande cidade sobre parte da área rural próxima. Assim, as circunstâncias históricas e econômicas fizeram prevalecer nestas paragens o êxodo rural. Camponeses sem acesso à terra (meeiros, agregados, inquilinos etc.) e pequenos agricultores com baixos rendimentos deixaram o campo cunhense e partiram para outras cidades do Vale do Paraíba e da Região Metropolitana de São Paulo, em busca de emprego, melhores condições de vida e maiores salários. Durante todo o século XX, essas perdas migratórias enxugavam as altas taxas de natalidade e de fertilidade, impedindo o seu reflexo no aumento natural da população municipal. Desse modo, a população de Cunha ficou estagnada na casa dos vinte mil habitantes durante todo o século passado. E assim permanece.

Essas condições podem ser observadas nas pirâmides etárias de Cunha. Os gráficos são reveladores quando se trata da estagnação demográfica em que o município se encontra há mais de um século. Cunha se fechou em uma agricultura familiar e de subsistência, de baixo rendimento, autóctone, calcada na plantação consorciada de milho/feijão e na pecuária extensiva. Tudo muito impróprio, dada às condições geomorfológicas do lugar, território acidentado em cada canto. E sem acompanhar (por muitas razões) as inovações tecnológicas do agronegócio. Não porque os agricultores cunhenses assim quiseram, mas porque estruturas poderosas, que se articulam em escalas superiores a local, implantaram e porque a lógica do capital é geradora de desigualdades, privilegiando certos espaços e se esquecendo de outros. O Brasil viveu durante o século XX um projeto avassalador de modernização, que culminou na concentração espacial da produção e consumo (SANTOS, 2008, p. 305-306), sobretudo nas grandes cidades, que serviram como espaços de recepção de bens, pessoas e capitais desses projetos do mercado, em prejuízo das cidades pequenas e zonas rurais.

Pirâmide etária de Cunha, segundo o Censo 2010. As barras da população compreendida entre os 20 e 39 anos estão retraídas. Fonte: IBGE.

Percebe-se, observando as pirâmides etárias do município, que as barras sofrem uma retração quando estão nas faixas etárias que compreendem a população em idade ativa (conforme se vê na imagem acima), que vai, geralmente, dos 16 aos 60 anos. Isso é um claro indicador do impacto do saldo migratório negativo. Muitos jovens, após se formarem no ensino médio, acabam deixando Cunha e partindo em busca de emprego, por isso há essa depressão no miolo da pirâmide. O mesmo fenômeno não é observado no estado de São Paulo e nem nos municípios da região que foram capazes de oferecer oportunidades de emprego, seja no comércio, serviços ou nos seus parques industriais. Mesmo se decidem permanecer no campo, o sítio da família, um minifúndio explorado pela força do trabalho familiar, não é capaz de propiciar renda para todos os filhos. Muitos têm que se mudar, mesmo a contragosto. É a chamada “migração ascendente” (SANTOS, 2008, p. 304), que se relaciona com o êxodo rural, fluxo que surge como uma fuga da miséria.

Pirâmide etária de Cunha, segundo o Censo 2000. A barra da população compreendida entre os 25 e 29 anos está retraída. Nota-se ainda um perfil clássico de pirâmide, entre a Fase I e Fase II da Teoria da Transição Demográfica. Fonte: IBGE.

Em Cunha, essa migração ascendente se acelera após a pavimentação da Rodovia Paulo Virgínio (SP-171), que liga Cunha à Rodovia Presidente Dutra (BR-116), na década de 1960. Por isso, Milton SANTOS (2008, p. 304) e outros estudiosos do fenômeno migratório, relacionam esses deslocamentos de população às facilidades de transporte. Assim, milhares de pessoas começam a esvaziar os campos e cidades menores em direção às metrópoles regionais e mais ainda para as metrópoles nacionais, onde o setor terciário é elástico o suficiente para recebê-las. Essas migrações nascem de situações de desequilíbrios e acabam agravando as desigualdades econômicas e espaciais, inchando as cidades e murchando as zonas rurais e cidades locais. Por fim, geram mais concentração espacial de renda, população, indústrias, comércio, consumo, poder político, inovações tecnológicas etc. Criam um espaço de topologia marcada por assimetrias socioeconômicas.

Quando se chega na faixa da população idosa, que estão representadas no topo, o município volta a se assemelhar aos padrões estaduais e nacionais. Isso indica uma migração de retorno. Muitos cunhenses, após se aposentarem, retornam à terra natal. O lugar onde o umbigo foi enterrado cala mais alto na alma do cunhense.

Garantir emprego para sua população, sobretudo para sua juventude, é um dos desafios mais urgentes para o município de Cunha. Há dois caminhos no horizonte. O turismo, em franca expansão, cuja capacidade a ser alcançada ainda é incerta. E a agricultura familiar, que pode se reinventar com novas formas de produzir, com sistemas agroflorestais, produção orgânica e diversificação de culturas. Mão de obra é o que não falta, mas faltam projetos, recursos, vontade e formação técnica para a juventude trabalhadora cunhense. Hoje, as cidades maiores já não são mais tão atrativas como eram no tempo dos nossos pais e avós, devido ao alto custo de vida e à rarefação dos empregos, fatores que se somam a um mercado cada vez mais exigente de qualificação e, desse modo, concorrido.

Talvez o futuro esteja nascendo em cidades como Cunha. Não custa sonhar. Com os pés no chão e mãos à obra, claro.

Referências:

BEAUJEU-GARNIER, J. Geografia de População. Tradução: Leônidas G. de Carvalho. 2. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1980.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2010: sinopse dos resultados. Disponível em: < https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html >, acesso em 5 jun. 2021.

SANTOS, M. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Tradução: Myrna T. R. Viana. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2008.

Grupo Memória Cunhense: revivendo histórias e matando saudades

Muitas fotos antigas de Cunha e de seu povo podem ser encontradas no grupo Memória Cunhense.

Outono de 2.012. Os cunhenses, não só daqui, mas os dispersos por outras paragens, resolveram que era chegada a hora de invadir a rede social do Mark Zuckerberg, deixando juntar mato nas hortas de “colheita feliz” do Orkut. Cingidos com chapéu de palha e armados com enxada na cacunda partiram todos para o “Feice”. E assim que chegaram, trataram logo de colonizar o novo espaço virtual, demarcando o território com café, farinha, pinhão, preocupação com a vida alheia e muito “ar”, “er”, “ir”, “or”, “ur” para todos os lados. Porém, trouxeram consigo muitas postagens interessantes e saudosistas sobre Cunha e seu povo. Já que a Globo não mostra Cunha mesmo (nem quando houve o “L’Étape Brasil”, lembram?), nós mostramos. E do nosso jeito! Com muito sentimento envolvido, porque Cunha é nossa pátria e o nosso bairrismo interiorano “imporrrta, sim, senhorrr”.

E foi no meio de tantas postagens proveitosas e desencontradas que se ocultavam no feed de notícias e que desapareciam nos algoritmos da rede, que a doutora Vânia Zaccaro, “cunhêra raiz” e delegada de Polícia Civil, resolveu pôr ordem na casa. Teve então a ideia de criar um grupo que reunisse todas as postagens sobre Cunha. Para tal empreitada convidou o professor e escritor Victor Amato dos Santos, historiador e maestro da Banda Furiosa, para manter as publicações afinadas com o propósito do grupo. E chamou o Paulo Henrique de Campos Reis, que carrega no sangue a saga dos tropeiros, para transportar para o espaço virtual conteúdos que estivessem perdidos pelos sertões da rede social. E foi assim que, em 22 de junho de 2.012, foi criado o grupo Memória Cunhense com algumas dezenas de membros.

As primeiras postagens e colaborações foram feitas pelos próprios idealizadores, já que tudo aquilo era novidade para muitos e “nóis”, caipiras, somos ressabiados por natureza ante qualquer modernidade. O professor Victor já dispunha e publicara em seu perfil um riquíssimo material de cunhenses inolvidáveis de outrora (Tio Malaquias, Zé Veloso, Zé Varda, Seu Ubirajara, Tia Ção, Victor Amato & Maria Tereza Fornitano, entre outros). Então coube a ele inaugurar e abastecer o grupo nos primeiros dias, trazendo ao público a memória de tanta gente boa desta terra que, quando viva, era indispensável; e mesmo morta, é inesquecível. O Paulo Reis publicou o relato de seu pai, Sr. Roque Inácio, um dos últimos tropeiros de Cunha. E a Vânia resolveu aguçar a nossa memória gustativa, publicando a tradicional receita do bolinho de arroz, que tanto sucesso faz nas alvoradas da Festa do Divino, iguaria cunhense por excelência. A memória compreende várias dimensões do ser humano, passando, inclusive, pelo estômago.

À medida que o grupo ia crescendo e ganhando novos membros, o alcance das postagens se ampliava e novas contribuições foram surgindo. A quantidade de fotos e informações postadas aumentava diariamente. Os baús familiares foram se abrindo, fotografias antigas eram digitalizadas e lembranças diversas eram compartilhadas. A cada nova postagem, uma grata surpresa. Em cada surpresa, uma emoção. Para o cunhense ausente, que migrou, mas que manteve os laços afetivos, familiares e de pertencimento ligados a esta terra, relembrar é reviver. E reviver é sentir de novo. E assim, foto após foto, comentário após comentário, foi-se tecendo a memória coletiva de tanta gente dispersa e desencontrada, trazendo a lume o que foi olvidado, mas que não devia ter sido esquecido nunca. E quantos reencontros não aconteceram nos comentários? Reencontro com o passado, com o esquecido, com os parentes, com os amigos, com os lugares, consigo mesmo e com a comunidade. E quantos desses reencontros não começaram com a peculiar indagação: “Ocê é fio di queim?”. Frase-gatilho para despertar uma boa prosa e tantas reminiscências.

O professor Victor aponta que o sucesso do grupo se deve à seriedade e qualidade dos conteúdos postados, o que tornou o Memória Cunhense uma fonte de pesquisa para estudantes, professores, curiosos e interessados na História local, graças à “riqueza e precisão de informações nas publicações feitas nele quase que diariamente pelos participantes/colaboradores”, arremata.

