O terremoto de Cunha – 22 de março de 1967

O outono tinha acabado de começar. Um dos verões mais chuvosos da história foi aquele da temporada de 1966/1967, no Sudeste Brasileiro. A cidade de Caraguatatuba foi uma das atingidas por tanta precipitação, com deslizamentos que provocaram a morte de 450 pessoas, devastando a cidade do litoral norte paulista. Cunha, muito embora não tenha sofrido, também viveu uma temporada chuvosa. O Paraíba do Sul extravasava, inundando as cidades do seu Vale.

Tudo começou com um estrondo. Trovão? Impossível, o tempo estava bom naquele 22 de março de 1967. Em seguida, o tremor. Panelas areadas e penduradas tilintando. Quadros caindo. Paredes trincando. A água na bacia de banho começou a se mexer. Não durou mais que 3 segundos, mas o susto foi grande. Como disseram: “parecia uma vertigem, uma tontura”. Não, não era vertigem. Era a crosta terrestre se acomodando. Passava das 21h30 da noite de uma quarta-feira e as famílias de Cunha já se preparavam para ir deitar-se. Muitos foram dormir com medo e sem entender nada.

Exceto na cidade. Relata o jornalista da Folha de São Paulo: “Em Cunha repetiu-se a história [de outras cidades do Vale]: o estouro, que ninguém sabe explicar, o tremor e depois a cidade em pânico”. A Polícia Militar teve que intervir para garantir “a ordem” e botar o povo, com medo, para dentro de casa.

Intensidade

Manchete do jornal Folha de São Paulo noticiando o ocorrido, 23 mar. 1967. Fonte: Acervo Folha.

No dia seguinte, pela manhã, o rádio anunciou: “a terra tremeu no Vale do Paraíba”. O epicentro foi em Cunha. Os sismógrafos da USP mediram o sismo e foi aferida uma magnitude de 4,1 na escala Richter. Em aspectos gerais, um tremor ligeiro, de baixa intensidade; mas para os padrões brasileiros, cuja estrutura se assenta no interior da placa tectônica Sulamericana, é muito. Na Escala de Mercalli-Sieberg, o sismo de Cunha foi classificado na intensidade VII, ou seja, “Muito forte”, com os seguintes efeitos perceptíveis: “Caem muitas chaminés. Há estragos limitados em edifícios de boa construção, mas importantes e generalizados nas construções mais frágeis. Facilmente perceptível pelos condutores de veículos automóveis em trânsito. Desencadeia pânico geral nas populações”.

O sismógrafo do Observatório Nacional, localizado na cidade do Rio de Janeiro, registrou o tremor às 21h13, com uma duração de 80 segundos. A população carioca também sentiu o abalo.

O abalo foi sentido em outras cidades: Caraguatatuba, Ubatuba, Aparecida, Guaratinguetá, Lorena, Lagoinha, Paraibuna, São Luiz do Paraitinga, Paraty, São Sebastião, Ilhabela, Angra dos Reis, Barra Mansa e até na cidade do Rio de Janeiro (de forma menos intensa), como mencionado acima. A população das cidades atingidas pelo abalo ficou apavorada e saiu pelas ruas, principalmente em São Luiz do Paraitinga, Ubatuba e Caraguatatuba, a ponto da polícia precisar intervir para acalmar os ânimos. Coube ao professor de Geologia da USP Viktor Leinz explicar o fenômeno e afastar o temor e o possível nexo entre a chuvarada e o tremor. Explicou que esses fenômenos são raros no Brasil e, quando ocorrem, são de baixa intensidade, causando estragos pequenos. E que são frutos da ação de agentes internos, de forças que agem no interior da Terra, sem relação com a atmosfera e a precipitação elevada do verão de 1967. Em seu livro “Geologia Geral”, ele explica que o estrondo ouvido antes do terremoto se deve a uma refração da onda sísmica, que acontece em terra, no ar, propagando assim uma onda na atmosfera em um comprimento perceptível à audição humana.

Causa

Perfil Geológico da Rodovia Paulo Virgínio – SP -171, mostrando as zonas de cisalhamento entre Guaratinguetá e Cunha. Fonte: Dissertação “O complexo embu no leste do estado de São Paulo: contribuição ao conhecimento da litoestratigrafia e da evolução estrutural e metamórfica”, de Amélia João Fernandes, USP, 1991.

O geólogo e professor do Departamento de Geologia, Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE), da Unesp em Rio Claro, José Alexandre Perinotto, explica que os terremotos, também conhecidos como abalos sísmicos, podem ser ocasionados por atividade vulcânica, falhas geológicas ou pelo encontro de placas tectônicas. No caso do tremor de terra que teve seu epicentro em Cunha, a causa foi falha geológica (fratura na crosta terrestre). Onde há falha, é possível ocorrer novas quebras, dependendo de fatores como o peso, distensão e compressão exercido sobre ela.

O município de Cunha, segundo a geofísica Amélia João Fernandes, é atravessado por três zonas de cisalhamento de falhas geológicas: “Alto da Fartura”, “Santa Rita” e a megafalha “Cubatão”. Perinotto explica que “zonas de cisalhamento são regiões da crosta terrestre nas quais existem um acúmulo de falhas geológicas. São zonas que podem sofrer esse movimento de cisalhar, ou seja, um bloco se deslocar em relação ao outro. Então, essas zonas de cisalhamento têm tudo a ver com os terremotos. Isso porque é ao longo do deslocamento dos planos de falhas que há o dispêndio da energia e, consequentemente, causa-se a vibração, que é o abalo sísmico. Nós chamamos de zona de rifts cenozóicos do sudeste brasileiro. Essa zona é bastante propícia para causar esse abalo e vai continuar causando outros em diferentes magnitudes e intensidades.”

Parte do Mapa Geológico esquemático da Rodovia Paulo Virgínio – SP -171, com destaque (acrescentado) para as zonas de cisalhamento entre Guaratinguetá e e para a cidade de Cunha. Fonte: Dissertação “O complexo embu no leste do estado de São Paulo: contribuição ao conhecimento da litoestratigrafia e da evolução estrutural e metamórfica”, de Amélia João Fernandes, USP, 1991.


Consequências
Além do pânico generalizado na cidade, o abalo sísmico causou muitos estragos, porém, nenhuma vítima fatal ou ferido.

Tanto na zona rural quanto na zona urbana rachaduras apareceram nas paredes das casas e quadros foram derrubados. A região mais atingida pelo terremoto foi o eixo Cunha-Guaratinguetá. No local denominado “Descanso do Machado”, uma árvore de 15 metros foi arrancada do solo. Uma fenda de cerca de 40 centímetros abriu-se no chão. Portão, cercas e varais foram arrancados.


Pela intensidade incomum, lembra Jesus Berrocal, geofísico do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP), o sismo de Cunha serviu de referência para a construção da usina nuclear Angra I, em Angra dos Reis (RJ). Em operação desde 1982, a usina é resistente a um tremor da magnitude daquele que teve seu epicentro Cunha, em 1967, e desliga-se automaticamente, caso o sismo ultrapasse a margem de segurança do projeto (4,1 na escala Richter).

Conclusão
“Não existem locais estáveis. Tudo está se movendo”, diz pesquisador Alloua Saadi, responsável pelo primeiro mapa neotectônico do Brasil, identificando as 48 falhas mestras (principais) que cortam o solo do país. Quem pensa que o Brasil está livre dos terremotos está enganado. Ainda mais o município de Cunha, que é cortado por 3 falhas geológicas. Entretanto, não há razão para alarme. Se acontecer de novo um abalo sísmico em Cunha, vamos levar mais susto do que prejuízo.

Referências:
Geologia Geral, Viktor Leinz e Sérgio E. do Amaral (2003)
O Complexo Embu no leste do estado de São Paulo, Dissertação de Mestrado (USP), Amélia J. O. Fernandes (1991)
O Estado de S. Paulo (1967)
Folha de São Paulo (1967)
Correio da Manhã (1967)
Serviço Geológico do Brasil – CPRM (2014)
Jornal da UNESP (2023)

Entrevista com o professor Victor Amato dos Santos

Montagem sobre foto de Chayeni Fiorelli.

O professor Victor Amato dos Santos é figura conhecida e querida no cenário cultural cunhense. Uns o conhecem por ser o maestro da União Musical Cunhense, a banda de Cunha, que sempre se faz presente nas nossas festas cívicas e religiosas. Outros recordam dele na Banda Furiosa, com as marchinhas que alegravam os foliões nas tardes de Carnaval. E tem aqueles que acompanham as suas postagens no grupo “Memória Cunhense”, no Facebook. Ele está sempre publicando um texto ou nota sobre algum cunhense inolvidável, sobre alguma tradição da nossa gente ou algum dobrado ou samba de sua autoria. O Victor é professor de Língua Portuguesa na Escola Estadual Paulo Virgínio. Trabalha diariamente com a escrita. E foi assim, escrevendo, que ele nos presenteou com dois livros: “A História do Carnaval de Cunha”, em 2012, e a “A História da Música em Cunha”, em 2014. São obras que vêm do seu interesse por história e são frutos do seu amor por Cunha. Por isso, estamos no aguardo da terceira. Será que sai? Para responder essa e outras perguntas, pedi que nos concedesse uma entrevista. Ele é incentivador antigo do Jacuhy, quando ainda estávamos no ninho. E ele, prontamente e gentilmente, nos atendeu.

Jacuhy: Primeiramente, Victor, eu agradeço a sua boa vontade em conceder esta entrevista, tirando um tempinho das suas merecidas férias.  É sempre uma honra contar com o seu apoio e parceria, pois você é uma referência para todos nós que amamos, lutamos e defendemos a História e as Tradições de Cunha. E é sobre isso que gostaria de começar a nossa conversa. Em 1971, o antropólogo estadunidense Robert W. Shirley lançou o livro “O fim de uma tradição” (depois, em 1977, traduzido para o português pelo professor João Veloso), fruto das pesquisas de campo realizadas por ele em Cunha, na década de 1960. A conclusão a que ele chegou foi de que o fim das tradições de Cunha era iminente, em virtude do êxodo rural, do avanço da industrialização e do fim do isolamento de Cunha, rompido pela popularização da mídia eletrônica, pelas ligações rodoviárias e pelos projetos estatais de integração. Você, como agente cultural e estudioso do assunto, olhando em 2023 para a conclusão do antropólogo Shirley, como a enxerga? Acertou? Equivocou-se? E ainda sobre o assunto, qual é a situação dos grupos tradicionais e folclóricos de Cunha atualmente?

Victor: Primeiramente, agradeço as suas considerações a meu respeito. Seu empenho no sentido de aprofundamento sobre as pesquisas já realizadas sobre Cunha é admirável!

Sobre a questão levantada, graças a Deus Shirley se equivocou em relação às previsões de desaparecimento da cultura cunhense, apresentadas em “O Fim de uma Tradição”.

Cunha, como poucos lugares, soube receber as novidades do mundo atual, mas sem deixar para trás as suas raízes mais profundas dos antigos costumes, muitos ainda dos tempos da formação da Povoação oficial e da Fundação da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão. Estão aí as festas de São José da Boa Vista, de São Benedito, do Divino e da Padroeira; o carnaval de rua; a tradicional Semana Santa; o boneco do Judas; as folias de Reis (da cidade e da zona rural) e do Divino Espírito Santo; as congadas (moçambiques); os violeiros; o jongo; a banda de música – que já tem quase dois séculos de existência –; os benzedores; os artesãos e ceramistas; dentre outras manifestações de cultura e de religiosidade popular de não menor importância que as citadas. Vivíssimas no presente, comprovam em plenitude o que afirmo aqui. Esses elementos são aquilo que verdadeiramente atrai o turista para o nosso Município, aliados à paisagem natural exuberante de que dispomos e da qual, responsavelmente, temos o prazer de desfrutar.

Aliás, como um dos que trabalham dentro desse círculo das tradições cunhenses, ainda não vi acontecer qualquer trabalho de resgate de manifestações culturais do nosso município, mas sim um grande empenho de todos os líderes e membros de cada respectivo agrupamento cultural em mantê-los em pleno vigor – só deve ser resgatado aquilo que foi perdido; e, graças a Deus novamente, não tivemos perdas nesse sentido por aqui!

A banda União Musical Cunhense no topo da Pedra Marcela, em 2013, na gravação da música “Aqui é o meu lugar”, tema da TV Vanguarda. Foto: Bethânia Fochi.

Jacuhy: Em novembro de 2021, você surpreendeu a todos anunciando o fim da participação da Banda Furiosa, que alegrava os foliões com suas marchinhas, no carnaval de Cunha. Sua decisão, segundo o que escreveu, foi motivada pelo cumprimento do papel educativo que Banda Furiosa buscava exercer nos 15 anos que participou do carnaval, formando, nas suas palavras, uma “geração que soubesse brincar o carnaval sem os excessos que o caracterizam (…) dar espaço para o encontro saudável entre gerações (crianças, pais, avós e bisavós), que só demonstraram Educação, alegria inocente, satisfação e afins para compartilhar.”. Acrescentou, ainda, que seus problemas de saúde dificultavam muito o seu serviço à frente da Banda. Esse foi um adeus definitivo ou temporário do carnaval? A Banda Furiosa vai continuar abrilhantando as festividades cívicas e religiosas do município? Quais são os desafios que a Banda Furiosa enfrenta para manter-se viva e atuante, como tem sido desde sua formação?

Victor: Há de se diferenciar, primeiro, a banda de música da cidade – que já é quase bicentenária – do conjunto Banda Furiosa, criado por mim em 2005 para realizar as matinês no carnaval cunhense.

Se o conjunto carnavalesco encerrou suas atividades por ter, como expliquei, atingido o propósito para o qual foi criado, a banda de música tradicional – hoje União Musical Cunhense — encontra-se em pleno funcionamento, e espero que assim continue por muitos e muitos anos.

Não posso deixar de mencionar que todos os que nos dedicamos aos trabalhos à frente de cada grupo da tradição e da cultura de Cunha nos vemos, frequentemente, diante e nas mãos de pessoas que têm tudo para nos dar o devido apoio; mas, em incontáveis vezes, elas se deixam levar pelo orgulho, pela vaidade, pela inveja e pela ganância, o que nos traz desmotivação pelos desgastes desnecessários pelos quais nos vemos obrigados a passar. Com a Banda Furiosa não foi diferente. Foi também por isso que decidi encerrar suas atividades no carnaval de Cunha.

Na União Musical Cunhense, que atualmente tem participado mais e de forma gratuita das festividades da Igreja Católica local, enquanto eu fizer parte da mesma e tiver condições para tanto, estarei a ensinar os princípios da Arte Musical para crianças e jovens, com a intenção de realizar a necessária reposição de elementos, para a preservação deste que é o grupo musical mais antigo de Cunha. Sou o nono maestro nesses quase duzentos anos de existência da nossa banda de música, e já formei inúmeros músicos, com a colaboração do meu amigo Tonico Capítulo, nesses meus já 35 anos de atuação como multi-instrumentista, professor de Música e maestro. Deus continue a me conceder a saúde e a orientação necessárias para continuar esses trabalhos.

Marchinha da Banda Furiosa, de autoria de Victor Amato dos Santos. Vídeo cedido pelo entrevistado.

Jacuhy: Depois de muitos anos trabalhando nas secretarias das escolas por onde passou, você retornou para sala de aula, atuando com professor de Língua Portuguesa. Essa volta quase que coincidiu com um momento importante para a rede estadual aqui em Cunha, que foi a adesão de todas as escolas ao programa de tempo integral. Como você vê esse programa? Quais são suas expectativas em relação a ele?

Victor: Sabe, nunca trabalhei especificamente em secretaria de escola nesse período em que tive de, contrariado, me afastar, por questões de saúde, das atividades em sala de aula: organizei ricos acervos de multimídia; pintei faixas divisórias de vagas em estacionamento interno de escola; tendo a devida formação para tanto, fiz diversos trabalhos de encanador e de eletricista; desentupi redes sanitárias; montei salas de leitura; ajudei em secretaria e em cozinha (manutenção de equipamentos e de instalações, com o devido conhecimento técnico); e, principalmente, atendi ao professor João Veloso em suas atividades histórico-culturais e às Redes Pública (Municipal e Estadual) e Particular de Educação em nosso Município. Isso sem deixar a nossa banda de música para trás, e também atendendo a muitos pedidos das Secretarias Municipais de Educação e de Turismo e Cultura.

Por isso é que tenho me sentido bastante cansado, física e mentalmente.

Quanto ao PEI (Programa de Ensino Integral), este continua a ser observado por mim. Não tenho ainda opinião formada sobre os resultados que ele poderá trazer à população cunhense. É preciso que eu trabalhe, como professor de Língua Portuguesa, mais este ano de 2023 nesse projeto do Estado de São Paulo, para que as devidas observações sejam feitas e, desse modo especificamente, eu possa continuar o meu aprimoramento como profissional da Educação.

Capas dos livros de história de Cunha lançados pelo professor Victor Amato dos Santos.

Jacuhy: Em 2017, você esteve coordenou o movimento que buscava retificar a data de aniversário de Cunha, estabelecendo o dia 19 de março de 1724 como data de fundação do município. Tanto o Legislativo quanto o Executivo Municipal acolheram a mudança proposta, visto que foi amplamente embasada em fontes históricas e corroborada pelo livro “A História de Cunha: 1600 – 2010” e pelo próprio autor, o professor João Veloso. Algumas pessoas na época não gostaram e protestaram pelas redes sociais, dizendo que era uma questão irrelevante. Por que você insistiu para que ocorresse essa retificação? O que Cunha ganhou com essa mudança?

Victor: Foi um esforço sobre-humano o que fiz para que fosse aprovada, pelo Legislativo e pelo Executivo Municipais, a necessária retificação da data histórica da Fundação de Cunha e as consequentes adaptações, com base na tese mais que coerente do Professor João Veloso, publicada em 2010 sob o título “A História de Cunha – 1600-2010 – A Rota de Exploração das Minas e Abastecimento das Tropas”.

A saúde frágil do nosso historiador João Veloso já dava sinais de que ele não estaria mais por muito tempo entre nós; daí ser necessária, para que ele fosse reconhecido oficialmente em vida pelo seu trabalho, uma ação urgente, que foi respaldada pelo então prefeito Rolien Garcia e pela maioria dos vereadores daquele período – como você sabe, houve quem votasse contra a retificação… –; além do auxílio de colaboradores da causa, como você mesmo, o Joás Ferreira de Oliveira, a maioria dos colegas de trabalho das escolas públicas e particulares do nosso Município e, principalmente, da maioria da população cunhense.

Isso agregou maior valor histórico, cultural, social e antropológico a Cunha, o que se reflete nitidamente nos aspectos que dão embasamento ao movimento em torno do turismo, ao qual Cunha tem se dedicado com afinco nessas últimas três décadas.

Enfim, tudo foi posto no devido lugar, para que, com o respaldo das pesquisas do Professor João Veloso, pudesse ser devidamente preservado.

Em família: Victor e os integrantes da Banda Furiosa, sempre alegrando as tardes do Carnaval de Cunha.

Jacuhy: Com a retificação e o estabelecimento do ano de 1724 como data de fundação, aproximou-se de todos nós a comemoração dos 300 anos de fundação de Cunha, afinal, 2024 é ano que vem. O que você espera, em termos de eventos, em relação a essa comemoração? Qual seria o maior presente para Cunha nesse tricentenário?

Victor: O movimento em torno das comemorações do Tricentenário de Fundação de Cunha já deveria estar acontecendo intensamente, com o envolvimento de todos os setores da sociedade local.

Para tanto, a Paróquia Nossa Senhora da Conceição, sob o comando do Padre Fábio Nogueira de Sá e com bastante auxílio de minha parte, já promoveu a restauração da imagem de Nossa Senhora da Conceição do Facão, e também   das imagens da Sagrada Família da Boa Vista; isso sem contar as restaurações de templos históricos como a Capela da Boa Vista (o “Berço” de Cunha), a matriz e a igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.

Ainda em forma de lei municipal, há uma “receita” para serem desenvolvidos todos os atos necessários a uma comemoração à altura da data tão importante a todos nós. Espero que a legislação municipal correspondente seja cumprida plenamente, para que tudo saia como tão importante momento exige.

A banda União Musical Cunhense presente na Procissão das Bandeiras, na Festa do Divino Espírito Santo de Cunha, em 2018. Foto: Chayeni Fiorelli.

Jacuhy: Em seu livro “A História da Música em Cunha”, escrito junto com o professor João Veloso, lançado em 2014, você demonstra que existe uma tradição musical muito antiga – e rica – em Cunha. No início do século XXI, você participou e ajudou a implementar um projeto de educação musical na Escola Estadual Paulo Virgínio, que foi um sucesso e rendeu frutos. Alguns integrantes da Banda, por exemplo, foram formados no projeto. Sabendo da importância da formação musical para crianças e jovens para dar continuidade a essa tradição cunhense, existe a viabilidade de um projeto similar aquele que foi implantado há 20 anos ser implantado em alguma escola de Cunha? Quais contribuições o ensino de música pode trazer para aprendizagem dos alunos?

Victor: Depois do período a que você se refere – ano 2001 –, já houve formação de outros vários integrantes, mas na garagem da minha casa – que por certo tempo, foi usada como sala de ensaios e de aulas de Música –; e, a partir de 2011, na atual sede da banda (atrás do cinema).

A formação de novos músicos é um processo contínuo, que tem de ocorrer pelo menos a cada quinquênio; ou então a banda entra em decadência por falta de componentes e se encaminha para a extinção. Nunca cobrei um centavo sequer de quem aprendeu Música comigo nessas últimas três décadas em que me dedico à manutenção plena da nossa banda de música. E já está chegando a hora de eu formar uma nova turma de músicos, com o auxílio, na parte prática, dos membros mais antigos da banda. Talvez essa parte teórica inicial seja ministrada ainda este ano por mim na disciplina Eletivas, do PEI, mas ainda não estou certo disso.

Dobrado João Veloso, de autoria de Victor Amato dos Santos, tocado pela banda União Musical Cunhense. Homenagem feita ao professor João Veloso em 2017.

Jacuhy: Foi uma grande perda para Cunha o falecimento do professor e historiador João José de Oliveira Veloso, ocorrido em 30 de novembro de 2020. Ele foi um mestre para todos nós. Você, como amigo e admirador do professor João Veloso, foi a pessoa que mais lutou para que ele tivesse o merecido reconhecimento em vida, fazendo tudo o que estava em seu alcance. Qual é o principal legado deixado pelo professor João Veloso? O que o Centro de Cultura e Tradição de Cunha, o Museu Municipal Francisco Veloso e o COMPHACC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural de Cunha), entidades criadas por ele, podem fazer para tentar preencher a lacuna que a ausência do professor provocou, dando continuidade ao trabalho do João Veloso?

Victor: Acima dos resultados que o Professor João Veloso conseguiu atingir através das pesquisas que realizou durante aproximadamente 5 décadas, creio que o maior legado deixado por ele é o amor incondicional por Cunha.

Sua ausência física deixou incontestavelmente uma lacuna muito difícil de ser preenchida, uma vez que esse preenchimento exige não só habilidades intelectuais, mas também uma paixão sadia por esse nosso “Mar de Morros”, tal qual a que ele sempre soube cultivar e preservar intacta dentro de si.

Vê-lo reconhecido em vida e tão emocionado com tal atitude, esse foi um dos maiores presentes que os meus olhos já puderam contemplar. Sou muito feliz e grato a Deus por isso.

Quanto aos trabalhos do Museu Francisco Veloso e do Centro de Tradição e Cultura de Cunha, tive de me afastar temporariamente dos mesmos, por conta das minhas atividades profissionais, que se intensificaram com a chegada do PEI à EE Paulo Virgínio, onde trabalho. Mas creio que tudo esteja correndo bem por lá. Estão em boas mãos, principalmente nas das funcionárias, sempre tão dedicadas e muito bem formadas pela convivência de décadas com o Professor João Veloso.

João Veloso, Victor e integrantes da banda União Musical Cunhense no lançamento do livro “A História da Música em Cunha”. Data: 2014. Foto: Geraldo Magela Tannus.

Jacuhy: Victor, você já publicou dois livros sobre a História de Cunha (“A História do Carnaval de Cunha”, 2012; “A História da Música em Cunha”, 2014) e contribuiu com um de poemas (“Poetas de Cunha”, 2007, organizado pelo saudoso professor Ernesto Veloso dos Santos). Tem sido um colaborador assíduo do grupo “Memória Cunhense”, no Facebook, sempre trazendo biografias de cunhenses inesquecíveis. Nós, seus leitores e admiradores, podemos esperar mais um trabalho seu? Se sim, pretende escrever um trabalho de cunho memorialista/biográfico ou publicar os seus poemas?

Victor: Tenho mais materiais que, com o tempo, eu gostaria de transformar em livros para publicá-los. Mas meu tempo tem sido muito restrito a outras obrigações que me prendem de certa forma. E ainda existe a questão do alto valor monetário exigido para se fazer essas edições. Ou seja: é preciso tempo e dinheiro suficientes, para que sejam produzidos trabalhos de qualidade. Nesse sentido, nunca fiz nada que fosse descartável em minha vida. Tudo o que produzi é permanente, visando ao bem-estar de gerações e gerações. Então, se tudo der certo nesse sentido de novas publicações, é desse modo que deverá acontecer.

Jacuhy: Muito obrigado por sua entrevista e colaboração com a nossa página e blog.

Data da entrevista: 28 de janeiro de 2023.