Sem dúvida que o lançamento do livro “A História de Cunha”, pelo saudoso professor e historiador João Veloso, em setembro de 2.010, despertou o interesse dos cunhenses para com o seu passado e contribuiu para o surgimento de grupos de natureza memorialista e histórica. Sobre essa questão, o professor Victor acredita que o Memória Cunhense é um complemento ao livro do João Veloso, pois dá voz e vez ao povo cunhense para narrar a sua própria História. Esse pensamento converge com o objetivo da Vânia ao criar o grupo, pois conforme relato seu: “achei uma boa ideia reunir essas fotos, a maioria de anônimos ou pessoas que, embora não tivessem grande relevância para História oficial da cidade, estavam presentes no imaginário dos habitantes de Cunha”.

Foi também no Memória Cunhense que a ideia de se retificar a data de fundação do município de Cunha ganhou força e apoiadores, gerando muitos debates e questionamentos. Até que em 2.017, em um movimento encetado pelo professor Victor e respaldado nas pesquisas do historiador João Veloso, três audiências públicas ocorreram na Câmara de Cunha para debater a questão. Concluídas as audiências, um projeto de lei foi aprovado pelos vereadores e sancionado, posteriormente, pelo então prefeito Rolien Guarda Garcia, estabelecendo o dia 19 de março de 1.724 como data oficial de fundação do município de Cunha.

Em 2020, o grupo já contava com um acervo virtual de mais de 4 mil fotos, 50 mil comentários e mais de 7 mil membros que interagiam e colaboravam ativamente nas postagens. E tudo isso está acessível a todos, pois o grupo é público. O Memória Cunhense é único porque foi pioneiro e precursor de outros grupos similares em municípios vizinhos. É único porque tem cumprido à risca a sua missão de matar a saudade e fazer reviver o que foi esquecido. Continua firme e forte em seu propósito inicial de ser uma exposição permanente e aberta para as belezas da Cunha de ontem, de hoje e de sempre, pois, como disse o poeta:

” (…)

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão. “

Carlos Drummond de Andrade, in “Memória”.
Imagem da postagem da série “Hoje na História de Cunha”, da página Jacuhy. O fundo é formado por fotos que estão no acervo digital do Memória Cunhense.

Fontes:

Carlos Drummond de Andrade. Memória (poema). Disponível em: < https://www.escritas.org/pt/t/1779/memoria > , acesso em jun. 2020.

Grupo público Memória Cunhense (Facebook). Disponível em: < https://pt-br.facebook.com/groups/memoriacunhense/ > , acesso em jun. 2020

Relato escrito concedido pela Dra. Vânia Idalira Zaccaro de Oliveira, advogada, delegada e criadora do grupo (via Messenger). Guaratinguetá, junho de 2.020.

Relato escrito concedido por Victor Amato dos Santos, professor, historiador e criador do grupo (via Whatsapp). Cunha, junho de 2.020.

Imagens: Banco de imagens do grupo Memória Cunhense (Facebook).

Observações: Agradeço a contribuição e a gentileza da Vânia e do Victor por atender à solicitação da página prontamente, enviando os relatos que embasaram esta postagem.

Texto escrito originalmente para página do Facebook “História de Cunha” (atual Jacuhy), postado em 22 junho de 2.020.

Área ocupada por eucalipto no Vale do Paraíba aumentou mais de 300% nos últimos 30 anos

Plantação de eucalipto. Foto: MST. Data: 2015.

Estudo coordenado por Carlos Cesar Ronquim, engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Territorial, apontou que a área ocupada por eucalipto no Vale do Paraíba, em sua porção paulista, saltou de 35.200 hectares em 1.985 para 113.600 hectares em 2.015, ocupando uma área equivalente ao município de São José dos Campos, o segundo maior de nossa região. Um aumento de 323% ao longo de 30 anos. Em 1.985, 2,5% da área total da nossa região estava ocupada por eucaliptos. Em 2.015, esse percentual chegava aos 8,1% da total área do Vale do Paraíba paulista. Esse aumento se reflete na paisagem regional. Todos os habitantes adultos do Vale, os nativos daqui pelo menos, já perceberam esse aumento explicito e visível nos seus lugares e municípios, principalmente a partir das primeiras décadas do século XXI. Seria o eucalipto o novo café?

Mapa do uso e ocupação do solo do Vale do Paraíba paulista em 1985. Autores: RONQUIM e COCHARSKI. Fonte: EMBRAPA, 2016.

O aumento da área ocupada pela silvicultura de eucalipto foi acompanhado pela queda das áreas ocupadas por pastagem, solo exposto e atividades agrícolas, conforme pode ser verificado nos mapas que ilustram este artigo. A área ocupada por pastagem ainda ocupa a liderança, com 652.600 hectares, correspondendo em termos relativos a 46,7% do total. Todavia, há 30 anos correspondia a cerca de 68% da área total da região, o que demonstra o quanto o ambiente natural estava degradado pela pecuária e agricultura extensiva tradicional. A área com solo exposto sofreu uma ligeira queda, caindo de 3,7% para 3,3% em 2.015, uma diminuição de 5.500 hectares. É uma constatação positiva, pois a exposição do solo é um agravante ambiental, porque geralmente desencadeia processos erosivos, lixiviação etc. Por fim, a área ocupada por atividades agrícolas também retraiu, saindo de 51.300 hectares em 1.985 para 36.500 em 2.015. Em termos relativos ocupava 3,6% da área total e em 2.015 passou a ocupar 2,6%. Forte indicar que o ciclo agrícola do Vale está em franco declínio, incapaz de concorrer com outras áreas do Brasil, onde impera uma agricultura mecanizada, com produção em larga escala e voltada à exportação.

O retraimento das áreas de pasto e plantação foi sucedido por um aumento da ocupação por matas nativas. Um salto de 249.500 hectares em 1.985 para 455.200 hectares em 2.015. Assim, a cobertura florestal sobre a nossa região aumentou de 17,8% em 1.985 para 32,6% em 2015. Uma constatação auspiciosa e que indica que nem só de más notícias vive a Mata Atlântica. Com o progressivo aumento regional das taxas de urbanização, a área ocupada por construções também aumentou de 38.500 hectares para 63.600 hectares, chegando a uma ocupação de 4,6% da área total do Vale em 2.015. O aumento da mancha urbana das urbes valeparaibanas se dá pelo crescimento da população citadina e pelo forte êxodo rural, que ainda não se esgotou em nossa região. Esvaziam-se os campos; incham-se as cidades. Um reflexo da situação nacional em escala regional.

Mapa do uso e ocupação do solo do Vale do Paraíba paulista em 2015. Autores: RONQUIM e COCHARSKI. Fonte: EMBRAPA, 2016

O esvaziamento do campo valeparaibano paulista pode ser um dos fatores que levou ao aumentou da cobertura de mata nativa, indicando uma regeneração dos pastos sujos que, em 1985, correspondiam a 390.600 hectares, ou 27,9% da área total regional. A queda da quantidade das áreas agrícolas também se relaciona com o declínio da agricultura familiar na região e ao êxodo rural. Além do mais, principalmente nos municípios do Alto Vale do Paraíba, as propriedades agrícolas têm adquirido novas funções. Muitas se converteram em sítios de veraneio para pessoas advindas da Região Metropolitana de São Paulo. Outras têm se convertido em lugares para consumo do espaço, com a incipiente, mas promissora atividade turística regional (com exceção de Campos do Jordão, que já é um polo turístico há muitas décadas), com as práticas ecoturismo e turismo rural, que valorizam a existência de mata nativa e torna esse tipo de cobertura do solo um fator de agregação de valor. Há também um aumento da patrulha da Polícia Militar Ambiental, mas essa ação repressiva nunca gerou consciência, apenas medo e desconfiança, além de dividendos para o Estado, com as pesadas multas que aplicam.

O avanço do eucalipto se dá no mesmo contexto, mas parece ser causa do êxodo e não consequência. Essa cultura comercial avança no rastro de estagnação econômica deixado pelas atividades ligadas à agricultura familiar e à pecuária extensiva, cada vez menos lucrativas e cada vez mais inviáveis para as pessoas da roça. É impossível os agricultores e pecuaristas do Alto Vale, adeptos de técnicas rudimentares, competirem com os agricultores e pecuaristas de outras regiões do Brasil, que incorporam técnicas modernas, mecânicas e automatizadas na produção. Diante desse cenário, há um barateamento da propriedade agrícola regional, tornando-a interessante às grandes empresas de papel e celulose do Brasil, pois a região possui uma excelente localização, possui vasta malha rodoviária e está entre as duas maiores metrópoles do país e relativamente próxima aos centros industriais e aos portos. Uma vez adquiridas, sempre de vários proprietários do mesmo bairro e ao mesmo tempo, com intuito de pressionar – de forma covarde – os mais proprietários mais resistentes, ocorre a expulsão da população local, pondo fim à existência do bairro rural. Cria-se um verdadeiro “deserto verde”, levando a antiga propriedade familiar, passada de geração a geração, e que atendia ao mercado local e às necessidades familiares, a atender às demandas do mercado internacional, se articulando e se organizando a partir de uma lógica exógena e desvinculada totalmente do lugar. A celulose é um dos produtos de exportação do Brasil e sua venda tem sido destinada principalmente para a Rep. Popular da China, EUA e Países Baixos. Não é à toa que na vizinha São Luiz do Paraitinga (SP) já existe um movimento local de resistência ao avanço desenfreado da eucaliptocultura, causadora de impactos ambientais, sociais e na saúde do povo da roça, devido ao uso indiscriminado de formicidas e outros agrotóxicos em larga escala.

Afinal, quem realmente ganha com o avanço das plantações de eucalipto? A população do lugar eu sei que não é. Para os boias-frias, que são contratados de maneira precária por empresas terceirizadas a fim de realizar o plantio, o controle de pragas e a limpeza dos pés de eucalipto, eu aposto que não também. Já a Votorantim Celulose e Papel (VCP) e a Suzano Papel e Celulose eu tenho certeza que sim. Quem mais?

Ou as saúvas acabam com os eucaliptos, ou as empresas de eucalipto vão acabar com todo universo caipira da região. Vida longa às saúvas!

Referências:

BARROS, C. J. Eucalipto avança em São Luiz do Paraitinga e gera reações. Repórter Brasil, 9 jul. 2009. Disponível em: < https://reporterbrasil.org.br/2009/07/eucalipto-avanca-em-sao-luiz-do-paraitinga-e-gera-reacoes/ >. Acesso em 21 jun. 2021.

BUENO, S. Exportação de Celulose. Fazcomex, 13 jan. 2021. Disponível em: < https://www.fazcomex.com.br/blog/exportacao-de-celulose/ >. Acesso em 21 jun. 2021.