Censo 2022 aponta crescimento da população de Cunha

Contrariando as projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dos últimos anos, a população de Cunha voltou a crescer. Foram recenseados 22.125 habitantes em todo o município em 2022, durante a realização do Censo. Esse dado foi divulgado pelo IBGE no dia 28 de dezembro de 2022. Trata-se de uma prévia da população de todos os municípios com base nos dados coletados pelo Censo Demográfico 2022 até o dia 25 de dezembro do ano de 2022. A divulgação tem como objetivo cumprir a lei que determina que cabe ao IBGE fornecer ao Tribunal de Contas da União (TCU), anualmente, o cálculo da população de cada um dos 5.570 municípios do país. Seguindo um modelo estatístico, o IBGE entregou um resultado prévio do ano de 2022, tendo em vista que o Censo 2022 ainda não está concluído em muitos municípios. Entretanto, em Cunha já está 100% concluído, com os 74 setores censitários apurados. Portanto, o resultado apresentado já é definitivo.

Observando as projeções populacionais do IBGE de 2019, 2020 e 2021 para Cunha, nota-se que indicavam sucessivas quedas na população municipal. Como essas projeções se baseiam em tendências, é provável que consideraram a redução da população que ocorreu entre os censos de 2000 e 2010. Naquele Censo foram contados 23.062 habitantes; neste, 21.866 habitantes. Assim, ano após ano, o IBGE foi apontando um tênue recuo da população cunhense.

Todavia, em 2022 apurou-se o contrário: houve a interrupção dos sucessivos recuos, registrando um ínfimo crescimento (1,2%). Se isso será uma tendência para as próximas décadas, tendo em vista que a atividade turística vem se fortalecendo nos últimos anos, só o tempo dirá. A estabilidade ou crescimento de uma população depende, entre outros fatores, de uma resposta econômica. Não tem como a população de Cunha crescer sem a economia local oferecer, por exemplo, emprego aos jovens.

Após essa divulgação protocolar, espera-se agora a divulgação completa do Censo 2022, em que outros aspectos da realidade local possam ser conhecidos e analisados. Aguardamos os dados referentes às taxas de população rural e urbana, à pirâmide e composição etária, à renda média, à escolarização, à religião etc. Com esses dados, é possível comparar com os recenseamentos anteriores e indicar mudanças e permanências no tecido social local.

Vista aérea da cidade de Cunha. Imagem: Guará Vídeo Drone (YouTube). Data: junho de 2022.

A população da Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte (RMVPLN) chegou a 2,5 milhões de habitantes. Em relação ao Censo de 2010, a RMVPLN teve um acréscimo de 295.134 habitantes, o que corresponde a um aumento de 13% de sua população. A RMVPLN é composta por 39 municípios. Cunha foi o segundo município da região que menos cresceu, não acompanhando o patamar de crescimento regional. Ainda assim situação melhor do que nos 11 municípios da região (Cruzeiro, Campos do Jordão, Aparecida, Santa Branca, Piquete, São Luiz do Paraitinga, Bananal, Queluz, Redenção da Serra, Areias e Arapeí) que viram a sua população reduzir na última década.

O Jacuhy retornará à análise da população regional, quando o IBGE apresentar os resultados definitivos. Em alguns municípios da RMVPLN, o Censo 2022 ainda está inconcluso.

Referências:
BEAUJEU-GARNIER, Jacqueline. Geografia de população. Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho. 2. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1980.
BROEK, Jan O. M. Iniciação ao estudo da geografia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
DAMIANI, Amélia L. População e geografia. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2009.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo 2022: acompanhe a coleta nas UFs e municípios. Disponível em: < https://censo2022.ibge.gov.br/acompanhamento-de-coleta.html?cod=3513603 >. Acesso em 11 jan. 2023.
______. Censo 2022: Tabelas – Prévia da População dos Municípios com base nos dados do Censo Demográfico 2022 coletados até 25/12/2022. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-censo-demografico-2022.html?edicao=35938&t=resultados >. Acesso em 11 jan. 2023.
______. Censo 2022: Municípios: prévia da população calculada com base nos resultados do Censo Demográfico 2022 até 25 de dezembro de 2022. Disponível em: < https://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2022/Previa_da_Populacao/POP2022_Municipios.pdf >. Acesso em 11 jan. 2023.

Cunha, transporte e desenvolvimento

Rodovia Vice-prefeito Salvador Pacetti (SP-171), quando atravessa o bairro do Taboão. Foto: site Viagens e Caminhos. Data: 2010.

Antes mesmo de Cunha ser Cunha, os caminhos já faziam parte da história deste lugar. A antiga trilha dos Guaianases, o “caminho do Facão”, foi um dos primeiros pontos de entrada para o sertão. Um peabiru que foi amplamente utilizado pelos colonizadores. Aliás, é bem provável que o nosso antigo topônimo “Facan/Facão” seja em razão da condição desse antigo caminho, que vencia a Serra do Mar, mas era dos mais perigosos e precários.

Dizem os antigos cronistas e aventureiros que os Guaianases, primeiros a pisar neste chão, estavam sediados na Ilha Grande. Quando chegava o verão, migravam do litoral rumo ao sertão, embrenhando-se na mata, que, de tanto ser varada, acabou virando a trilha desse povo originário.

Em distância absoluta, a cidade mais próxima de Cunha é Lagoinha (vide Mapa Concêntrico de Cunha abaixo). Dista 23,6 Km. No passado, já chegou a ser distrito de Cunha. Mas somente agora estão a asfaltar a ligação entre elas, via bairro do Jaguarão. A segunda cidade mais próxima, Paraty (RJ), a 30 Km, só foi conectada decentemente a Cunha em 2016, depois de mais um século de reivindicação para o seu calçamento.

É muito pouco para uma cidade que surgiu, justamente, em função dos caminhos.

Está sob a ponte aérea Rio – São Paulo, principal fluxo aeroviário brasileiro. Movimento bem perceptível à noite, com pontos luminosos transitando no céu no sentido Leste-Oeste.

Está conectada por menos de 50 Km, via SP-171, à BR-116, principal rodovia do Brasil.

Mapa Concêntrico em Cunha (SP), apresentando algumas cidades selecionadas como referência. A equidistância entre os círculos em destaque é de 50 Km. O objetivo é mostrar a posição de Cunha entre os dois maiores conglomerados urbanos do Brasil. Além da distância entre as cidades, foram respeitadas as angulações azimutais.Data: 2022. Cartografia: Jacuhy.

Portanto, percebe-se que Cunha não está mal localizada – como sugerem certas pessoas ao tentar justificar o subdesenvolvimento municipal –, já que seu sítio urbano fica entre as duas maiores metrópoles do país; mas é mal servida pela rede rodoviária, modal de transporte predominante no Brasil. E o problema nem é a densidade dessa rede, porque só de estradas rurais o seu território é cortado por mais de 2 mil quilômetros, e, sim, a condição dessas vias. Trata-se de estradas vicinais de terra batida, com manutenção esporádica, inapropriadas ao tráfego nos dias chuvosos.

Até 2016, quando a Estrada Parque Comendador Antonio Conti (RJ-165) foi concluída, a única ligação asfaltada que o município possuía com outro lugar era com Guaratinguetá, pela Rodovia Paulo Virgínio (SP-171), inaugurada em 1967 até a cidade de Cunha. O trecho até a divisa com o estado do Rio de Janeiro foi concluído em 1984.

Sem estradas transitáveis, não há turismo nem escoamento da produção agrícola.

Cidade com clima de montanha, porém bem perto do litoral. Localização privilegiada, isso sim. Só que sem estradas, é mais uma das “cidades mortas” do velho Vale, a espera de uma via transitável que possa ressuscitá-la.

PIB de Cunha cresce 11% em 2020

Setorização do PIB cunhense – 2020. Arte: Jacuhy.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou no dia 16 de dezembro de 2022 o Produto Interno Bruto (PIB) referente ao ano de 2020 de todos os municípios do Brasil. O intuito da instituição é “fornecer estimativas do Produto Interno Bruto – PIB dos Municípios, a preços correntes, e do valor adicionado bruto da Agropecuária, da Indústria, dos Serviços e da Administração, saúde e educação públicas e seguridade social, a preços correntes, compatível com as metodologias das Contas Regionais e Nacionais do Brasil, sendo as estimativas obtidas comparáveis entre si”; sendo portanto, um dado econômico relevante para o planejamento estatal, que permite verificar regiões e pontos com o avanços ou retrocessos econômicos no conjunto territorial do país. Ron Johnston (2009, p. 320) afirma que as estimativas do PIB são usadas para comparar o volume da atividade econômica ao longo do tempo e do espaço – seja em agregado ou per capita – mas para evitar complicações introduzidas pela inflação e flutuações da taxa de câmbio, elas devem ser convertidas em uma base comum.

A divulgação dos dados referentes ao PIB dos municípios em 2020 era aguardada, pois foi um ano atípico, marcado pelo alastramento do COVID-19 e a consequente paralização de diversas atividades econômicas, em virtude da emergência sanitária. O tamanho do impacto da pandemia sobre a economia tem sido objeto de debate entre os economistas. À medida em que os dados vêm sendo divulgados, foi possível perceber que os setores mais impactados pela pandemia foram o de alojamento e alimentação; serviços domésticos; transporte, armazenamento e correio; artes, cultura, esporte e recreação e outras atividades de serviços. Segundo o IBGE, “os resultados de 2020 evidenciam que os efeitos da pandemia de COVID-19 sobre as economias municipais variaram de acordo com a importância das suas atividades de Serviços, sobretudo as presenciais. Isto porque estes serviços agregam as atividades com as maiores quedas de participação no País entre 2019 e 2020, sendo as mais afetadas pelas medidas restritivas de isolamento e precaução de contágio por parte das famílias adotadas durante o ano.”. Todavia, os economistas e técnicos de planejamento têm alertado para a interpretação econômica do PIB dos municípios em 2020 e pedido cautela, pois foi um “ano em que a crise sanitária provocada pela Covid-19 trouxe grandes desafios para a mensuração da atividade econômica”, conforme consta na “Nota técnica – PIB 2020”, emitida pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), órgão do Governo de São Paulo.

A região do Vale do Paraíba Paulista foi diretamente impactada pela pandemia e viu seu PIB regredir em relação a 2019. O PIB regional recuou de 131,6 bilhões de reais em 2019 para 122,6 bilhões de reais em 2020. Uma variação negativa de 6,87% no volume. Os grandes centros econômicos de nossa região, São José dos Campos e Taubaté, ficaram entre os municípios que mais perderam participação PIB do Brasil em 2020, o que demonstra o grave impacto causado pela pandemia sobre a economia regional. O PIB do estado de São Paulo avançou 0,4% no mesmo período. Cunha não sofreu o mesmo impacto econômico.

O PIB de Cunha avançou de 267,7 milhões de reais em 2019 para 297,3 milhões de reais em 2020, agregando assim quase 30 milhões de reais de um ano para o outro, uma variação de volume de 11,05%. Desde que o IBGE começou a mensurar os PIB dos municípios, em 2002, na metodologia que utiliza até agora, Cunha nunca registrou decréscimo. Com esse resultado, a taxa participação econômica do município no PIB estadual teve um pequeno aumento. Era de 0,0114% em 2019 e foi para 0,0125% em 2020. No ranking estadual, Cunha é apenas 365ª maior economia.

Evolução do PIB de Cunha (2002-2020). Fonte: IBGE, 2022.

Ao se fazer um recorte setorial no PIB de Cunha, percebe-se que o setor que alavancou esse crescimento, mesmo diante do cenário de crise econômica, foi o primário. A agropecuária cunhense teve uma variação positiva de 54%, passando a responder por 12,9% do PIB cunhense (era 9,3% em 2019). Cunha é o maior produtor de leite de São Paulo e possui o maior rebanho bovino do Vale do Paraíba Paulista.

O setor hoteleiro e de alimentação foi duramente atingido pelas restrições sanitárias e de circulação implementadas para deter o avanço do COVID-19. Em Cunha não foi diferente. Medidas restritivas foram tomadas pela Municipalidade para preservar a saúde da população e tentar frear o avanço das infecções por coronavírus. Eventos foram cancelados. Pousadas foram temporariamente fechadas e restaurantes só puderam funcionar com entregas em domicílio. O turismo, hoje uma importante atividade econômica de Cunha, foi o mais impactado pela pandemia. Por outro lado, muitas pessoas deixaram a Região Metropolitana de São Paulo e se refugiaram em suas casas de veraneio e sítios na zona rural cunhense, na esperança de não serem infectados. Essa migração sanitária, esse êxodo urbano temporário, certamente aqueceu o comércio local e o setor de serviços, compensando as perdas do setor turístico. Por essa razão, mesmo com a crise, o setor terciário de Cunha variou positivamente.

Plantação no bairro da Vargem Grande. Data: 2014. Foto: Facebook Bairro da Vargem Grande – Cunha – SP.

A outra parte do setor terciário, aquela ligada à administração pública, foi fundamental para estabilidade econômica do município, uma vez que esse funcionalismo não sofreu cortes no salário nem enfrentou demissões por causa da crise econômica desencadeada pela pandemia. Uma parte considerável dos cunhenses que possuem remuneração registrada são aposentados ou funcionários públicos municipais, estaduais e federais. A Prefeitura de Cunha, por exemplo, emprega diretamente mais de 600 pessoas.

O setor secundário de Cunha corresponde a apenas 5,3% do PIB municipal e é composto por pequenas indústrias alimentícias. Não sofreu queda, mas também não evoluiu economicamente no período. Já a agropecuária cunhense, marcada por sua característica familiar, sempre foi resiliente. Como não foi um setor atingido diretamente pelos impactos negativos pandemia, registrou um grande crescimento. Ou seria apenas uma consequência do aumento da fiscalização e do registro de produção?

Plantação de hortaliças em sistema hidropônico, na zona rural cunhense. Data: 2022.

O PIB per capita do município saltou de R$ 12.349 em 2019 para R$ 13.857,47 em 2020. Mesmo assim, caiu no ranking estadual. Ocupava a 631ª posição em 2019; em 2020, está na 634ª posição. De acordo com esse dado econômico, Cunha figura entre os municípios mais pobres do estado. São Paulo tem 645 municípios. Na média brasileira, o PIB per capita foi R$ 35.935,74; bem acima, portanto, do nosso PIB per capita municipal. Por fim, alerta o geógrafo britânico Ron Johnston (2009, p. 320) que “o PIB não é necessariamente uma medida válida de ‘saúde econômica’, uma vez que as consequências prejudiciais (por exemplo, sobre o meio ambiente) não são levadas em consideração. E sua melhoria nem sempre é sinal de crescimento real; por exemplo: o aumento dos gastos com policiamento poderia estimular o crescimento do PIB, mas não é nada mais que uma resposta a um aumento da criminalidade.”. E o PIB per capita é limitado como indicador econômico porque não considera uma condição básica da economia capitalista: a brutal desigualdade de renda que existe entre as classes sociais.

Referências:
FUNDAÇÃO SEADE. PIB paulista cresceu 0,4% em 2020, 10 mar. 2021. Disponível em: < https://informa.seade.gov.br/analise_pdf/pib-paulista-cresceu-2020/ >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. Nota técnica – PIB 2020. São Paulo: Fundação SEADE, 2022. Disponível em: < https://repositorio.seade.gov.br/dataset/1bd90672-72a8-47cb-a34d-ab9eb703735d/resource/c1b5063b-d6b9-4832-a8ee-9caad7ee2c85/download/nota-tecnica_pib_do_esp_2020.pdf >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. PIB por municípios do Estado de São Paulo – 2020. São Paulo: Fundação SEADE, 2022. Disponível em: < https://repositorio.seade.gov.br/dataset/1bd90672-72a8-47cb-a34d-ab9eb703735d/resource/13af6a0f-e731-4fc7-8664-73e57de8f465/download/pib-municipios-2020.xlsx >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. PIB para os municípios de São Paulo – 2019. São Paulo: Fundação SEADE, 2021. Disponível em: < https://repositorio.seade.gov.br/dataset/1bd90672-72a8-47cb-a34d-ab9eb703735d/resource/7a58161d-f687-4c15-8edf-0787a6b03245/download/pib-municipios-2019.xlsx >. Acesso em: 18 dez. 2022.
GREGORY, Derek et al. Dictionary of Human Geography. 5. ed. West Sussex (Reino Unido): Wiley-Blackwell, 2009.
IBGE. Produto Interno Bruto dos Municípios: Cunha. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/contas-nacionais/9088-produto-interno-bruto-dos-municipios.html?t=pib-por-municipio&c=3513603 >. Acesso em: 18 dez. 2022.
______. Produto interno bruto dos municípios 2020. Rio de Janeiro: IBGE / Coordenação de Contas Nacionais, 2022. Disponível em: < https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101990_informativo.pdf >. Acesso em: 18 dez. 2022.

Alguns dados biográficos de Clementino de Souza e Castro Júnior

Voluntários paulistas no front de Cunha. Da esquerda para a direita: Geraldo Nascimento e Vavá (os dois cunhenses do grupo), Clementino, Tegon e Zilcar. Foto: Acervo Gazeta de S. Paulo.

Clementino de Souza e Castro Júnior (São Paulo, 23 de julho de 1.897 – São Paulo, 22 de agosto de 1.981) era filho de Clementino de Souza e Castro e Luiza Arruda de Souza e Castro. Seu pai foi prefeito de São Paulo na transição do regime monárquico para o republicano, entre 1890 e 1891, e chegou a exercer o cargo de ministro no Tribunal de Justiça de São Paulo. O bairro de Vila Clementino, localizado no distrito de Vila Mariana em São Paulo, recebeu essa denominação em homenagem ao seu pai, gestor público de grandes realizações.

Tomando parte nos acontecimentos daquele outono e inverno de 1932, quando a cidade de São Paulo se agitava contra a ditadura de Vargas, eufemisticamente chamada de “Governo Provisório”, Clementino Júnior se alistou como voluntário, tendo sido deslocado para a “Frente Norte” (Vale do Paraíba), mais precisamente para o “Sector de Cunha”, já nos primeiros momentos da guerra civil.

Quando se alistou como voluntário nas fileiras do Exército Constitucionalista, já era casado e pai de três filhas. Esse fato o distingue de muitos, mostrando a sua devoção à causa constitucionalista. Paulista e constitucionalista.

Soldados e oficiais em um momento de folga e de pausa para a pose. Trata-se do casarão da Dona Benzinha, já demolido, que foi utilizado como Delegacia Técnica durante a Revolução de 1932. Clementino observa debruçado na janela. Foto: Museu Francisco Veloso.

Em Cunha, devido à sua formação acadêmica – engenharia civil pelo antigo Colégio Mackenzie – veio a compor o corpo técnico do Estado Maior da Praça de Cunha, quando instalada na cidade a Delegacia Técnica do Exército Constitucionalista, que funcionou no casarão que ficava na esquina da rua Dr. Casemiro da Rocha com a Praça da Matriz. O casarão foi demolido, mas um novo prédio (em proporção e estilo semelhante) foi erguido e hoje está alugado para a Caixa Econômica Federal. Como engenheiro, confeccionava os croquis e mapas bélicos. Também ficou responsável pela intendência. No acúmulo das duas funções, tendo contato direto com os anseios das trincheiras e com as resenhas da oficialidade, foi testemunha privilegiada dos acontecimentos que se desenrolaram em Cunha.

Cunha sitiada. A situação da guerra em 16 de agosto de 1932, às 18h, não era nada favorável aos paulistas. Mapa: Clementino Jr. Data: 16 ago. 1932.

Anotava tudo em seu diário pessoal. Infelizmente foi perdido, conforme relata no livro, quando preso no 6º R.I. de Caçapava, em outubro de 1932, em razão da derrota do movimento constitucionalista. Mas a memória é impertinente, resistente, persistente. Três anos depois, suas reminiscências ocasionaram o livro “Cunha em 1932”, pela editora “Revista dos Tribunaes”, o primeiro escrito sobre Cunha e que, de fato, tornou nossa cidade e a batalha que se travou aqui famosa nos círculos sociais da metrópole piratiningana. Mas é importante reforçar que o livro é sobre o município de Cunha e as batalhas que ocorreram aqui; não é sobre os cunhenses. Cunha é só o cenário, o teatro de operações.

Capa original do livro “Cunha em 1932”, lançado em 1935. Digitalização: Jacuhy.

Sua intenção ao pôr no papel suas lembranças era revidar à apropriação política que alguns faziam do movimento. Esses, motivados por interesses pessoais e sem compromisso com a verdade, omitiam ou se inseriam na história para angariar prestígio e votos, maculando os nobres ideais que levaram milhares de jovens a partir para as trincheiras. Por isso o livro vem a lume em 1935, quando o país já gozava da democracia e a campanha partidária reconquistava as ruas e corações. Motivo da luta dos constitucionalistas, a democracia retornava; todavia com sua parte indesejada: os políticos e as negociatas de sempre.

Foi casado com Izaura Camargo Souza Castro e teve os seguintes filhos: Clelia, Luiza, Teresa, Irene e Jurandyr. Este deu o seguinte depoimento sobre seu pai: “sua vida aqui foi linda, alegre, cheia de lutas e vitórias. Cidadão íntegro que, com muita sabedoria, soube cuidar dos seus. Sempre dando exemplos de patriotismo, deixou saudades eternas. Sempre dizia: ‘Quem não cuidou da família, não teve um filho, não escreveu um livro, não plantou uma árvore e não lutou pela pátria: não deve ser considerado homem’. Que Deus o mantenha na Paz.”. Quando faleceu, em 1981, aos 84 anos de idade, deixou além de saudades e corações enlutados, filhos, netos, bisnetos e tataranetos. Seu corpo foi enterrado no Cemitério da Consolação.

Clementino Jr. e sua esposa Izaura. Foto: Jurandyr Castro.

A força do seu depoimento sobre o movimento encetado por S. Paulo em 1932 reside na sua conversão em objeto de análise, das ideias e ideologias que permeiam a obra e nos ajudam a entender a mentalidade da época. Seu interesse para nós: cunhenses, paulistas, democratas, brasileiros, vai muito além dos fatos e fotografias que ilustram o livro. Ali está o paulista metropolitano que já não se reconhece mais no paulista interiorano. Uma das contradições imposta pela industrialização. É o desejo da elite paulista de romper com seu passado pobre, rústico, agrário, caipira, nativista que prevalece no livro quando Clementino se refere aos cunhenses. Por isso, ao digitalizar o livro, decidi manter a grafia, o número e o conteúdo de cada página correspondendo ao original, sem nada acrescentar ou suprimir. Nem fiz qualquer nota de rodapé.

“Cunha em 1932”: Dedicatória escrita em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, para um dos seus primos: “lembranças da nossa guerra”.

Ao Clementino, que descansa o sono dos justos, fica a minha profunda gratidão por ter trazido, com muita sinceridade, suas memórias à lume; aos que lutaram e puseram sua vida abaixo dos altos ideais que nortearam os paulistas no campo de batalha, fica minha reverencia. E a todos os cunhenses que sofreram naqueles dias difíceis, fica o meu reconhecimento.

Eles – os exércitos paulista e getulista – lutaram por suas convicções políticas, suas paixões partidárias; nós, cunhenses, lutamos para sobreviver ao inferno que essas convicções apaixonadas criaram.

Para ler ou fazer o download do livro “Cunha em 1932”, clique AQUI:

Museu de Cunha realiza exposição sobre a Revolução de 1932

Folder de divulgação da exposição “Cidade Sitiada”, do Museu Francisco Veloso. Data: Julho de 2022.

Com o título “Cidade Sitiada”, o Museu Francisco Veloso organiza desde o dia 9 de julho de 2022 uma exposição sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, com enfoque nos acontecimentos de Cunha. A guerra civil de 1932 foi o mais importante evento histórico estadual no século XX e teve em Cunha um dos seus teatros principais, devido à proximidade com fronteira interestadual. A exposição vai até o dia 30 de setembro.

Apesar de já se ter passado 90 anos do conflito, deflagrado em 9 de julho de 1932, é um assunto que desperta defesas ou investidas apaixonadas. O historiador Hernâni Donato, em seu livro “História da Revolução Constitucionalista de 1932”, ao tratar sobre o interesse que esse remoto levante armado ainda desperta, aponta: “Extremadas. Assim têm sido as referências ao movimento cívico-político-militar ocorrido em 1932, preparado em vários estados, porém centralizado em São Paulo. Enaltecido ou denegrido”. São Paulo se levantou contra o “Governo Provisório” de Getúlio Vargas, instaurado pela Revolução de 1930, alegando a imediata reconstitucionalização e redemocratização do país. Derrotados no campo militar, os paulistas cantam vitória até hoje, pois o seu ideal, uma nova constituição, foi alcançado. Em 1933 houve eleição para composição da Assembleia Nacional Constituinte e em 1934 uma nova Constituição foi promulgada para o país. Já para o historiador Boris Fausto, em seu livro “História concisa do Brasil”, os objetivos dos paulistas e aliados eram ambíguos. Segundo ele, “a ‘guerra paulista’ teve um lado voltado para o passado e outro voltado para o futuro. A bandeira da constitucionalização abrigou tanto os que esperavam o retroceder às formas oligárquicas de poder quanto os que pretendiam estabelecer uma democracia liberal para o país”.

As ocorrências e consequências do conflito ainda estão vivas na memória de muitos cunhenses. Não as desavenças políticas das elites, mas o sofrimento do povo e a perda da inocência com tanta violência em um lugar outrora tão pacato. A tradição oral sobre a guerra civil vai desde as anedotas do contador de causos “Zé Varda” até o silêncio de traumas insuperáveis, vivos ainda nas lembranças daqueles que vivenciaram de perto os horrores de ter uma guerra acontecendo no quintal de casa.