RONQUIM, C. C.; COCHARSKI, T. C. D. Uso e ocupação do solo, Vale do Paraíba do Sul, 1985. 1 mapa. Color. Escala 1: 250.000. Campinas (SP): Embrapa Monitoramento por Satélite, 2016. Disponível em: < https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1065875/uso-e-ocupacao-do-solo-vale-do-paraiba-do-sul-1985 >. Acesso em 21 jun. 2021.

______ . Uso e ocupação do solo, Vale do Paraíba do Sul, 2015. 1 mapa. Color. Escala 1: 250.000. Campinas (SP): Embrapa Monitoramento por Satélite, 2016. Disponível em: < https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1065878/uso-e-ocupacao-do-solo-vale-do-paraiba-do-sul-2015 >. Acesso em 21 jun. 2021.

RONQUIM, C. C. (Coord.). GeoVale: análise da distribuição geoespacial e de aspectos ambientais da eucaliptocultura na bacia do Rio Paraíba do Sul. Embrapa Territorial, dez. 2016. Disponível em: < https://www.embrapa.br/busca-de-projetos/-/projeto/205528/geovale–analise-da-distribuicao-geoespacial-e-de-aspectos-ambientais-da-eucaliptocultura-na-bacia-do-rio-paraiba-do-sul >. Acesso em 21 jun. 2021.

Pedra do Frade – Cunha – SP

Pedra do Frade, no bairro do Sertãozinho. Foto: Alessandro Ferraz.

1. Localização:

Está localizada no bairro do Sertãozinho, zona rural do município Cunha (SP). Possui um paredão de 80 metros de altura (IGC, 1978). Está a 14 quilômetros da sede urbana municipal em distância absoluta. As coordenadas geográficas da Pedra, obtidas pelo SIG on-line DataGEO, do Sistema Ambiental Paulista, são as seguintes: 23º10’23.7″S; 45º02’51.1″W (Datum: Sirgas 2000).

Localização da Pedra do Frade no município de Cunha. Cartografia: Jacuhy.

2. Altitude:

Varia conforme o produto cartográfico, site geoespacial ou SIG utilizado. Assim, tem-se:

  • na carta do IBGE: 1.220 metros.
  • na carta do IGC: 1.246 metros.
  • no software Google Earth: 1.233 metros.
A Pedra do Frade está a 1.246 metros de altitude. Fonte: IGC.

3. História:

A Pedra do Frade está dentro do sítio do Frade, propriedade do Sr. José Wagner e pertenceu às terras da fazenda do Sr. Décio Mariano Leite, que era filho de Crispim Mariano Leite e neto do capitão Joaquim Mariano de Toledo, povoador da região. Tem esse nome, segundo a tradição oral, porque na época da escravidão morava um frade no local, que a usava como refúgio, pois era defensor dos escravizados. Segundo dizem, há em um dos lados da Pedra a entrada para uma gruta, que serviu como abrigo para o frade e para os seus protegidos, que fugiam dos horrores da escravidão. Um frade é um religioso católico, não necessariamente um clérigo, que pertence a uma ordem religiosa mendicante. Diferente dos monges, os frades não ficavam tão enclausurados nos mosteiros, mas exerciam seu ministério junto ao povo. São notórios defensores dos pobres e oprimidos.

Pedra do Frade e o Alto do Diamante. Foto: Jorge Prudente. Arte: Jacuhy.

É muito difícil atestar a veracidade sobre a existência desse frade, mas relatos como esse são repassados pelos moradores locais ao longo do tempo. Há um fundo de verdade por trás de todos eles. A escravidão foi uma triste realidade no município de Cunha desde os tempos coloniais. No século XIX, por exemplo, quase metade da população de Cunha era formada por negros escravizados. A Pedra do Frade está próxima ao bairro da Catioca, primitiva zona de ocupação e povoamento do município de Cunha (VELOSO, 2010). Região privilegiada e propícia à colonização, pois estava situada no caminho que ligava a Freguesia do Facão (Cunha) à Vila de Taubaté. Assim, foi desde o século XVIII toda fatiada em sesmarias. Muitas fazendas surgiram na região da Catioca. Poucas permaneceram até hoje, como é o caso da Fazenda Sant’Anna, um testemunho de uma época pretérita. Mesmo se o relato não passar de mito e lenda, é certo que na região da Pedra do Frade houve escravidão e que muitos negros, como forma de resistir à opressão, fugiam e procuravam abrigo em lugares remotos.

Em 1933, o terreno no qual está a Pedra do Frade foi arrolado no espólio do capitão Joaquim Mariano de Toledo (“Quim Mariano”), maior fazendeiro de Cunha no início do século XX, com a seguinte descrição: “(…) i) – Três partes de terras no lugar denominado ‘Frade’ (…)” (VELOSO, 2010, p. 251). Os moradores do bairro do Sertãozinho figuraram entre os primeiros moradores de Cunha a se converterem ao metodismo, ainda nas primeiras décadas do século XX.

Aspecto do relevo da região. Foto: Adilson Toledo.

A Pedra do Frade é um prolongamento da Serra do Alto do Diamante e se encontra em uma região de Cunha onde as montanhas com os cumes pedregosos embelezam ainda mais a paisagem rural. Mas por que Alto do Diamante? Do ponto de vista geológico é muitíssimo improvável encontrar essas pedras preciosas em Cunha. Porém, por estar sobre o embasamento cristalino, há grande ocorrência de pedras de quartzo nas terras cunhenses. Essas pedras eram antigamente confundidas com diamantes ou consideradas como indícios de que haveria diamantes no lugar. Daí a crença popular de que poderia haver diamantes naqueles outeiros, onde brotam quartzos de variados aspectos e cores. Outros afirmam que o lajedo de gnaisse, após uma chuva ou garoa, tendo ficado molhado, tem brilho intenso como diamante, ao refletir a luz do Sol. Parece que os afloramentos rochosos marcaram a toponímia local. É muito provável, por exemplo, que o bairro do Itambé, vizinho do Sertãozinho, tenha recebido esse nome em razão do aspecto da Serra do Alto do Diamante. Itambé é topônimo (litotopônimo, no caso) de origem tupi (“itá-aimbé”) e significa “pedra pontuda e afiada” ou “pedra de amolar”,podendo, por extensão, ser traduzido como “borda; beira; precipício” (NAVARRO, 2013). Seria uma possível referência ao afloramento rochoso do Alto do Diamante? Vejam as fotos e tirem suas conclusões.

Aspecto do Alto do Diamante. Foto: Jorge Prudente.

4. Meio físico:

A Pedra do Frade, bem como todo o território cunhense, está inserida dentro do Domínio Morfoclimático dos Mares de Morros, possuindo as seguintes características:

  • a) Hidrografia: a Pedra exerce a função de divisor de águas, separando as microbacias do ribeirão do Limão e a do ribeirão das Abóboras, ambos tributários do ribeirão Itaim, que deságua no rio Paraitinga, na divisa com Lagoinha (SP). No sopé da face noroeste da Pedra nasce o córrego dos Peros (IBGE, 1974).
  • b) Climatologia: ocorre o tropical de altitude típico, com suas estações bem definidas, podendo ocorrer geada no inverno. Entretanto, essa região localizada em uma área serrana é mais úmida do que boa parte do município, devido à altitude e à proximidade com a Serra do Mar, sendo comum a ocorrência de eventos orográficos (garoa, serração) de manhã ou na parte da tarde.
  • c) Vegetação: no passado pré-colonial, era a região coberta por Mata Atlântica. Atualmente o entorno da Pedra está ocupado por pastagens, em função da atividade pecuária que se desenvolve no lugar. Na proximidade topo do encontra-se uma pequena mancha de Floresta Ombrófila Densa em estágio médio (SÃO PAULO, 2020). No topo da Pedra, entre as lascas seixosas que se desprenderam do monólito, brotam flores rupestres, o que ressalta a beleza do lugar.
  • d) Geologia: área de contato das entidades tectono-estratigráficas Terrenos Embu e Terreno Serra do Mar, formada há 587 milhões de anos, durante a Era Neoproterozoica (CPRM, 2006). A geotecnia aponta ser o local sujeito a alta suscetibilidade a escorregamentos (naturais e induzidos), com rochas cristalinas no embasamento (NAKAZAWA; FREITAS; DINIZ, 1994). Há o predomínio de rochas ígneas plutônicas. Registra-se a ocorrência dos seguintes tipos de rochas: gnaisse, biotita, granito, monzogranito, migmatito, xisto, metapelito, quartzito, meta-arenito etc. A região está inserida no maciço do Corpo Granito Natividade da Serra (IPT, 2010).
  • e) Geomorfologia: está dentro da unidade morfoestrutural do Cinturão Orogênico do Atlântico, mais especificamente no Planalto do Paraitinga-Paraibuna. A Pedra em si é um penedo granítico, fruto da erosão diferencial e resultado do ataque dos agentes exógenos sobre o relevo. A Pedra está passando por um processo de esfoliação esferoidal. Do ponto de vista topográfico é a Pedra um esporão, um interrompimento da declividade da linha de crista da Serra do Alto do Diamante. Esta serra chega a atingir em seu cume a altitude de 1.640 metros. O relevo da região é todo orientando pela litografia, sendo o bairro do Sertãozinho um vale em “v”, aninhado entre dois esporões lançados do maciço central da Serra do Alto do Diamante. A Pedra do Frade é apresentada no Mapa Geomorfológico do Município de Cunha (IPT, 2010) como parte integrante das serras alongadas, com morros altos e fortemente ondulados.
  • f) Pedologia: o solo predominante é o cambissolo háplico (SÃO PAULO, 2007), ocorrendo ainda em associação com os latossolos amarelo e vermelho-amarelo típico. Ambos são distróficos. Apresenta textura média, é argiloso e típico de relevo fortemente ondulado, com profundidade variável de pouco até muito profundo.
Pedra do Frade, hipsometria e vizinhança. Fonte: IBGE.

5. Ecoturismo:

Apresenta enorme potencial, porém ainda permanece inexplorada. Além de ser um mirante fascinante, nela pode se desenvolver atividades como: montanhismo, rapel, trekking, mountain bike etc. As formações rochosas e altas montanhas do entorno são um espetáculo que merece ser apreciado por mais pessoas.

Pastagens dominam o entorno da Pedra do Frade. Foto: Alessandro Ferraz.