O objetivo da exposição é provocar novos olhares e leituras sobre o movimento armado, ampliando a discussão para além das motivações políticas e das narrativas orquestradas por elas. Por isso, além de abordar os aspectos gerais do conflito, é tratado o desdobramento na cidade de Cunha, do cerco militar que a cidade passou entre julho e agosto de 1932. O envolvimento dos soldados e também dos moradores, civis, pessoas alheias aos acontecimentos políticos nacionais, mas que acabam tomando parte, sem querer, na guerra civil. Um verdadeiro drama que o tempo ainda não foi capaz de apagar.

A diretora do Museu, Dina Zélia Chimello, afirma que a exposição foi feita pensada nos cunhenses e aguarda a visita de todos. Recentemente, ela gentilmente nos concedeu uma entrevista sobre a exposição, que reproduzimos abaixo.

Jacuhy – Qual é o objetivo da exposição “Cidade Sitiada” e o que o Museu pretende promover com ela?

Dina Chimello: O objetivo principal é contar a história da Guerra Civil de 32, na cidade de Cunha, com base em relatos memorialísticos (foram feitas entrevistas com antigos moradores; e extraídos os testemunhos escritos de soldados voluntários). E assim provocar uma reflexão sobre as experiências vividas naqueles três meses de guerra, seja pelos soldados, ou pelas muitas famílias que abandonaram suas casas para viver no mato, sem alimento e proteção, segundo relato do sr. Enéas Roberto de Toledo, Dona Maria Pacheco e sr. Nino, os quais com seus testemunhos contribuíram, traduzindo os sentimentos dos seus antepassados e familiares.
O MFV (Museu Francisco Veloso) pretende, com a exposição “Cidade Sitiada”, promover e estabelecer vínculos com os cunhenses, em particular com as instituições escolares, de modo a contribuir para o envolvimento de professores e alunos com a memória e a história da cidade.

Jacuhy – Por que a escolha pela Revolução de 1932, uma guerra civil, como tema da primeira exposição do Museu sob sua gestão?

Dina Chimello: O tema foi uma sugestão do prefeito José Eder para celebrar os 90 anos da Guerra Civil de 1932. Os historiadores, Maria Izabel de Azevedo Marques Birolli, e Joaquim Roberto Fagundes foram responsáveis pela pesquisa histórica, e Andreas Guimarães pela expografia.

Jacuhy – Qual tem sido a impressão sobre a exposição dos munícipes e turistas que visitam o Museu?

Dina Chimello: É bastante impressionante como a exposição tem sido bem avaliada! Depoimentos cheios de emoção sobre a montagem da sala que conta a história dos “Lenços Brancos”, na voz de Tereza Freire. Sobre a grafia dos textos em tecidos, sobre a réplica da matraca e do boneco do soldado, obras do dedicado artesão Reginaldo da Silva Martins. Admiração ainda com a tecnologia de landing Page e QR code disponíveis em todas as salas, um recurso que possibilita maior alcance e visibilidade, trabalho técnico de Kauan Yorras Ruan Pereira, empresa, Essencial Artes Designer e Publicidade.

Jacuhy – Sabemos que a Revolução de 1932 ainda é trabalhada nas aulas de História. As escolas de Cunha têm frequentado a exposição?

Dina Chimello: Sim, uma grande quantidade de alunos e professores já visitaram a exposição, e queremos continuar a recebê-los com muita alegria e disposição. Acreditamos que, inspirados por ela, poderão surgir muitas e importantes atividades escolares. Esperamos ainda que estes alunos levem seus familiares. A exposição foi movida pelo sonho e o desejo de receber os cunhenses!

Jacuhy – Até quando vai a exposição e qual o horário que o Museu fica aberto à visitação? Ele funciona aos sábados e domingos?

Dina Chimello: Até dia 30/9 de 2022. De terça à sexta-feira, das 9h às 16 horas. Aos sábados das 10h30 às 16 horas. Aos domingos das 10h30 às 13 horas.

O Museu fica no calçadão da rua Comendador João Vaz, centro de Cunha, no casarão que pertenceu ao sr. Nenê Felipe.

Cunha no ano da Independência do Brasil

Os relatos de viagem do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) trazem um valioso contingente de informes sobre a mais importante região brasileira a que se estende entre as duas maiores cidades do país: o Vale do Paraíba.

Em 1822 realizou sua segunda viagem pela Província de São Paulo e nos legou diversos relatos sobre um tempo que já se foi… Nessa segunda viagem saiu do Rio de Janeiro e foi em direção a Minas. De lá, desceu a Mantiqueira, passou por Cachoeira Paulista e Guaratinguetá. Tomou rumo para Taubaté, Jacareí, Mogi das Cruzes e, finalmente, São Paulo. Na volta, retornou a Mogi das Cruzes, passou por Nossa Senhora da Escada, Jacareí, Taubaté. De Taubaté partiu em direção à capital do Brasil, passando por Aparecida, Guaratinguetá, Areias, Bananal, São João Marcos, Itaguaí e Santa Cruz.

Praça da Matriz de Cunha, por volta de 1900. Foto: Museu Municipal. Digitalização e coloração: Giorgio Cerutti.

Muito embora não tenha passado pela então Vila de Nossa Senhora da Conceição de Cunha, Saint-Hilaire (2002, p. 118) não deixou de registrar informações sobre o nosso município. Pernoitando em um rancho de tropeiros, antes de chegar a Bananal, junto com seus dois criados – Firmino e Laruotte –, dois índios montados e um tropeiro, se deparou com dois soldados que iriam assumir guarda em uma barreira criada na estrada entre Cunha e Paraty e deles extraiu as seguintes informações, alguns meses antes da Independência do Brasil:

Rancho de Pedro Louco, 24 de abril, 4 léguas – No rancho sob o qual passamos a última noite, estavam dois homens da Vila de Cunha que vão assumir a guarda de uma barreira recém-criada nesta estrada. Segundo o que me informaram fica a cidade de Cunha situada perto da grande cordilheira, a nove léguas de Guaratinguetá, a quatorze do pequeno porto de Parati e cinco das nascentes do Paraíba. Como se acha em terreno baixo, o açúcar e o café não progridem em suas redondezas, que contudo produzem em abundância o milho e outros gêneros dos quais parte embarca em Parati para o Rio de Janeiro. De Guaratinguetá enviam também gêneros a Parati, fazendo-os passar pela Vila de Cunha.”

Saint-Hilaire, 24 de abril de 1822

Há outras impressões mais ou menos do mesmo período. Ficaremos, devido a sua precisão, com a do geógrafo e sacerdote português padre Manuel Aires de Casal (1945, p. 241-242), no seu “Corografia Brasílica”, lançado em 1817:

Cunha, em outro tempo Facão. Villa ainda pequena, e que com facilidade pôde ser considerável, situada na vizinhança do Rio Jacuhy sobre a serra, oito léguas ao Norte de Paraty, ornada com a Igreja Matriz, de que he Padroeira N. S. da Conceição. O clima he sadio, as noites de Junho, e Julho frias. He o lugar da Zona Torrida, onde ategora tem prosperado melhor as flores, e arvores frutiferas oriundas da Europa. Nos seus contornos ha extensos pinheiraes; e seus habitantes cultivam mantimentos do paiz, recolhem abundancia de milho, e criam em grande quantidade gallinhas, e porcos, sua riqueza. O caminho, que communica esta Villa com a do Paraty, he péssimo. Quando os recoveiros transitarem por elle com a mesma facilidade, e segurança, que os do Cubatão entre S. Paulo, e Santos, então uma terá florescimento, outra maior commercio.”

Padre Manuel Aires de Casal, 1817
Parte de uma carta da Província de S. Paulo, do início do século XIX, mostrando a localização de Cunha, os rios e os caminhos para o mar. Fonte: Acervo digital da Biblioteca Nacional.

População

A população da Vila alcançava 2.818 almas em 1823. A economia prosperava, mas de forma modesta. O café ainda não tinha alcançado o seu auge na região. E Cunha, que possuía função complementar, aguardava ser alavancada junto, com o arranque econômico que atingiria o Vale. Predominava entre as atividades, conforme descrição da época, presente nos Maços de População, o seguinte: “tem hum sitio em q. fas sua plantação e seva capados”. A mão de obra era basicamente escrava, contingente que atingia cerca de 44% de toda a população do município. A maioria era formada por escravizados africanos, porém é de se supor que ainda havia entre eles indígenas, descendentes dos povos originários.

As barreiras de alfândega que existiam no caminho até o mar eram ocupadas por soldados, que fiscalizam e faziam cumprir a taxação, daí a razão de ser a militar a profissão de maior ocupação entre os cunhenses nesse tempo. Não é uma coincidência ter Saint-Hilaire se deparado com dois deles, que vinham assumir posto em Cunha, quando pernoitou no rancho de Pedro Louco.

Fonte: Arquivo Público do Estado de S. Paulo, Maços de População da Vila de Cunha, 1823.

Na década de 1830, a produção de café se torna dominante no Vale do Paraíba, superando o cultivo de cana-de-açúcar, com quem dividia o uso e ocupação do solo. De 1823 a 1836, a população cresce. Reflexo do avanço da cafeicultura na região e do lastro de desenvolvimento que provocava. Passa de 2.818 para 3.403 habitantes. Chega a 559 “fógos” (sinônimo de moradia, casa, habitação, residência). É um novo tempo não só na política, mas na economia e na demografia. Recebe a região grandes contingentes humanos: de brancos, aventureiros e escravizados de outras partes do Brasil. Do ponto de vista ambiental é um desastre: liquidação quase completa da Mata Atlântica, que reduzir-se-á aos sertões e as cordilheiras.

Tropeirismo

O surgimento de Cunha, outrora Facão, que remonta às primeiras doações de sesmarias nos fins do século XVII, está relacionado diretamente com os caminhos, antigos, que permeavam o planalto do Paraitinga e do Paraibuna. Ponto de parada entre Paraty, no litoral, e as cidades do sertão: Guaratinguetá e Taubaté. Portanto, aqui, mais que em outros lugares, floresceu o tropeirismo. O dinamismo dos fluxos de gentes, mercadorias e ideias animou os primeiros anos da Freguesia do Facão, que vingou na Serra do Mar. Os que foram se estabelecendo, margeando a Estrada Real, foram se nutrindo desse movimento das tropas e do rol de atividades adjuntas que dessa circulação vai-e-vem advém.

Um dia comum em uma cidade paulista no início do século XIX. “San Bernardo”, aquarela sobre papel. 1827.
Autor: Charles Landseer. Fotografia: Fernando Chaves. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural.

Por isso, a abertura de novas vias ou a modernização e retificação das antigas, sempre representava um duro golpe econômico e demográfico sobre o Facão. Essas decadências podem ser percebidas nos estudos genealógicos, como foi na pesquisa do historiador Carlos da Silveira (1938, p. 92): “As tropas, que eram a sua vida, começaram a se desviar para outras zonas e as velhas famílias, em fins do século XVIII e princípios do XIX, trataram de se ir localizando ao longo do caminho novo, de Lorena ao Rio. Numerosos habitantes, facãozenses puros, deslocaram-se da terra natal, povoando assim as margens da nova estrada, em territórios que vieram a constituir os municípios paulistas de Lorena até a fronteira fluminense, e, passando mesmo essa fronteira, estenderam-se até o Rio Piraí (…)”.

Mas Cunha sempre se reinventa. A natureza nos é generosa e disposição para o trabalho o cunhense sempre teve, desde sempre. Em 1836, chama a atenção o grande número de ferreiros entre as artes e ofícios de que se ocupavam os cunhenses. Havia 11 deles trabalhando em suas oficinas na Vila. Número bem acima dos municípios da região, inclusive daqueles que possuíam uma população ou um espaço urbano maior. Isso mostra que mesmo com a inauguração do caminho novo da Estrada Real ou do Caminho Novo da Piedade, os valeparaibanos não negligenciaram a antiga via de acesso ao litoral, que passava por Cunha e findava no porto de Paraty. Antes do café tomar conta, permaneceu essa via como rota de escoamento das riquezas do Vale.

Um tropeiro e a sua tropa, em aquarela de Jean Baptiste Debret. Carvão, 1822, aquarela. Fonte: Museus Castro Maya/IBRAM/MINC. Fotógrafo: Jaime Acioli

Por isso, Cunha não desapareceu do mapa. Além de sua produção agrícola, funcionava como entreposto comercial. Os ferradores de Cunha – produzindo estribos, esporas, ferraduras, cravos e pregos, fivelas, trempes, panelas e toda sorte de utensílios de ferro – davam assistência logística ao transporte de cargas e ao aparato das tropas. A nossa cidade, ainda que minúscula, ocupava uma função naquela rede urbana pretérita.

Economia

A vocação de Cunha para pecuária é antiga. O economista Francisco Vidal Luna (1998, p. 135), ao estudar os municípios paulistas entre os séculos XVIII e XIX, observou sobre essa atividade o que segue: “em 1804 sua importância maior ocorria no Vale do Paraíba, com 14,8% dos proprietários e 22,8% dos escravos, e no Caminho do Sul, com participações de 14,0% e 26,1%, respectivamente. No Vale do Paraíba destacavam-se Cunha e São Luís do Paraitinga (…)”. Todavia, naquele tempo predominava a suinocultura; e não a bovinocultura, como atualmente, com Cunha sendo a maior bacia leiteira do estado.

“Loja de carne de porco”, gravura de Jean B. Debret, representando o Rio de Janeiro do século XIX. Acervo do Museu Castro Maya.

Os dados estatísticos mais próximos, de 1836, apontavam que a Vila de Nossa Senhora da Conceição de Cunha figurava entre as maiores produtoras de milho da Província de S. Paulo: com 87.988 alqueires, ocupando a 9ª posição. Além do cereal nativo da América, era destaque a produção de fumo com 649 arrobas, 2ª posição, atrás somente de Curitiba, que na época pertencia ao território paulista. Por ser um produto básico da culinária colonial, o toicinho era um produto comercializável e Cunha, com uma produção de 8.905 arrobas, ocupava naquela época a 1ª posição entre os municípios paulistas, correspondendo a 68,5% de toda produção provincial. Essa grande produção em nosso município indica o quanto a economia local estava ligada às culturas e criações que fugiam do sistema de plantation, ainda que a mão de obra fosse escrava em sua maioria. Junto com o cultivo de feijão, tabaco e milho e outros gêneros, criavam-se porcos e galinhas. Mais do que base da economia de subsistência, esses itens, para Cunha, destinavam-se à exportação e geração de receita. Seguiam para a Corte, via porto de Paraty, e para São Paulo e outras cidades do Vale, nas cangalhas.

Dos cultivos que prosperavam a província, Cunha em nada se destacava. Müller anota o que havia em nossas redondezas em termos de estabelecimentos agrícolas: “5 engenhos de assucar, em ponto pequeno, 2 fazendas de criar, 2 fazendas de café”. Número muito aquém dos municípios vizinhos. O motivo: o clima. A geomorfologia do nosso território, cercado por três serras, intensificava o frio característico do clima tropical de altitude. A geada, visita constante em nossos invernos, baldava as culturas tropicais nestas bandas. Entretanto, na descrição geral aparece a ressalva: “n’este districto se planta muito mantimento, assim como algum tabaco: criam-se muitos porcos, e algum gado vacum, e cavalar. Não tem terrenos devolutos.”. O café e o açúcar não fizeram a riqueza dos fazendeiros e sitiantes de Cunha, que de alguma forma, encontraram o seu nicho econômico como fornecedores de alimentos para região e para outras cidades maiores, envolvidas que eram em outras atividades agrícolas ou comerciais, mais rentáveis e tropicais.

Fazenda da Barreira, antes de ser demolida, no bairro do Taboão. Antiga alfândega para as mercadorias do Vale. Foto: Marcos Santilli. Data: década de 1980.

Após a Independência do Brasil, o Vale do Paraíba se tornará a região mais próspera do Império nascente. O café irá alavancar todas as localidades valeparaibanas. Até aquelas que não produziam café, como Cunha. No século XIX Cunha conhecerá o seu auge econômico e também viverá a sua decadência. Um século de muitas nuances, mudanças, e que merecerá, em breve, um texto só sobre esse período.

Referências:
AIRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica. Tomo I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO (APESP). Maços de População – Vila de Cunha – 1823. Disponível em: < http://www.arquivoestado.sp.gov.br/web/digitalizado/textual/macos
_populacao >, acesso em 5 set. 2022.
DÓRIA, Carlos A.; BASTOS, Marcelo C. A culinária caipira da Paulistânia: a história e as receitas de um modo antigo de comer. São Paulo: Três Estrelas, 2018.
LUNA, Francisco V. São Paulo: População, Atividades e posse de escravos em vinte e cinco localidades – (1777-1829). Estudos Econômicos. São Paulo, v. 28, n. 1, p. 99 -169, jan/mar., 1998. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/ee/issue/view/877 >, acesso em 10 set. 2022.
MÜLLER, Daniel P. Ensaio d’um quadro estatístico da província de São Paulo: ordenado pelas leis provinciais de 11 de abril de 1836 e 10 de março de 1837. 3 ed. São Paulo: Governo do Estado, 1978.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem a São Paulo e quadro histórico da Província de São Paulo. Tradução de Afonso de E. Taunay. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.
SILVEIRA, Carlos da. Apontamentos para o estudo de uma grande família: os Lopes Figueira, do Facão. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. São Paulo, v. 35, p. 91-130, dez., 1938.
SOBRINHO, Alves M. A Civilização do Café (1820-1920). 3. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.

Cunha: paisagem, meio ambiente e economia

Cunha vista da Serra da Bocaina. Foto: Pedro Máximo. Data: 2011.

A cidade de Cunha vista da Pedra Grande, na Serra da Bocaina, próxima à divisa com Silveiras. Está a 34 quilômetros em distância absoluta, na direção sudoeste. O interessante dessa perspectiva é que aparece a Serra do Alto do Diamante ao fundo, que está a cerca de 55 quilômetros de distância da Pedra Grande. Após essa serra, temos ainda o bairro do Sertão do Palmital e mais cerca de 5 Km (em termos absolutos) de terras cunhenses até se chegar ao limite com São Luís do Paraitinga, divisa formada com cotas altimétricas inferiores ao do Alto do Diamante e vertente do rio Paraibuna. A foto na perspectiva noroeste-sudoeste revela um pouco da extensão de nosso município, maior do Vale do Paraíba e o único no estado circundado por três 3 serras principais (além de outras ramificações), como é o caso do Alto do Diamante, do Alto Grande e do Campo Grande. Todas com picos ultrapassando os 1600 metros de altitude.

Cunha vista da Pedra Grande. Cotas altimétricas do IBGE (1973). Edição: Jacuhy.

O bairro Sertão do Palmital, ainda em 1970, completamente isolado de Cunha. Os moradores se serviam, quando podiam, de São Luiz do Paraitinga, via distrito de São Pedro da Catuçaba. Mesmo assim por trilhas acessíveis apenas a pé ou a cavalo.

Parte da carta hipsométrica das três serras. Fonte: IBGE, 1973.

Um dos morros da Serra desperta a nossa atenção por sua feição cônica, se assemelhando a um vulcão, o que obviamente não é e nem nunca foi. Trata-se de dois morros na verdade, mais pontiagudos e altos que os vizinhos que observados de longe, revelam esse contorno diferente. Essa Serra, aliás, pode ser melhor observada do Morro Grande, vide as fotos da “Estalagem Shambala” ou do loteamento recentemente aberto “Alpes de Cunha”.

Alto do Diamante e Campo Grande. Vista da Estalagem Shambala. Data: 2022.

Os morros que circundam a cidade de Cunha, e que parecem altos, praticamente se aplainam ante a imponência da Serra do Mar, que, como uma muralha, cerca o município nos limites de sudoeste a nordeste.

Vista da Serra do Campo Grande. Foto: Guto Felipe. Data: 2022.

Todo esse “Mar de Morros” é obra de milhões de anos de processos erosivos contínuos, consequência da ação do clima tropical sobre o relevo. As paisagens que temos hoje são heranças que a natureza nos legou e que devemos preservar para a posteridade.

Vista da Serra do Alto do Diamante. Foto: Rodrigo Leite. Data: 2012.

Por isso, o desmatamento incontrolável que nossa região passou nos últimos cem anos preocupa. Não só pelo aumento dos movimentos de massa e os riscos que eles trazem à segurança das pessoas e animais, além dos prejuízos, mas pela perda dos solos, um problema grave e ainda pouco abordado e tratado em Cunha. Sem solo não há agricultura, pecuária e nem vida. A aceleração dos processos erosivos e a retirada ilegal de mata ciliar levam ao assoreamento dos cursos d’água e ao desaparecimento da fauna fluvial. A retirada de mata no topo dos morros leva ao sumiço dos vertedouros. Toda ação humana gera algum impacto ambiental que, mais cedo ou mais tarde, acarretará algum impacto social.

O pouco que restou da nossa Mata Atlântica foi resultado da ação impositiva do Estado, que interveio na década de 1.970 para impedir o desaparecimento completo da cobertura vegetal, com a criação de duas unidades de conservação de proteção integral: Parque Nacional da Serra da Bocaina e Parque Estadual da Serra do Mar. Nunca partiu de nós, cunhenses, o devido cuidado com meio ambiente. É muito provável que sem as unidades de conservação, o pouco de verde que ainda restou já teria virado carvão, moirão, palanque, esteio, móveis, pasto etc. Até o nosso linguajar valida a visão antiecológica de ver árvores e matas como um problema. Chamamos de “pasto sujo” aquele que contém árvores e capoeirões espalhados pela herdade.

O desenvolvimento do turismo surge como uma esperança. Ao retirar do setor primário o sustento de muitas famílias e realocá-lo no terciário, ameniza a pressão sobre os recursos naturais do município. Ademais, a paisagem natural ou regenerada deixa de ser um “pasto sujo” e passa a ser valorizada. Valorizada no sentido financeiro mesmo, pois o turismo é uma atividade econômica que promove o consumo do espaço e das paisagens. Desde que não seja predatório ou privilégio de alguns empreendedores, o turismo pode ser uma das saídas para Cunha.

A pergunta que fica é: o que deixaremos para as futuras gerações? Mais do que esperar do Estado e atribuir responsabilidades a outrem, sempre é bom fazer um exercício de reflexão pessoal, focado na nossa ação no mundo. Cabe a nós, enquanto comunidade, buscar alternativas econômicas sustentáveis.

Referências:
AB’SÁBER, Aziz N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. 5 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
CRUZ, Rita de C. A. da. Introdução à geografia do turismo. 2. ed. São Paulo: Roca, 2003.
IBGE. Lagoinha: região sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1973. 1 carta topográfca, color., 4465 × 3555 pixels, 5,50 MB, jpeg. Escala 1:50.000. Projeção UTM. Datum horizontal: marégrafo Imbituba, SC, Datum vertical: Córrego Alegre, MG. Folha SF 23-Y-D-III-2.
O ESTADO DE S. PAULO. Palmital, um bairro isolado. 4 out. 1970, p. 42.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
VELOSO, João J. de O. O ambiente natural cunhense. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 1996.

A demarcação da fronteira entre Cunha e Paraty

Serra do Mar, divisa entre Cunha (SP) e Paraty (RJ). Foto: viagensdecaprala.com.br

Cunha se tornou município em 15 de setembro de 1785, separando-se de Guaratinguetá. Na época, elevar-se à condição de vila equivalia, administrativamente, aos termos políticos e territoriais dos municípios de hoje. Fundado em 1724, o município no extremo leste de São Paulo faz divisa com o estado do Rio de Janeiro. Aliás, a sua maior linha fronteiriça é com o município de Paraty, com quem mantém laços históricos, culturais, ambientais, sociais, econômicos, turísticos, afetivos etc. etc.

Foi durante o conturbado Período Regencial da Era Imperial, mais especificamente durante a Regência Trina (1831 a 1834) – os nomes dos insignes regentes aparecem no autógrafo do decreto –, que os limites entre as Vilas de Cunha e Paraty foram postos. Corria a década de 30 do século XIX… Os cafezais, ainda tímidos, começavam a ocupar as encostas do Vale do Paraíba… E na serra e mar, alheias a coisas maiores, as Câmaras de Cunha e Paraty digladiavam-se sobre a extensão dos seus respectivos territórios. Para apaziguar os ânimos dos “homens bons” (alcunha dos vereadores na época), os regentes usaram o poder de suas penas para pôr fim à altercação. E nos seguintes termos:

DECRETO – DE 29 DE JANEIRO DE 1833.

Fixa os limites entre os termos das villas de Paraty e Cunha.

A Regencia, em Nome do Imperador, resolvendo definitivamente as duvidas, em que até agora se têm conservado as Camaras Municipaes das villas de Paraty, desta Província, de Cunha; da de S. Paulo, sobre os limites dos seus termos confrontantes; depois de proceder ás necessarias informações, e de ponderar as razões offerecidas de uma e outra parte, decreta :

Os termos das villas de Paraty e Cunha ficam divididos pelo alto da serra, pertencendo a cada uma das villas a parte da mesma serra, que verte para o seu lado.

Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, Ministro e Secretario de Estado dos Negocias do Imperio, assim o tenha entendido, e faça executar com os despachos necessarios. Palacio do Rio de Janeiro, em vinte e nove de Janeiro de mil oitocentos trinta e tres, decimo segundo da Independencia e do Imperio.

FRANCISCO DE LIMA E SILVA
JOSÉ DA COSTA CARVALHO
JOSÉ BRAULIO MONIZ

Nicolau Pereira de Campos Vergueiro

Pelo que se sabe, via cartografia colonial, os bairros rurais de Cunha, aqueles do alto da Serra do Mar, pertenciam à Vila de Paraty. Taboão, Buracão, Divisa, Mato Limpo, Várzea do Cedro, Pontinha, Gramas etc. era tudo território paratiense. A divisa, pelo que indicam os mapas antigos, era nos altos da Aparição, acompanhando os morros do Divino Mestre, Lavandário etc. Eis aí a razão da contestação litigiosa aventada pela Câmara da Vila de Cunha, uma vez que essas antigas paragens eram povoadas por gente cunhense. Na contenda, pelos contornos municipais que prevaleceram, a nossa Câmara saiu vencedora.