6. Acesso:

Antes de tudo, é importante ressaltar que a Pedra está em propriedade particular, sendo assim, o acesso até ela necessita de anuência prévia dos proprietários.Para chegar até o local, deve-se seguir pelos seguintes caminhos:SP – 171 (Rodovia Vice-Prefeito Salvador Pacetti, de Cunha até a divisa com o estado do Rio de Janeiro), em asfalto, por 3,3 Km, daí entra à direita e segue pela Estrada Municipal Benedito Galvão de França (Cunha – Catioca), em terra batida, por 10,3 Km; daí entra à esquerda e segue pela estrada que interliga o bairro das Abóboras ao bairro do Jericó, em terra batida, por 0,5 Km, daí entra à direita, subindo e seguindo pela Estrada do Limão/Sertãozinho, em terra batida, por 6,3 Km até a entrada da trilha que dá acesso à Pedra, que está à esquerda da estrada. É um caminho de tropa frequentado pelos íncolas locais, que liga o bairro do Sertãozinho ao bairro do Sertão dos Marianos, do outro lado da cadeia de montanhas. Da estrada do Sertãozinho segue-se por trilha, em direção ao Sertão dos Marianos, subida a pique, por 1,4 Km.

Imagem de satélite da Pedra do Frade. Fonte: EMPLASA, 2010.

7. Outras informações:

a) Localização da Pedra do Frade no Google Maps: https://www.google.com.br/maps/place/23%C2%B010’22.3%22S+45%C2%B002’50.1%22W/@-23.1728611,-45.0485514,674/data=!3m2!1e3!4b1!4m14!1m7!3m6!1s0x9d7ce47f825ea7:0xb0e1ed8f9db1d15a!2sCunha,+SP,+12530-000!3b1!8m2!3d-23.0743544!4d-44.9561012!3m5!1s0x0:0x0!7e2!8m2!3d-23.1728643!4d-45.0472496!5m1!1e4

b) Rota da cidade de Cunha até o início da trilha para a Pedra do Frade: https://goo.gl/maps/CgmRpPTBuvmS1EJh6;

c) Não temos nenhuma informação sobre as condições de trafegabilidade, no momento, da estrada que leva à Pedra do Frade.

d) O presente artigo contou com informações valiosas fornecidas pelas seguintes pessoas Sr. Jorge Prudente (sitiante no bairro do Sertãozinho), Sr. Adilson Galvão (quem sugeriu esta publicação) e pela guia turística Sra. Edna Maria. Nosso agradecimento a eles.

Bairro do Sertãozinho. Foto: Adilson Toledo.

8. Fotos:

Adilson Toledo, Alessandro Ferraz e Jorge Prudente.

9. Referências:

AB’SÁBER, A. N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

COMPANHIA DE PESQUISA DE RECURSOS MINERAIS (CPRM). Mapa geológico do estado de São Paulo. Escala 1:750:000. Breve descrição das unidades litoestratigráficas aflorantes no estado de São Paulo. São Paulo: CPRM, 2006.

FRADE. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2021. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Frade&oldid=60735861 >. Acesso em: 24 mar. 2021.

GUERRA, A. T. Dicionário geológico-geomorfológico. 8. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 1993.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Lagoinha. Rio de Janeiro: IBGE, 1974. 1 carta topográfica, color., 4465 x 3555 pixels, 5,50 MB, jpeg. Escala 1:50.000. Projeção UTM. Datum horizontal: marégrafo Imbituba, SC, Datum vertical: Córrego Alegre, MG. Folha SF-23-Y-D-III-2, MI: 2770-2. Disponível em: < https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/mapas/GEBIS%20-%20RJ/SF-23-Y-D-III-2.jpg >. Acesso em: 18 jun. 2021.

INSTITUTO GEOGRÁFICO E CARTOGRÁFICO (IGC). Sertão. São Paulo: Governo do Estado de S. Paulo – Sec. de Economia e Planejamento: Plano Cartográfico do Estado de S. Paulo / Coordenadoria de Divisão Regional / Divisão de Geografia, 1978. Escala 1:10.000. Projeção UTM. Datum horizontal: marégrafo Imbituba, SC, Datum vertical: Córrego Alegre, MG. Carta SF-23-Y-D-III-2-SE-D, Folha: 083/131.

INSTITUTO DE PESQUISAS TECNOLÓGICAS (IPT). Esboço geológico do município de Cunha. Escala 1:50.000. São Paulo: IPT, 2010.

NAKAZAWA, V. A.; FREITAS, C. G. L.; DINIZ, N. C. Carta Geotécnica do Estado de São Paulo. Escala 1:500.000. São Paulo: Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), 1994.

NAVARRO, E. de A. Dicionário de tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São Paulo: Global, 2013.

ROMARIZ, Dora de Amarante. Biogeografia: conceitos e temas. São Paulo: Scortecci, 2008.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente. Mapa pedológico do Estado de São Paulo: revisado e ampliado. São Paulo: Instituto Florestal (IF), 2017. 118p. : il. color ; mapas. 42×29,7 cm. Disponível em: <http://www.iflorestal.sp.gov.br >. Acesso em: 1 mai. 2021.

______. Inventário Florestal do Estado de São Paulo: mapeamento da cobertura vegetal nativa. São Paulo: IF (Instituto Florestal), 2020. Disponível em: < https://smastr16.blob.core.windows.net/home/2020/07/inventarioflorestal2020.pdf >. Acesso em: 1 jun. 2021.

______. DataGEO – Sistema Ambiental Paulista: Infraestrutura de Dados Espaciais Ambientais do Estado de São Paulo (IDEA-SP). Disponível em: < https://datageo.ambiente.sp.gov.br/app/?ctx=DATAGEO >. Acesso em: 1 jun. 2021.

VELOSO, J. J. de O. A História de Cunha: 1600-2010 – Freguesia do Facão – A rota da exploração das minas e abastecimento de tropas. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2010.

Mapa concêntrico mostrando os pontos de referência próximos à Pedra do Frade. Cartografia: Jacuhy.

Cunha já pertenceu ao estado do Rio de Janeiro

Em um 18 de junho como esse, veio a bomba: Cunha é do Rio! Oh, céus, quem poderá nos salvar?

Em 18 de junho de 1.842, o Imperador Dom Pedro II baixou o Decreto n.º 180, transferindo Cunha e mais 6 municípios (Bananal, Areias, Queluz, Silveiras, Lorena e Guaratinguetá) para a Província do Rio de Janeiro. O objetivo era impedir que essas vilas caíssem em mãos dos rebeldes que se engajaram nas Revoltas Liberais de 1.842. Os sublevados haviam se apoderado de parte da Província de São Paulo. Caso essas vilas caíssem nas mãos erradas, a Coroa temia que isso dificultasse o avanço do Exército Imperial, já enviado para sufocar a rebelião. Conforme registrou SOUSA (1.843, p. 323): “Esses Municípios ameaçavão os limitrophes da Província do Rio de Janeiro, esforçando-se os agitadores para nelles soprar o espirito revolucionário”. No próprio Decreto há duas justificativas para tal degredo, a primeira alega que houve o interrompimento da comunicação entre as vilas valeparaibanas mencionadas e a capital provincial São Paulo. A outra diz tratar-se de “providencias tendentes a reestabelecer a ordem perturbada na referida Provincia pela rebellião, que ultimamente se manifestou em alguns lugares della (…)” (IMPÉRIO DO BRASIL, 1843, p. 321). Cunha pertenceu à Província do Rio de Janeiro durante 2 meses.

A Revolta Liberal estourou em São Paulo em 17 de maio 1842, no interior, em Sorocaba, onde Câmara proclamou Tobias de Aguiar e o ex-regente do Império o Padre Feijó, presidente e vice-presidente interinos de São Paulo, respectivamente. Tudo se deve à elevação da tensão entre os dois grupos políticos do Segundo Reinado, os liberais e os conservadores. Os centros da Revolta no “Norte” (como chamavam o Vale na época) da Província foram as vilas de Lorena e Silveiras, onde os liberais chegaram a tomar o poder. Nelas, o confronto militar foi inevitável, resultando em dezenas de mortos. Era necessário sufocar os rebeldes do Vale para evitar que apoio aos rebeldes aumentasse e ganhasse proporções maiores. Os liberais estabeleceram até uma capital provisória da Revolta, em Sorocaba.

O Exército Imperial veio pelo mar, com 400 homens, e “em São Sebastião desembarcou o 2º Regimento de Artilharia e um batalhão de caçadores, com a missão de marchar em direção a Guaratinguetá e atuar como força de cobertura.” (DARÓZ, 2014). Os liberais, além de poucos, eram mal preparados. Muito ideal e poucas armas. Não lograram êxito em seus intentos.

A transferência de Cunha para o lado fluminense foi uma medida que teve caráter circunstancial desde logo, conforme diz o caput do próprio Decreto n.º 180, que já deixou a ressalva: “em quanto durarem as circunstancias extraordinarias (…)”. Sendo os ânimos apaziguados à base da espada pelo nosso Exército no final de julho, em 29 de agosto do mesmo ano, o Imperador revogou o Decreto n.º 180, baixando o Decreto n.º 216, que reestabeleceu os sete municípios ao território paulista, “por terem cessado os motivos que fizeram necessária a providência”, ordenando “que os ditos municípios fiquem”, de novo, “pertencendo à Província de São Paulo”. As tropas imperiais eram comandadas pelo então Barão de Caxias, figura que ganhará proeminência no sufoco dessas revoltas, sendo promovido a marechal-de-campo por Pedro II, em julho de 1.842, em virtude de seu sucesso militar.

Essa mudança de território pouco impacto histórico trouxe para a Vila de Cunha. Foi uma medida emergencial e com curta duração. Tinha caráter extraordinário, tomada em meio a um conflito militar que abalava a estabilidade política do Segundo Reinado. Apenas um evento desse período ficou marcado na nossa História, que foi o pernoite festivo do Barão de Caxias em Cunha, em julho de 1.842. Vitorioso, quando estava a passar pela Vila de Cunha, na rota para alcançar Paraty, desejava o Barão chegar à Corte. Mas permitiu-se parar no meio do caminho, já com a revolta sufocada em São Paulo, para um regabofe. Celebração, com ares bajuladores por parte da elite cunhense, pelo triunfo militar das tropas imperiais. A Vila de Nossa Senhora da Conceição de Cunha era um reduto do Partido Conservador e os maiorais não se juntaram aos vizinhos rebeldes, mantendo-se leais ao Imperador. A comezaina varou a noite e ocorreu na única construção da vila que era digna de receber uma autoridade daquele quilate: o sobrado da praça Coronel João Olímpio, hoje propriedade da Prefeitura de Cunha. Será que serviram arroz com suã?