Transcrevendo a legislação territorial dos municípios paulistas, o Instituto Geográfico e Cartográfico (IGC) (SÃO PAULO, 2010, p. 189) anota sobre a divisa de Cunha com o estado do Rio de Janeiro:

“Com o Estado do Rio de Janeiro: Começa no rio Mambucaba, na foz do córrego da Memória; segue pela divisa com o Estado do Rio de Janeiro até a serra do Mar, onde ela cruza com o espigão que deixa as águas dos ribeirões Picinguaba, Cambuí e córrego da Escada, de um lado, e as dos rios Patatiba e Carapitanga, do outro lado, espigão que é a serra do Parati”

Vale lembrar que Cunha faz divisa com dois municípios fluminenses: Paraty e Angra dos Reis, sendo com este por um pequeno trecho, em torno de um quilômetro, pelo rio Mambucaba, como citado no excerto supra selecionado.

Referências:
IMPERIO DO BRASIL. Collecção das Leis do Imperio do Brasil. Parte II. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1873. Disponível em: < https://bd.camara.leg.br colleccao_leis_1833_parte2 >. Acesso em mai. 2022.
SÃO PAULO (Estado) / Instituto Geográfico e Cartográfico (IGC). Municípios do Estado de São Paulo: criação e divisas. São Paulo: IGC, 2010.

O velho sobrado e o Duque de Caxias

Lenda ou fato? O patrono do Exército visitou mesmo Cunha? Podemos confiar na tradição oral dos cunhenses?

Datado da primeira metade do século XIX, provavelmente da década de 1830 (VELOSO, 2014, p. 56), período em que Cunha se beneficiou do desenvolvimento regional proporcionado pelo café, o sobrado da Praça Coronel João Olympio, número 52, esquina com a Rua Dom Lino,oficialmente “Casarão Osmar Felipe”, “é a construção particular mais imponente da cidade, com sacadas ornamentadas com abacaxis de ferro e entalhes na porta principal e janelas. Construído em taipa, na primeira metade do século dezenove, consta que nele se hospedou Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, em 1842, quando veio à Província para sufocar a insurreição liberal. É hoje a sede da Prefeitura Municipal, do Centro de Cultura e Tradição de Cunha e do Museu Municipal Francisco Veloso.” (IEV, 1993).Na época do inventário do Instituto de Estudos Valeparaibanos (IEV), ainda era propriedade particular, pertencia à professora Dalva Raquel Coelho Nascimento, alugado à Prefeitura de Cunha. É vestígio da fastuosa civilização do café, que cobriu o vale de rubiáceas e riquezas, em meados do século XIX (VELOSO, 1995, p. 28). Essa riqueza, conforme apontou o historiador Francisco Sodero de Toledo (1977), se refletiu no crescimento das cidades e nos melhoramentos urbanos, em escala regional. O crescimento econômico do setor rural incrementava a urbanização, além do mais, as cidades, outrora ocupando um papel secundário, passam a ser o centro da vida política, devido à ação centralizadora do Segundo Reinado, a partir de 1840. Assim, a volumetria e os requintes arquitetônicos dos casarões e sobrados urbanos passaram a ser uma forma dos fazendeiros e líderes políticos locais expressar seu poder político e econômico (MAIA & MAIA, 1977; HERRMANN, 1948), a chamada “arquitetura do café”, além das já conhecidas insígnias: quantidade de escravos, extensão das propriedades, tamanho da sede da fazenda etc. Em prefácio para a obra “Vale do Paraíba: velhas cidades”, o acadêmico Mário Guimarães Ferri (1977, p. 3), resume bem as consequências do enriquecimento regional: “O café originou, no Vale do Paraíba, a aristocracia ‘dos Barões do Café’. ‘Com o café muita coisa mudou’. As casas de morada transferiram-se das fazendas para as cidades. As igrejas foram aformoseadas e as festas religiosas adquiriram maiores requintes; muitos hábitos franceses foram importados; construíram-se santas casas e teatros. Palácio e palacetes abrigaram famílias patriarcais. (…)”. Símbolo de ostentação econômica e política das elites agrárias do passado, há na arquitetura urbana do período uma ânsia para parecer mais importante do é, sobretudo aos olhos dos visitantes, fazendo das vilas e cidades vitrines, muitas vezes bravateando uma glória que não tinham. Não passou desapercebida aos olhos do jornalista viajante Emilio Zaluar (1976, p. 50) essa forma peculiar de demonstrar grandeza no Vale do Paraíba: “Todas as cidades e vilas querem ser cortes, ainda que seus habitantes só tenham por ponto de reunião a casa onde se joga o dominó, e todas as portas se fechem antes do toque de recolher!”. Desse modo, o embelezamento urbano por que passa a então recente cidade de Cunha, elevada a essa categoria em 20 de abril de 1858, era uma forma da elite local, escravocrata, com riqueza advinda de saciar o mercado regional com cereais e toucinho e do trânsito das tropas por cá, demonstrar o seu poder econômico e político.

Desenho de Tom Maia, realçando os traços arquitetônicos do Sobrado, razão pela qual se sobressai entre os demais casarões e sobrados da cidade de Cunha. Data: 1976. Fonte: Inventário do IEV, 1993.

Muitos casarões de Cunha não resistiram ao tempo: ruíram-se ou foram demolidos. Por isso, nossos olhares se voltam para o sobrado da praça Coronel João Olympio, um dos poucos que restaram e que nos remetem ao passado imperial de Cunha. Sua importância histórica e pedagógica, com o passar do tempo, ganha relevo, pois “suas paredes abrigaram, nesses já quase duzentos anos de existência, além das famílias que nele residiram: Fórum, Coletoria, agência da Caixa Econômica, Prefeitura, Câmara Municipal, Delegacia de Polícia e Museu. Funcionaram nele ainda clube recreativo e pensão” (SANTOS; VELOSO, 2019). Atualmente encontra-se fechado para reformas (alegação oficial). Como não há reforma alguma por lá, jaz abandonado. Trata-se da construção particular mais importante da cidade, com sacadas ornamentadas com abacaxis de ferro e entalhes na porta principal e janelas (IEV, 1993). Construção de taipa de pilão, técnica de construção civil proscrita. Atualmente, pertence à Prefeitura e foi denominado “Casarão Osmar Felipe”, homenagem ao ex-prefeito de Cunha de vários mandatos. Depois de muito tempo abandonado, foi reformado e chegou a sediar a Prefeitura de Cunha por um brevíssimo período (entre 2010-2011), mas logo apresentou infiltrações e problemas em sua estrutura e foi fechado novamente. E assim permanece até hoje.

No mesmo texto, o professor Victor ressalta um importante fato, que os cunhenses mais antigos sempre comentam, quando se referem ao sobrado: “Em 1842, veio o Duque de Caxias do Rio de Janeiro, via Paraty, com a finalidade de apaziguar revoltas liberais em Sorocaba e em Silveiras. Esse fato histórico é o mais importante ligado a esse prédio, por conta do pernoite do Patrono do Exército em Cunha, abrigado sob o teto desse patrimônio arquitetônico.” Entretanto, por ser uma informação repassada pela tradição oral, alguns suspeitavam ser uma lenda. O próprio professor João Veloso me disse certa vez que não era possível confirmar a veracidade desse relato oral, muito embora, por sua consistência e persistência entre os mais antigos, não tivesse a história característica de um “causo” ou coisa fictícia.  

Desenho de Tom Maia. Entrada do Sobrado da Praça Coronel João Olympio. Destaque para os detalhes da porta e sacadas. Data: 1976. Fonte: Inventário do IEV, de 1993.

Mas novos documentos e relatos vêm surgindo, trazendo a lume situações e lembranças que ajudam a elucidar se o pernoite de fato houve ou se foi fruto da imaginação de alguém. O Arquivo Público do Estado de São Paulo divulgou em sua página no Facebook, em 7 de maio de 2020, um ofício de informação de campanha militar, redigido por Luís Alves de Lima e Silva, barão de Caxias (futuro duque de Caxias), quando estava na Vila de Guaratinguetá, datado de 20/07/1842, endereçado a José da Costa Carvalho (Barão de Monte Alegre), presidente da Província de São Paulo na época, por meio do qual informa que partirá no mesmo dia para a Vila de Paraty, tendo em vista que o movimento liberal já havia sido sufocado em Silveiras e que tinha recebido ordem de regresso à Corte, pelo Governo Imperial. Também informa que deslocou um batalhão para a Província de Minas Gerais, onde a revolta resistia nas vilas de Aiuruoca e São João del-Rei, conforme transcrição (APESP, 2019): “Hoje parto para a Villa de Parati, e logo depois seguirei para a Côrte em virtude das ordens que recebi do Governo Imperial: e no momento em que vou deixar o territorio d’esta Provincia tenho o praser de assegurar a Vossa Excelência á vista das ultimas participações recebidas dos Commandantes de Forças em operaçoẽs no Norte d’esta Provincia, que os ultimos grupos de rebeldes armados forão destroçados na Freguesia dos Silveiras, e suas immediações; e que portanto está pacificada esta Provincia, restando unicamente agora que as auctoridades locáes com prudencia e energia completem esse grande triumpho que obtive, com a poderosa e prompta coadjuvação que me prestou Vossa Excelência.” Considerando que o caminho entre as vilas de Guaratinguetá e Paraty não podia ser feito sem passar pela Vila Cunha, não há dúvida que o futuro Duque de Caxias passou por aqui. Veio pelo antigo caminho aberto pelo capitão Domingos Velho Cabral e depois seguiu pelo Peabiru, aberto pelos Guaianás, que ligava o planalto ao litoral de Paraty, por onde houve a penetração colonizadora pioneira dos portugueses na região.

O “Casarão Osmar Felipe“, em foto capturada no dia 11 ago. 2019, por Jacuhy.

Sobre o caminho Guaratinguetá-Cunha, hoje Rodovia Paulo Virginio (SP-171), é importante tecer alguns comentários. Foi aberto pelo capitão Domingos Velho Cabral, morador da Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá, recebeu ainda sesmarias nas terras do Facão, no final do século XVII. Sobre esse antigo sesmeiro, diz o genealogista Helvécio Coelho (2001, p. 214): “Antes de 1650, foi o ‘descobridor’ de um caminho para o mar ‘com excessivo trabalho’ e obteve uma sesmaria principiando do ribeiro ‘Jacuimiri’, nas bordas das primeiras campinas, com uma légua de testada, meia légua para cada lado do dito caminho, correndo o sertão até a Boa Vista pelo caminho, ao rumo do mar.” Sobre o percurso, relata Oracy Nogueira (1992, p. 67), que de Guaratinguetá a Cunha se levava, no ano de 1.878, 2 dias de viagem, com um pernoite em bairros intermediários (Rocinha, Cedro ou Paraitinga). De Cunha a Paraty, talvez mais 2 dias, já que Cunha está exatamente no meio do caminho entre Guaratinguetá e Paraty. Ainda que a pressa, muitas vezes imposta por necessidades militares, tenha encurtado esse tempo, é improvável demais, pela dificuldade que impõe o terreno montanhoso, que o pernoite em Cunha não tenha acontecido. Convém ressaltar, a título de esclarecimento, que a atual Rodovia SP-171 não segue integralmente o traçado do caminho antigo, aberto pelo capitão Domingos Velho Cabral.

O sobrado, em foto de 1965, quando era pensão familiar. Foto: R. W. Shirley. Acervo do Museu Municipal de Cunha.

Voltando ao trajeto do Duque, o coronel Daróz (2014) informa que Caxias partiu para Corte em 23 de julho, certamente pelo porto de Paraty. Desse modo, é presumível que o futuro Duque de Caxias tenha pernoitado em Cunha, quando regressava para a cidade do Rio. É deveras impensável que uma autoridade imperial, ao deparar-se com uma vila, tenha recusado o conforto de uma casa coberta, com cama, janta e convivas, para dormir ao relento, junto aos seus soldados, após campanha militar vitoriosa. E como era costume naquele tempo, quando uma autoridade visitava uma vila, preparavam-lhe as melhores acomodações, na melhor casa da cidade. E havia casarão melhor e mais belo em Cunha naquele tempo, do que o da praça Coronel João Olympio, que até hoje nos enche os olhos? Era uma honra para um proprietário acomodar em sua casa os nobres do Império. E poderia ser vantajoso também, fazendo-lhe uma solicitação nas alcovas: algum favor, algum cargo público para um parente… Aliás, receber bem e com festança autoridades eclesiásticas, políticas e militares era hábito das vilas e cidades do Vale de antigamente. Narrando experiência similar na Vila de Pindamonhangaba, Motta Sobrinho (1967, p. 100) ressalta que a vila – no dia de visita de “gente graúda” – tinha a seguinte atmosfera: “(…) o ambiente era festivo e adrede preparado: arcos floridos, bandeiras, flâmulas, foguetórios. (…)”. Cunha, dada a competição atávica entre vilas e cidades que havia na região, não fez por menos à visita do ilustre comandante.