Referências:

DARÓZ, C. R. C. “As revoltas liberais de 1842: o Império consolidado”. Revista Militar, n. 2549/2550, jun./jul., 2014. Disponível em: < https://www.revistamilitar.pt/artigo/931 >, acesso em 9 mai. 2020.

IMPÉRIO DO BRASIL. Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1.842. Tomo V. Parte II. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1.843. Disponível em: < https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/18442 > , acesso em jun. de 2020.

NOGUEIRA, O. Negro Político, Político Negro: A Vida do Doutor Alfredo Casemiro da Rocha, Parlamentar da “República Velha”. São Paulo: Edusp, 1992.

SOUSA, B. X. P. de. Historia da Revolução de Minas Geraes em 1842 : exposta em hum quadro chronologico, organisado de peças officiaes das autoridades legitimas, dos actos revolucionarios de liga facciosa, de artigos publicados nas folhas periodicas, tanto da legalidade como do partido insurgente, e de outros documentos importantes, e curiosos sobre a mesma revolução. Rio de Janeiro: Typographia de J. J. Barroso e Comp., 1.843.

Imagem: Mapa digitalizado da Província do Rio de Janeiro em 1.850. Título: “Carta topographica e administrativa da provincia do Rio de Janeiro e do Municipio Neutro [Cartográfico] : Erigida sobre os documentos mais modernos pelo Vc de. J. de Villiers de L’lle Adam”. Autor: Visconde de J. de Villiers de L’Ile-Adam. Imprenta: Rio de Janeiro, RJ : Garnier Irmãos, 1850. Disponível em: < http://objdigital.bn.br/…/cart67925/cart67925_9.html > , acesso em jun. 2020.

Pedra do Espelho – Ubatuba – SP

Pedra do Espelho. Foto: Carvalho Pinto / Facebook.

Apesar de deslumbrante, a Pedra do Espelho não é o ponto culminante de Ubatuba. E não fica na divisa com Cunha. A Pedra está totalmente dentro do território de Ubatuba, embora quase em cima do limite com Paraty (RJ). A Pedra, devido à sua altitude, pode ser vista de alguns bairros rurais do sul do município de Cunha. E foram os cunhenses que a batizaram. Devido às chuvas orográficas constantes nas escarpas da Serra do Mar, uma tênue camada de água está sempre deslizando pelo paredão granítico. Nessas condições, quando há incidência dos raios soladores contra o paredão, tem-se um brilho intenso.

Pedra do Espelho vista do bairro da Lagoa, sul do município de Cunha. Foto: Gustavo Monteiro/Facebook.

As escarpas da Serra do Mar, geomorfologia presente no território ubatubense, favorecem a formação de paredões de granitos ou gnaisse. De acordo com o mapeamento do Instituto Geográfico e Cartográfico do Estado de S. Paulo (IGC), o paredão rochoso é de 245 metros. A Pedra está situada nas cabeceiras do Rio Verde, afluente do Rio Puruba. É duplamente protegida, pois fica dentro do Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB) e dentro do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM), já que ambas as unidades de conservação se sobrepõem uma à outra (coisas do Brasil…). E a Pedra está dentro dessa sobreposição. Melhor para ela e para os bichos da vizinhança.

Carta topográfica do IGC (escala 1: 10.000) sobreposta a imagem de satélite, mostrando a altitude da Pedra. Fonte: IGC e Emplasa.

A altitude da Pedra do Espelho varia conforme o meio ou documento de referência. Isso é muito comum. É sabido que a aferição de altitude de antigamente não era lá muito precisa. Desse modo, a Pedra tem: 1.500 metros (IBGE); 1.521 metros (IGC); 1.490 metros (Google Maps); 1.504 metros (GPS de baixa precisão).

A beleza cênica da Pedra. Foto: Divanei Goes de Paula.

O ponto culminante de Ubatuba não é o Pico do Corcovado, famosinho e não menos bonito, pois esse tem 1.181 ou 1.168 metros de altitude, dependendo da fonte de referência. De acordo com as cartas topográficas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do IGC, com escalas 1:50.000 e 1:10.000, respectivamente, o ponto de maior altitude de Ubatuba é o Pico do Alto Grande, na divisa com Paraty, e bem próximo à tríplice fronteira (Cunha-Paraty-Ubatuba), que se dá no Alto da Fruta Branca. A aferição da altitude também varia de documento para documento. O Pico do Alto Grande obtém as seguintes altitudes: 1.670 metros (IBGE); 1.678 metros (IGC); 1.640 metros (Google Maps); 1.662 metros (GPS de baixa precisão).

Parte da carta do IGC, escala 1:10.000, mostrando a localização e a altitude do Pico do Alto Grande, na divisa entre Ubatuba (SP) e Paraty (RJ). Fonte: DataGEO.

O Pico do Alto Grande está localizado na fazenda da Sesmaria Nova, outrora posse de gente cunhense, embora já dentro do território ubatubense. O desmatamento e a ocupação por capões de pastagem não deixam dúvidas quanto a isso. Ainda que o Pico esteja dentro de duas unidades de conservação de proteção integral também (PESM e PNSB). É cabeceira do Rio da Cachoeira, formador do Rio Puruba, nos contrafortes da Serra do Cabloco Iaçá.

Pedra do Espelho em outro ângulo. Foto: Página “Pedro do Espelho” / Facebook.

A riqueza florística da Pedra do Espelho, vegetação campestre devido à altitude, encanta. Mas é o mirante para o mar que atrai, uma janela para o que restou da Mata Atlântica, já na última pontinha da terra paulista. O platô, que precede o precipício, favorece a instalação de barracas. O visual das escarpas, do mar, da planície, de Ubatuba e Paraty é de tirar o fôlego. Vale a caminhada. Expedições para o lugar não são raras. O acesso por Cunha é o mais recomendado, por Paraty é possível e por Ubatuba é impensável. Os guias do PESM (Núcleo de Cunha) e mateiros conhecem o caminho da Pedra. Não se recomenda a trilha a iniciantes, desavisados ou outros que desconhecem as redondezas. Ademais, a Pedra está dentro de duas unidades de conservação de proteção integral. É lícito pedir autorização. Mais que isso: prudente.

Visual das escarpas da Serra do Mar e do Atlântico, captado da Pedra do Espelho. Foto: Página “Pedro do Espelho” / Facebook.

Mais informações:

1) Coordenadas Geográficas (Google Maps):

Pedra do Espelho: 23°14’37.6″S; 44°52’46.0″W

Pico do Alto Grande: 23°13’11.3″S; 44°53’11.9″W

2) Vídeos da Pedra:

a) https://youtu.be/Rrk2mFVWVWU

b) https://youtu.be/2K3Rgi8u8LU

3) Excelente reportagem sobre o lugar, por Divanei Goes de Paula:

https://aventurebox.com/divanei/travessia-alto-grande-x-espelho-cume-da-serra-do-mar-sp/report

Referências:

Artigo “Pedra do Espelho”, na Wikimapia. Link: http://wikimapia.org/39673667/pt/Pedra-do-Espelho

Cartas topográficas do IBGE e IGC, acessadas pelo SIG on-line DATAGEO (Secretaria do Meio Ambiente). Link: https://datageo.ambiente.sp.gov.br/app/#

Divanei Goes de Paula. Travessia Alto Grande X Espelho – Cume da Serra do Mar – SP (setembro, 2019). Link: https://aventurebox.com/divanei/travessia-alto-grande-x-espelho-cume-da-serra-do-mar-sp/report

Google Maps. Link: https://www.google.com.br/maps/@-23.2200339,-44.8874361,15z/data=!5m1!1e4

Pedra do Espelho (página do Facebook). Link: https://www.facebook.com/trekkinghard/

Secretaria do Meio Ambiente – Parque Estadual da Serra do Mar. “Trilha Pico do Corcovado”. Link: https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/pesm/atividade/trilha-pico-do-corcovado-2/

Primeira incursão colonizadora no município de Cunha

Martim Corrêa de Sá, o inglês Anthony Knivet (autor do relato), setecentos portugueses e cerca de 2 mil índios guaianases. Essas pessoas fizeram parte da primeira incursão colonizadora no lugar onde hoje é o município de Cunha. Isso ocorreu em outubro de 1596. Essa expedição partiu do Rio de Janeiro, desembarcou em Paraty, galgou a Serra do Mar, via Peabiru (antigo Caminho do Facão), até alcançar o planalto. O motivo alegado era fazer guerra aos tamoios, históricos inimigos dos portugueses. Mas os tamoios eram mais do litoral e não povos do Sertão. E a expedição teve como norte serra acima. Portanto, a motivação real era campear metais preciosos, como fica claro na continuidade do relato de Knivet. Deve-se sempre tratar com cuidado os dados fornecidos por esse inglês, profundo desconhecedor do Novo Mundo, estrangeiro e hostil aos portugueses (como muita razão, diga-se). Knivet era sem dúvida um bom contador de histórias, virtude que levou a salvar sua pele mais de uma vez. Mas já diz o ditado: “quem conta um conto aumenta um ponto”.

A segunda entrada de Knivet pelo sertão, composta por setecentos homens brancos e dois mil índios, destinava-se provavelmente não à defesa dos guaianases, mas à busca de metais preciosos, portanto, era uma ENTRADA e não uma BANDEIRA. A expedição – ocorrida na mesma época de três entradas simultâneas, saindo da Bahia, de São Paulo e do Espírito Santo, em direção às nascentes do São Francisco – fazia parte de um projeto exploratório coordenado pelo governador-geral D. Francisco de Sousa. Saindo de Paraty, enveredaram pela serra do Mar até atingirem o vale do Paraíba, por uma rota indígena que viria a ser conhecida como caminhos da serra do Facão, conforme conclusão de Capistrano de Abreu e outros historiadores. Teodoro Sampaio discordava.  Segundo a reconstituição da viagem feita por Teodoro Sampaio, a Entrada teria partido de Paraty e não teria subido a serra do Mar logo atrás da aldeia, mas seguido por três dias até atingir o pico do Cairuçú, que teria atravessado, e a partir daí continuou por dentro da mata, pela costa, até a região de Ubatuba, empreendendo então uma subida por um antigo caminho dos índios, em direção ao interior. Diz Teodoro Sampaio serem “os campos e pinhais da vizinhança da atual vila da Natividade, no vale do Paraibuna, provavelmente nas cabeceiras do rio do Pinheiros, afluente daquele pela margem esquerda.” A montanha “Panace Yuawe Apacone”, segundo Teodoro Sampaio, seria a serra de Itapeva ou do Jambeiro, “no prolongamento da Quebra-Cangalhas, a nordeste”. Eis o relato:

“Um mês ou dois depois disso, os guaianases foram desafiados por uma tribo de canibais chamada tamoios. Os guaianases têm laços de comércio e amizade com os portugueses, enquanto os tamoios são seus inimigos mais mortais em toda a América. Os guaianases haviam perdido muitos homens numa batalha e, não mais conseguindo por conta própria fazer frente aos tamoios, pediram novamente auxílio aos portugueses. Como meu senhor era o governador da cidade, enviou seu filho Martim de Sá com setecentos portugueses e dois mil índios. Os guaianases nos garantiram que levaríamos no máximo um mês para alcançar os tamoios.”

Assim, no dia quatorze de outubro de 1597, partimos com seis canoas pelo mar até um porto que fica a umas trinta milhas do Rio de Janeiro, chamado Paraty. No dia em que partimos veio-nos uma tal tempestade que achamos que iríamos todos nos afogar. Mas foi graças à vontade de Deus que nos salvamos, pois, embora as canoas tivessem virado e nós perdido tudo o que tínhamos, agarramo-nos com força ao fundo delas até chegarmos na praia, com enorme risco de vida. A distância do local em que chegamos até o rio Guaratiba era de três milhas, que percorremos por terra, enquanto mandamos as canoas de volta ao Rio de Janeiro para buscar provisões. Ficamos dois dias em Guaratiba até que as canoas voltassem e no terceiro fomos para Ilha Grande, num lugar chamado Ipuá, onde moravam dois ou três portugueses. Lá conseguimos uma boa quantidade de batatas e bananas para comer e ficamos cinco dias esperando quinhentos canibais que viriam de uma ilha chamada Jaquarapipo. Quando esses índios chegaram, partimos em nossas canoas para nosso destino, que era o porto chamado Paraty. Durante a noite, enquanto atravessávamos uma grande baía, uma baleia virou uma de nossas canoas, mas recolhemos os homens que caíram no mar e continuamos em nossa rota. No dia seguinte o capitão ordenou que retirássemos todas as canoas da água e as cobríssemos com galhos, para imediatamente continuar a viagem por terra.

Naquela noite chegamos em Paraty e veio-nos um canibal chamado Aleixo de uma aldeia chamada Juqueriquerê, que fica no continente bem em frente à ilha de São Sebastião. Esse índio trouxe oitenta arqueiros e se ofereceu, juntamente com seu grupo, para viajar conosco. No dia seguinte seguimos viagem através das montanhas e à noite, quando o capitão viu Aleixo dormindo no chão, tirou a rede em que eu dormia e deu-a ao canibal, forçando-me a dormir no solo. Reclamei com alguns portugueses da maneira desleal com que o capitão tinha me tratado mas eles responderam que o pai dele tinha me mandado naquela viagem só para que eu perecesse. Respondi: “Seja feita a vontade de Deus.” Passados três dias de viagem, chegamos ao pé de uma enorme montanha chamada pelos índios de Paranapiacaba que, na nossa língua, quer dizer “vista do mar”. Esta montanha é tão alta que levamos três dias para subi-la e três para descê-la. Dois dias depois dessa travessia chegamos a uma bela campina, parecida com um prado coberto de grama alta e muitos pinheiros. Aí passamos a noite num vale onde matamos seiscentas cobras e foi somente graças a Deus que apenas um índio chamado Jerônimo, e mais ninguém, foi picado por elas. Esse índio logo começou a inchar, e sangrou pelos olhos e pelas unhas até morrer.

Depois disso voltamos a viajar através das montanhas por uns quarenta dias até que chegamos a um rio muito largo chamado Paraibuna. Atravessamos esse rio com umas coisas feitas de caniços amarrados com cipós que os portugueses chamam de jangadas. Levamos quatro dias para poder atravessar esse rio, já que era tão largo e tinha uma correnteza tão forte. Depois disso viajamos mais uns vinte dias até chegarmos a uma montanha enorme chamada Panace Yuawe Apacone, que demoramos quatro dias para subir, já que chovia muito e estávamos todos muito enfraquecidos, pois a comida tinha acabado. Mas, como esperávamos em breve encontrar nossos inimigos, nos empenhamos em subir o máximo, das seis horas da manhã às duas da tarde, debaixo de chuva. Por fim, o capitão ordenou que cada homem se preparasse para pernoitar. Eu, então, deixei minha carga no chão e fui até a floresta para cortar alguns galhos de uma árvore chamada samambaia com a intenção de nos proteger da chuva. Fazia tanto frio e eu estava tão enfraquecido de ter caminhado o dia todo sem nada para comer que, ao tentar cortar um galho, a espada caiu da minha mão e fiquei inerte, sentado embaixo de uma árvore. Provavelmente teria morrido ali mesmo, não fosse meu caro amigo Henry Barrawell que, notando a minha demora, veio me procurar e me encontrou num estado tal que não conseguia nem falar nem ficar de pé. Ele então me levou de volta ao acampamento e me deitou junto ao fogo, o que fez com que eu me recuperasse e me sentisse bem melhor.”

Apesar dessa incursão inicial, as primeiras sesmarias no município só seriam doadas em meados do século XVII, no bairro da Borda do Campo e do Jacuí.

Referência:

KNIVET, Anthony. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios e canibais e colonos selvagens. Tradução: Vivien K. Lessa de Sá. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008. p. 92-97.

Mata Atlântica está se regenerando no município de Cunha

Rio Paraibuna cortando o Parque Estadual da Serra Mar – Núcleo de Cunha. Foto: Instituto Florestal.

Segundo os levantamentos feitos pelo Instituto Florestal do estado de São Paulo, as áreas nativas de Mata Atlântica no município de Cunha vêm aumentando nas últimas décadas. Em 2005, Cunha contava com 35.048 hectares de vegetação nativa, ou seja, 26,3% do seu território (IF, 2005). Atualmente (IF, 2020), Cunha conta com 48.598 hectares de cobertura vegetal nativa, o que corresponde a 34,5% do seu território. Um aumento de quase 10% nos últimos 15 anos, com 13,5 mil hectares regenerados, o que corresponde a cerca de 19 mil campos de futebol. Um aumento significativo, já que não houve nesse período nenhum programa municipal, estadual ou federal que incentivasse o reflorestamento com mata nativa. Muito mais poderia ter sido feito e recuperado, se houvesse. Já passou da hora do município ter uma unidade de conservação própria. Quem sabe na nascente do rio Jacuí ou mesmo na do rio Paraibuna…

Evolução do uso e ocupação do solo no município de Cunha ao longo de 20 anos.

Nas imagens observadas, o fato mais visível é o avanço das plantações de eucalipto (silvicultura), sobretudo no bairro da Várzea do Tanque. Mas isso é uma análise superficial. Análises espaciais a partir de sensoriamento remoto, utilizando softwares e métodos científicos, indicam que a cobertura vegetal do bioma original está em franca recuperação.

Situação do uso e ocupação do solo no município de Cunha nos últimos anos.

O município de Cunha possui mais um terço de seu território coberto por matas nativas é um valor bastante significativo no contexto estadual, sobretudo pelo fato do município já ter mais de 300 anos de colonização. Ainda mais porque desde a década de 1940 desenvolveu uma pecuária (leiteira e de corte) extensiva, rudimentar, muito danosa aos solos e à biodiversidade, com o plantio em larga escala de uma praga biológica chamada braquiária.

O motivo do aumento está relacionado muito mais às mudanças econômicas vivenciadas por Cunha nas últimas quatro décadas do que uma suposta tomada de “consciência ambiental” por parte de seus habitantes. Pode-se apontar alguns fatores que contribuíram para o aumento das áreas de mata nativas:

  • A criação de duas unidades de conservação abrangendo parte do território do município na década de 1970;
  • O aumento da fiscalização por parte da Polícia Militar Ambiental e dos demais órgãos controladores e fiscalizadores;
  • Êxodo rural e diminuição progressiva da população rural cunhense ao longo do século XX e início do século XXI;
  • Avanço no desenvolvimento turístico do município e valorização da paisagem como objeto de consumo, fomentando o turismo rural e ecoturismo, atividades em que as coberturas florestais apreciadas e objetos de atração;
  • Aumento dos sítios de veraneios, condomínios rurais e pousadas, cujo proprietários são pessoas de “fora”, que não dependem da agropecuária (setor primário) para custeio e sobrevivência, portanto podem deixar as pastagens se regenerar em matagais. Há uma refuncionalização, convertendo áreas agrícolas em áreas de lazer e turismo (setor terciário).

Entre outras coisas, vale ressaltar que: “Entre as décadas de 1960 e 1980, a atividade agropecuária no Vale do Paraíba diminuiu 13%, o que contribuiu para a estagnação dos índices de desmatamento na região. Desde então, a Mata Atlântica iniciou um processo espontâneo de regeneração. Muitas terras abandonadas se converteram em pequenos bosques de vegetação secundária, resultando em um aumento da cobertura florestal” (ANDRADE, 2017, p. 38). Entretanto, segundo estudos de SILVA (2016), não é uma regeneração zonal, mas por capões de matas, em áreas onde a pastagem e a lavoura foram abandonadas pelos proprietários. Esse tipo de regeneração aponta para a necessidade de se criar um corredor ecológico para que possa conectar essas manchas de matas secundárias, para que a recuperação possa ser mais efetiva, sobretudo para a fauna originária, sempre ameaçada por caçadores, pela destruição do seu habitat e pela falta de alimentos.

Vale lembrar que Cunha possui 2 unidades de conservação com áreas dentro do seu território: o Parque Estadual da Serra do Mar (Núcleos: Cunha e Santa Virgínia) e o Parque Nacional da Serra da Bocaina. Essas duas unidades de conservação são responsáveis por garantir a preservação de 8% do território municipal. Cunha é também onde nasce o rio Paraibuna e onde se forma o rio Paraitinga, formadores do rio Paraíba do Sul, maior curso d’água localizado entre as duas maiores regiões metropolitanas do país: São Paulo e Rio de Janeiro.

Referências:

ANDRADE, R. de O. Floresta revigorada. Pesquisa FAPESP, São Paulo, n. 259, p. 36-39, set. 2017.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria do Meio Ambiente. Instituto Florestal (IF). Inventário florestal da vegetação natural do Estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente. Instituto Florestal (IF). Resultados do Mapeamento Temático da Cobertura Vegetal Nativa do Estado de São Paulo: Inventário Florestal do Estado de São Paulo – 2020. Disponível em: < https://smastr16.blob.core.windows.net/home/2020/07/tabela-municipio-inventario-florestal-if-2020.pdf >. Acesso em 5 jun. 2021.

SILVA, R. F. B. et al. Land changes fostering Atlantic Forest transition in Brazil: Evidence from the Paraíba Valley. The Professional Geographer. 2016.

Animação com as imagens de satélite do município de Cunha: https://www.facebook.com/Jacuhy/videos/276074534204469

Fonte das imagens de satélite: Google Earth.

Um rancho tropeiro no Vale Paraíba do século XIX

“Pouzo em Agoa Preta huã legoa adiante de Pindamoinhangaba”. Data: década de 1840. Pintor: Miguelzinho Dutra. Fonte: Brasiliana Iconográfica.

Desde o século XVIII, o tropeirismo foi uma atividade econômica e um ofício. Eram eles que interconectavam as distantes vilas e freguesias do sertão com os portos de abastecimento e escoamento da produção no litoral. Era um serviço essencial. Antes deles, usavam-se escravizados, eram os lombos negros e indígenas que levavam mercadorias de um lugar para outro. Mas a limitação do peso da carga e o cansaço frequente dos transportadores, submetidos a uma atividade desumana, se constituíam em um embaraço logístico. Assim, as tropas de muares surgem como solução inevitável para essas questões, tornando a expansão espacial da colonização portuguesa, cada vez mais longe dos seguros portos, possível e sustentável. É a resposta do colonizador às dificuldades que o meio físico impunha à empresa metropolitana, que vai se dando lentamente, “com a consistência do couro, não a do ferro ou do bronze, dobrando-se, ajustando-se, amoldando-se a todas as asperezas do meio.”, nos dizeres do brilhante Sérgio Buarque de Holanda. A tropa é parte dessa resposta.

A origem das tropas de muares se relaciona com a necessidade premente de abastecimento, à medida em que o povoamento se interiorizava no Brasil colônia. Assim, pode-se traçar um paralelismo com o tropeirismo e as atividades ligadas a mineração. Mas não só isso. Tanto é que vão permanecer atuantes e como profissão de prestígio, mesmo após o declínio da atividade mineradora. Em um universo marcado pelas lonjuras, pelas estradas péssimas, a comunicação entre os sítios, fazendas, povoados, freguesias, vilas e cidades dependia desse meio de transporte fundamentado na tração animal, nas trocas comerciais e na relação entre produção, escoamento e reposição. Por isso, até meados do século XX, com a expansão das rodovias, permanece como um ofício de extremo prestígio e rentável.  Vai se constituindo em tradição passada de pai para filho, garantindo assim a formação de gerações familiares inteiras que tiveram a sua existência ligadas ao tropeirismo.

O tropeiro é uma sucessão social, uma evolução do bandeirante de outrora, conforme aponta HOLANDA (1994, p. 132-133): “Com as feiras de animais de Sorocaba, assinala-se, distintamente, uma significativa etapa na evolução da economia e também da sociedade paulista. Os grossos cabedais que nela se apuram, tendem a suscitar uma nova mentalidade na população. O tropeiro é o sucessor direto do sertanista e o precursor, em muitos, do grande fazendeiro. A transição faz-se assim sem violência. O espírito de aventura, que admite e quase exige a agressividade ou mesmo a fraude, encaminha-se, aos poucos, para uma ação mais disciplinadora. À fascinação dos riscos da ousadia turbulenta substitui-se o amor às iniciativas corajosas, mas que nem sempre dão imediato proveito. O amor da pecúnia sucede ao gosto da rapina […]”.

Era mais que só atividade econômica ou profissão, tal como conhecemos hoje, mas um modo de vida. E havia um jeito de ser. Eram “homens de palavra”. Se eles falassem, empenhavam-se ao máximo para cumprir. O valor moral de um homem se media pelo cumprimento das suas promessas. E foi assim que fizeram sua fama entre as mais distintas classes sociais e venceram o esquecimento imposto pelo tempo. Era gente rústica, mas nunca rude. Impressionaram o viajante e naturalista francês SAINT HILAIRE (1974, p. 27) com o fino trato que dispensavam aos demais: “As tropas passavam incessantemente pelo rancho. Em França, traria isto gritos, injúrias, disputas. Aqui, tudo se passa em paz. Todos trabalham sem o menor barulho. O mais sujo tocador de porcos fala com doçura e polidez. Trocam-se entre desconhecidos pequenos obséquios necessários, e todos vivem na melhor harmonia.  Nos encontros das estradas, ninguém jamais deixa de saudar um viandante.  Quando se vai tomar lugar num rancho, cumprimentam-se os primeiros ocupantes, e logo se trava a conversação.”

A necessidade de descanso das tropas de muares e de abrigo, levaram os tropeiros a fazer ranchos e estabelecer pousos ao longo dos trajetos. Habitações rústicas e coletivas, marcadas pelo contato, das trocas de ideias, saberes, costumes e informações. Ambiente de trocas e fermento de novos arranjos culturais. Diz SAINT HILAIRE (1974, p. 49): “quando chegam os tropeiros, arrumam as bagagens em ordem e de modo a ocupar menor lugar possível. Cada tropa acende fogo, à parte do rancho e faz cozinha própria. Antes e depois das refeições, conversam os tropeiros sobre a região que percorreram e falam de aventuras amorosas. Cantam, tocam violão ou dormem envoltos em cobertas estriadas ao chão sobre couros”. A permanência transitória dos hóspedes não permitia melhoramentos outros. Tudo ali é funcional e sob medida. De muitos pousos se fizeram freguesias, vilas e cidades. Um exemplo é a vizinha Lagoinha. Devido à centralidade que exerciam nos tempos colonial e imperial, posição advinda da força econômica e da capacidade que tinham de integrar e suprir. Os ranchos e pousos eram os conectivos que davam ligamento à imensa rede de estradas e caminhos, em franca expansão, do continente.

Os pousos, os ranchos faziam parte desse maravilhoso universo, que vem lentamente desaparecendo… Ficam as memórias, o exemplo da saga, o saudosismo dos descendentes e tradicionalistas. Mas tudo o que podem fazer agora é rememorar. Jamais terá como reproduzir o que foi o tropeirismo. O contexto, o cenário, a sociedade, a economia, as múltiplas relações que moldaram esse jeito de ser, esse ofício, ficaram para trás. É página virada. Mas a força da memória, a necessidade de encontrar identidade em um mundo cada vez mais perdido, a busca de significado e ressignificações (com fins turísticos) ficará e poderá até se ampliar.

Referências:

DUTRA, M. Pouzo em Agoa Preta huã legoa adiante de Pindamoinhangaba. [184-]. Aquarela sobre papel, 41,9 x 26,7 cm.

HOLANDA, S. B. de. Monções. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1945.

______. Caminhos e fronteiras. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

SAINT-HILAIRE, A. de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

Imagem disponível no acervo digital da Brasiliana Iconográfica: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/19486/pouzo-em-agoa-preta-hua-legoa-adiante-de-pindamoinhangaba

Jacuhy chega a 3 mil curtidas no Facebook

Jacuhy atingiu 3 mil curtidas no Facebook! Oba! É pouco? Eu acho que não. Por ser tão restrita a Cunha e ao seu território; nem sempre, é verdade; mas majoritariamente é municipal a escala de suas postagens.

Muito obrigado a todos(as). É muito bom saber que não gosto de Cunha sozinho. E sigam curtindo, comentando, compartilhando. Criticando, discordando, sugerindo… Não sou dono da razão. Não existe Ciências Humanas sem discussão, sem um debate honesto e sincero. E nem Ciência sem contraditório.

“Universalizar o entendimento sobre o lugar onde se vive e atuar sobre ele: eis a missão principal da Geografia”

Aziz Nacib Ab’Saber (1924 – 2012)

Embora a página esteja mais voltada às curiosidades históricas, não pode se furtar às certas questões com a profundidade que elas merecem. E necessitam.

Jacuhy está aí para isso. Hic et ubique.

Estudo aponta recuperação da Mata Atlântica no Vale do Paraíba

Fonte: Pesquisa FAPESP.

Por Pesquisa FAPESP

Após séculos de degradação, a Mata Atlântica mostra sinais inequívocos de recuperação no Vale do Paraíba, no caminho entre Rio de Janeiro e São Paulo. Nos últimos 50 anos, a vegetação nativa mais que dobrou. Em 1962, a área de Mata Atlântica se estendia por pouco mais de 200 mil hectares. Em 1995 esse número subiu para 350 mil hectares e, em 2011, para cerca de 450 mil hectares, o equivalente a 30% do território paulista do Vale do Paraíba. A reconstituição gradual e espontânea de parte da floresta parece ser resultado de uma convergência de fatores sociais, econômicos e ambientais, desencadeados a partir da década de 1950, conforme verificou o biólogo Ramon Felipe Bicudo da Silva, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas (Nepam-Unicamp), em uma pesquisa de doutorado sob orientação do biólogo Mateus Batistella, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e do antropólogo Emílio Moran, da Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos.

“A Mata Atlântica no Vale do Paraíba passa por um processo conhecido como transição florestal, quando há uma mudança nas características de uso da terra, saindo de um período de constante redução da vegetação nativa para outro de expansão natural das florestas originais”, explica Ramon. “Ali, a transição está relacionada ao abandono de áreas de topografia incompatível com a agricultura mecanizada, a projetos de preservação ambiental envolvendo o cultivo de eucalipto e à migração das populações rurais para grandes centros urbanos.” As conclusões se baseiam em imagens do satélite Landsat 5, em dados sobre o desenvolvimento industrial da região e em entrevistas com produtores rurais, pesquisadores de universidades, representantes de organizações não governamentais (ONGs) e de órgãos de governo.

Desde a colonização portuguesa, a Mata Atlântica foi submetida a longos períodos de uso intensivo e desregulado da terra. Foi assim à época da extração do pau-brasil e do cultivo de cana-de-açúcar, entre os séculos XVI e XVIII, passando pelos ciclos do ouro e do café e, mais recentemente, pela pecuária e expansão urbana. Hoje, a área de mata, que já ocupou mais de 1 milhão de quilômetros quadrados (km2) espalhados por 17 estados brasileiros, reduz-se a singelas manchas florestais de cerca de 50 hectares cada, segundo o último Atlas de remanescentes florestais da Mata Atlântica, da Fundação SOS Mata Atlântica e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A porção de floresta no Vale do Paraíba foi uma das mais atingidas. A região se tornou em fins do século XIX o eixo entre os dois maiores centros metropolitanos do país. A partir da década de 1920, começou a passar por um intenso processo de industrialização, consolidado com a inauguração da rodovia Presidente Dutra nos anos 1950 e a criação do complexo tecnológico-industrial aeroespacial de São José dos Campos. Ao analisar dados históricos e levantamentos estatísticos feitos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os pesquisadores constataram que a urbanização da região, somada à perda de produtividade das pastagens, desencadeou um intenso fluxo de habitantes da zona rural rumo aos centros econômicos e industriais do Vale do Paraíba, como as cidades de Taubaté e São José dos Campos. “À medida que a industrialização e a urbanização se intensificaram, mudanças nas forças sociais e econômicas estimularam o abandono das terras agrícolas, sobretudo em áreas mais acidentadas”, explica Ramon. Alguns habitantes da região permaneceram em suas propriedades, mas deixaram de usá-las para a atividade agropecuária, passando a trabalhar nas cidades. “Esse tipo de fenômeno ajudou a criar as condições ideais para a regeneração natural da floresta”, comenta o biólogo Ricardo Ribeiro Rodrigues, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), especialista em recuperação florestal.

Entre as décadas de 1960 e 1980, a atividade agropecuária no Vale do Paraíba diminuiu 13%, o que contribuiu para a estagnação dos índices de desmatamento na região. Desde então, a Mata Atlântica iniciou um processo espontâneo de regeneração. Muitas terras abandonadas se converteram em pequenos bosques de vegetação secundária, resultando em um aumento da cobertura florestal.

Podcast: Ramon Felipe Bicudo da Silva

Para Emilio Moran, os resultados reforçam estudos que verificaram processos pontuais de regeneração natural da Mata Atlântica em outras regiões do Brasil. Um deles é um levantamento da SOS Mata Atlântica e do Inpe que registrou um total de 219 mil hectares de Mata Atlântica em recuperação em regiões antes ocupadas por pastagens em nove estados brasileiros, de 1985 a 2015. Esse fenômeno também foi observado em outros países. Em Indiana, nos Estados Unidos, parte da vegetação nativa no sul do estado foi convertida em cultivo de milho e soja em fins do século XIX, restando pouco mais de 5% da cobertura florestal original. “A produção depois migrou para áreas mais adequadas para o cultivo dessas culturas no norte do estado e, ao longo de quase um século, a vegetação se regenerou, dando origem ao que hoje são reservas estaduais”, explica Moran. Mais recentemente, em Medellín, na Colômbia, constatou-se que a vegetação nativa em áreas antes controladas pelo narcotráfico e usadas para a plantação de coca começaram a se regenerar após o fim dos conflitos armados naquela região do país.

PRODUÇÃO DE EUCALIPTO

Os pesquisadores também observaram que a regeneração florestal havia sido mais acentuada em áreas próximas a remanescentes florestais originais e em terrenos menos aptos à agricultura, próximos a escarpas e ribanceiras. “As áreas antes usadas como pastagem contribuíram com cerca de 75% para as novas áreas florestais nas últimas décadas no Vale do Paraíba”, afirma Mateus Batistella, da Embrapa. Também houve um aumento considerável de vegetação nativa em áreas hoje usadas para a plantação de eucalipto. A produção dessa árvore costuma ser associada à degradação do meio ambiente, seja pelo ressecamento do solo ou pela diminuição da diversidade biológica nas regiões onde é cultivada. Mas, no caso da porção paulista do Vale do Paraíba, explica o pesquisador, houve um impacto positivo na regeneração florestal: para poder plantar eucaliptos, os produtores precisam de certificações ambientais. Para obtê-las, foram obrigados a proteger fragmentos de vegetação nativa, que se ampliaram naturalmente com o tempo, e a restaurar áreas de mata ciliar, que também se tornaram florestas nesse período.

Cartografia da regeneração da Mata Atlântica. Pesquisa de Ramon Felipe Bicudo da Silva. Fonte: FAPESP.

O cultivo de eucalipto para a produção de celulose estabeleceu-se na região nos anos 1960, principalmente em áreas de pastagens abandonadas ou degradadas, como as encontradas nos municípios de Jambeiro, Natividade da Serra, Paraibuna, Redenção da Serra, Santa Branca e São Luís do Paraitinga. Juntas, essas seis cidades contribuíram para 53,8% da expansão do cultivo de eucalipto no Vale do Paraíba – de 13.115 hectares, em 1985, para 38.958 hectares, em 2011. Durante esse período, a cobertura florestal expandiu-se em 77%. Hoje, aproximadamente 89% da celulose produzida no Vale do Paraíba é vendida para mercados da China e Europa. A crescente demanda global por produtos sustentáveis vem forçando as empresas a seguir normas e práticas de gestão ambiental específicas para a obtenção de certificação ambiental. “Essas certificações são fundamentais para o mercado de commodities de celulose, contribuindo para que a plantação de eucalipto influenciasse positivamente a recuperação de matas nativas em seu entorno”, afirma Batistella.

FISCALIZAÇÃO AMBIENTAL

A partir de entrevistas com representantes de ONGs e mais de 90 produtores rurais do Vale do Paraíba, os pesquisadores identificaram outros elementos que contribuíram para a regeneração de parcelas de floresta na região. Uma delas é a Lei da Mata Atlântica, de 2006, que introduziu incentivos financeiros para projetos de restauração ambiental. Também a fiscalização feita nas últimas duas décadas pela Polícia Militar Ambiental (PMA) de São Paulo ajudou a coibir o desmatamento e as queimadas. De acordo com informações do banco de dados da própria PMA, pouco mais de 9.500 ocorrências de violações ambientais foram registradas na porção paulista do Vale do Paraíba entre 2003 e 2013, mais da metade envolvendo o corte ilegal de árvores. Ainda assim, a extensão das áreas afetadas pelo desmatamento teve uma redução considerável no mesmo período.

Muitas das ocorrências registradas foram denunciadas pela população. Segundo Ramon, ferramentas de governança como legislação, sanções e distribuição de materiais de orientação favoreceram o desenvolvimento de uma noção de cidadania ambiental e um maior engajamento em parte da população do Vale do Paraíba. “Os resultados sugerem o estabelecimento de uma relação positiva entre desenvolvimento econômico e conservação ambiental na região, e que o processo de transição florestal pode ser acelerado por uma sociedade ambientalmente consciente”, afirma Moran.

O fenômeno do Vale do Paraíba pode orientar projetos de restauração florestal em áreas onde existam processos históricos e econômicos semelhantes. Já em regiões onde a mecanização agrícola é intensa e os poucos remanescentes florestais que sobraram são muito degradados, pode ser necessário investir em outras estratégias de restauração. “Nessas condições, outras iniciativas são recomendadas, como o plantio de sementes ou de mudas de espécies nativas”, diz Ricardo Rodrigues, da Esalq-USP.

Uma situação inédita

“A maioria do povo mora na roça”, diziam os cunhenses a qualquer forasteiro, que constatar que a cidade de Cunha é muito pequena, acabava atacando nosso ego interiorano. Perdemos essa desculpa para a estatística. Pela primeira vez na História do município de Cunha, a população urbana ultrapassou a população rural. A urbanização crescente é uma tendência de todo o país e um processo pelo qual Cunha vinha passando nas últimas décadas. Em 2000, a porcentagem de população urbana era de 48,22% (11.134 habitantes) e a rural era de 51,78% (11.956 habitantes), ou seja, a população urbana cresceu em termos relativo e absoluto, enquanto a rural caiu em ambos. Repetiu-se em Cunha uma tendência da caracterizadora da urbanização brasileira. No estado de São Paulo, a população rural também caiu em termo absoluto (e no relativo também, idem), de pouco mais de 2,4 milhões em 2000 para cerca de 1,7 milhão em 2010. Isto aponta a pertinência do êxodo rural no território paulista, unidade federativa que viveu mais intensamente o processo de industrialização e urbanização nacional.

Fonte: IBGE – Censo 2010.

A taxa de urbanização cunhense cresceu 7,42% em 10 anos, o que corresponde um crescimento médio anual de cerca de 0,75%, sendo assim, é provável que a população urbana tenha superado a rural em 2003, no início da década de 2000. A taxa de urbanização de Cunha (55,6%) é ainda muito baixa em relação ao estado de São Paulo e ao Brasil. Em São Paulo chega aos impressionantes 96%; bem acima dos países desenvolvidos, no Reino Unido, por exemplo, que está em 84%, a mesma do Brasil. Assim, Cunha é um atípico município do Sudeste brasileiro, um território bastante ruralizado na área mais desenvolvida, industrializada e urbanizada do país. Aqui, o universo rural ainda exerce forte impacto e influência sobre a economia e na sociedade.

Outro fator importante é tratar do que foi considerado urbano para o IBGE. Neste caso, o instituto considera a organização do quadro territorial municipal e os seus perímetros. Todos esses perímetros devem ser definidos por lei municipal e sendo contidos dentro dos limites municipais. O Município de Cunha está assim organizado:

  • Cidade: a sede do município, no caso a cidade de Cunha;
  • Vilas: sedes de distritos, no caso a vila de Campos de Cunha;
  • Áreas Urbanas Isoladas (AUI’s): localidade com característica urbana separada da cidade ou das vilas, no caso temos duas – AUI do B. do Paraitinga e AUI do B. da Bocaina de São Roque.

O bairro rural da Bocaina, que tem igreja, rua, unidade básica de saúde, escola estadual até o 9º ano e outros elementos de centralidade/urbanidade, foi pela primeira vez recenseado como urbano, como uma área urbana isolada. São consideradas urbanas por lei municipal, todas feitas sem nenhum critério científico. Embora tratar essas AUI’s como área urbana seja questionável geograficamente, isso não teve impacto grande sobre a taxa de urbanização, porque só na cidade de Cunha reside mais 50% de toda a população municipal.

Observação: Texto escrito em 14 de janeiro de 2013, uma brevíssima análise dos resultados do Censo do IBGE de 2010.

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