Corrobora a ocorrência do pernoite o depoimento da senhora Maria Amelia Calazans que, ao completar cem anos de idade, recebeu destaque na coluna social do jornal “O Estado de S. Paulo”, em 24 de abril de 1936. Residindo na Fazenda da Barra, no município de Paraibuna, neste estado, D. Maria Amelia rememorou os fatos mais importantes de sua longeva vida. Nascida em 24 de abril de 1836, na cidade de Cunha, foi batizada na Igreja Matriz desta cidade pelo cônego Manuel Rodrigues da Silva. Era filha de Antonio Moreira da Silva e Rita Constancia do Espírito Santo Moreira. Casou-se na mesma Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em 1859, com José Calazans, mudando-se para Paraibuna desde então, onde, junto com seu esposo, adquiriu a Fazenda da Barra. Entre os fatos históricos vivenciados por ela, é relatado: “Conheceu o barão de Caxias, que foi hospedado por sua mãe, em Cunha, quando o illustre general veio a São Paulo apaziguar a revolta de 1842. E rememora até hoje esse facto historiando com todos os pormenores a chegada de Caxias a então florescente cidade de Cunha.” (O ESTADO DE S. PAULO, p. 2, 1936). Infelizmente, dada a exiguidade das notas sociais, os pormenores da estadia do Duque em Cunha não são dados. Uma pena. Todavia, essa nota vem confirmar de forma definitiva o pernoite do Duque de Caxias em Cunha. Não é lenda e nem “causo”. O patrono do Exército Brasileiro dormiu mesmo no velho sobrado.

O Barão de Caxias, circa 1841, em desenho de François-René Moreaux. Fonte: Wikimedia Commons.

O pernoite ficou na História e na memória dos cunhenses. Formalidades como essa, por serem raras, não podiam “passar em branco” nas pequenas vilas do Império. A Câmara de Cunha deve ter preparado uma festa e agitado a pacata vila serrana. Discursos, saudações, repique de sinos na Matriz, missa, pessoas curiosas na rua, olhando ressabiadas os soldados que acompanhavam a comitiva militar do ainda Barão… O isolamento trazia ar de novidade a coisas banais, bastava que destoassem da realidade cotidiana. E convivas, claro. Mas para a elite, para os políticos. A única parte que difere a tradição oral nos repassada dos documentos oficiais é a direção tomada pelo chefe militar. Os documentos oficiais relatam que o Barão chegou à Província de São Paulo pelo mar, via porto de Santos, onde alcançou o planalto de Piratininga e, posteriormente, Sorocaba. E no ofício mencionado, consta textualmente que ele estava de retorno à Corte, após obter sucesso na campanha militar, quando pernoitou na Vila de Cunha. Portanto, ele não passou por aqui quando estava chegando para “pacificar” a Província, mas estava de partida, quando pernoitou. Mero detalhe.

Sobre a Revolta Liberal, tratava-se mais uma briga entre os dois principais grupos políticos do Segundo Reinado: os conservadores e os liberais. Nas eleições legislativas de 1840, os políticos liberais pagaram capangas para espancar adversários, roubar urnas e modificar resultados. Assim, obtiveram a vitória no pleito. Mas o uso de violência, fizeram essa eleição passar para História como “eleições do cacete” e ganharam um irônico lema: “para os amigos pão, para os inimigos pau”. O Conselho de Ministros, formado na maioria por políticos conservadores, apelou a D. Pedro II que exercesse seu Poder Moderador (uma invenção da Constituição de 1.824, para descaracterizar o sistema tripartite de poder) e anulasse os votos da eleição. Anulada as eleições em 1842, os conservadores novamente retomaram o poder. E os liberais resolveram ir às armas para assegurar o resultado (fraudado). Em S. Paulo, segundo Daróz (2014) “A revolta liberal eclodiu na manhã de 17 de maio de 1842, na cidade paulista de Sorocaba – cuja câmara aprovou, por aclamação, o nome de Tobias de Aguiar como Presidente da Província –, agitação que se estendeu às cidades de Taubaté, Pindamonhangaba, Silveiras e Lorena. Os rebeldes conseguiram também o apoio do padre Diogo Feijó e de Nicolau Vergueiro – senadores e ex-regentes do Império – além da população de algumas vilas, entre elas Itapetininga, Itu, Porto Feliz e Capivari.” A Revolta começou a ganhar contornos separatistas, e o Império agiu rápido, enviando o 2º Regimento de Artilharia e um batalhão de caçadores, sob a liderança do Barão de Caxias, para sufocar o movimento. Coronel Dároz (2014) assinala: “preocupado com a possibilidade de separatismo, o governo imperial adotou medidas para debelar a rebelião e, para tal, designou o Brigadeiro Luís Alves de Lima e Silva, Barão de Caxias, que havia pacificado a Balaiada na província do Maranhão.” Em julho, a Revolta foi sufocada em São Paulo. Em Minas Gerais, duraria até agosto. Dom Pedro II, com sua política de apaziguamento de ânimos, concedeu, em 14 de março de 1844, anistia aos envolvidos. Um ministério liberal foi constituído neste ano. Para Caxias, a vitória resultou em promoção a Marechal-de-Campo.

O “Casarão Osmar Felipe” em 1993, então sede da Prefeitura de Cunha. Foto: Prefeitura Municipal de Cunha.

Com quase 200 anos, o casarão resiste no centro de Cunha. É tombado tanto pelo COMPHACC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Cunha), órgão municipal, através do Decreto Municipal nº. 014/2008, de 18 de abril de 2008 (Rerratificado pelo Decreto Municipal nº. 046/2009), que o colocou no primeiro grupo de proteção: “GP1 – Proteção integral das fachadas, volumetria e interior da edificação”; quanto pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), conforme Resolução SC-12, de 26-2-2018, que “dispõe sobre o tombamento de conjunto de imóveis localizados no município de Cunha”. Uma testemunha ocular das coisas acontecidas e findas, parafraseando os dizeres do historiador Paulo Prado, “última testemunha presente das lutas, ambições e glórias do passado.”.Mas até quando? O professor Victor, sempre dedicado às causas mais nobres e culturais desta terra, já fez o alerta: “Urge, desse modo, que todo o empenho e todas as ações possíveis para sua preservação sejam buscados e conquistados, para que a História, a Cultura e a Memória continuem a se fazer presentes e vivas no centro histórico da Estância Climática e Turística de Cunha – SP, visto que, se soubermos de onde viemos, saberemos para onde vamos.”.

Desejoso que essas ações sejam iniciadas o quanto antes, espero ver esse patrimônio restaurado em breve. E funcionando. Quantos equipamentos culturais não podem ser instalados ali? Do contrário, se o abandono persistir, só nos restará compartilhar do mesmo lamento e indignação de Cora Coralina, ao ver as ruínas de um sobrado em sua Goiás Velho:

“(…) Fechado. Largado.
O velho sobrado colonial
de cinco sacadas,
de ferro forjado,
cede.
Bem que podia ser conservado,
bem que devia ser retocado,
tão alto, tão nobre-senhorial.
(…)
Quem se lembra?
Quem se esquece?
(…)”

Não esqueci e não vou deixar que esqueçam. Queremos o sobrado de pé. E aberto a todos.

Referências:
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO (APESP), Fundo José da Costa Carvalho. Notação [BR SPAPESP JCC 125.1.1.14]. Ofício de informação de campanha militar enviado por Luís Alves de Lima e Silva, barão de Caxias (duque de Caxias) a José da Costa Carvalho, barão de Monte Alegre e presidente da província de São Paulo, comunicando sua partida para a vila de Parati e, em seguida para a Côrte, em virtude de ordens recebidas do Governo Imperial; relata a pacificação da província e a partida do 1º Batalhão Provisório de 1ª linha para abater os rebeldes de Minas e ocupar São João Del Rey, remete a Ordem do Dia de despedida do exército Pacificador. Guaratinguetá, 20/07/1842. Disponível em: < https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=3063377987034356&id=182206948484822&__tn__=-R >. Acesso em: 7 mai. 2020.
COELHO, Helvécio V. C. Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá. Revista da ASBRAP, n. 8., 2001, p. 209-216. Disponível em: < http://www.asbrap.org.br/documentos/revistas/rev8_art10.pdf >, acesso em 9 mai. 2020.
CORA CORALINA. Velho Sobrado (poema). Disponível em: < https://www.escritas.org/pt/t/5489/velho-sobrado >, acesso em 9 mai. 2020.
CUNHA (Município). Decreto Municipal n.º 14/2008, de 18 de abril de 2008. Cunha (SP): Prefeitura Municipal de Cunha, 2008.
DARÓZ, Carlos R. C. As revoltas liberais de 1842: o Império consolidado. Revista Militar, n. 2549/2550, jun./jul., 2014.
HERRMANN, Lucila. Evolução da Estrutura Social de Guaratinguetá num Período de Trezentos Anos. Revista de Administração, Ano II, Números 5 – 6, mar. / jun., 1948, p. 3 – 326.
INSTITUTO DE ESTUDOS VALEPARAIBANOS (IEV). Cunha – Sobrado: Sede da Prefeitura Municipal, do Centro de Cultura e Tradição de Cunha e do Museu Municipal Francisco Veloso. (Inventário). Guaratinguetá (SP), 1993.
MAIA, Tom; MAIA, Theresa R. C. Vale do Paraíba: velhas cidades. São Paulo: Companhia Editora Nacional / Editora da Universidade de São Paulo, 1977.
MOTTA SOBRINHO, Alves. A civilização do café (1820-1920). 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1967.
NOGUEIRA, Oracy. Negro Político, Político Negro: a vida do Dr. Alfredo Casemiro da Rocha, parlamentar da “República Velha”. São Paulo: Edusp, 1992.
O ESTADO DE S. PAULO. Sociedade. Ano LXII, n. 20.408, p. 2, ed. de 24 abr. 1936. Disponível em: < https://acervo.estadao.com.br/publicados/1936/04/24/g/19360424-20408-nac-0002-999-2-not-agwqhqg.jpg >. Acesso em: 23 de abr. de 2022.
PRADO, Paulo. Paulística: história de São Paulo. 2. ed. Rio de Janeiro: Ariel, 1934.
SANTOS, Victor A. dos; VELOSO, João J. de O. Sobrado da Prefeitura de Cunha-SP. Data: 16 de maio de 2019. Disponível em: < https://www.facebook.com/victor.amatodossantos/posts/2184695021567318 >, acesso em 9 mai. 2020.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Cultura. Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT). Conjunto de Imóveis – Categoria: Conjuntos e Sítios Urbanos – Município: Cunha. Resolução de Tombamento: Resolução 12, de 26/02/18. Número do Processo: 33706/95. Livro do Tombo Histórico: inscrição nº 485, p. 152 a 153. Publicação do Diário Oficial: Poder Executivo I, 27/02/18, p. 30. Disponível em: < http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/conjunto-de-imoveis/ >. Acesso em: 23 abr. 2022.
TOLEDO, Francisco S. Economia cafeeira e aspectos urbanos (1850-1875). Revista da Faculdade Salesiana. Ano XVIII, n.º 26/27, Lorena (SP), 1977, p. 94-108.
VELOSO, João J. de O. O ambiente natural cunhense. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 1995.
______. A História de Zina: a saga de uma família da zona rural cunhense. São José dos Campos (SP): Mirian Gráfica e Editora, 2014.
ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação pela Província de S. Paulo (1860-1861). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1976.

Maior acidente rodoviário de Cunha

Imagem da série “Hoje na História de Cunha”, da página “Jacuhy“, no Facebook.

Um ano chuvoso

1958, “o ano que não devia acabar”, foi muito chuvoso. Diluvial. A Estrada Cunha-Paraty não era pavimentada, nem em seu trecho paulista muito menos no fluminense, “novela” que se encerrou há poucos anos. Nem a Cunha-Guará (SP-171) ainda era asfaltada. Na época das águas, era tudo lama. Quem viveu esse tempo – que não foi meu – e está vivo para contar deve lembrar. Viajar para Cunha no verão era uma aventura. E das bem perigosas. Nem o Fusca dava jeito. Aliás, com peças importadas da Alemanha, o Fusca ainda era “Volks”. Não era popular e nem carro de pobre. Sim, o “besourinho” já foi carro de rico, daqueles que a playboyzada desfilava na Rua Augusta. Um acinte. Como uma obra de arte da indústria automobilística pode ser pilotado por gente tão cafona? Se fosse o New Beetle, dava para entender… Nem mesmo o fato de ter sido um carro feito especialmente para a Alemanha Nazi justifica. O fusquinha foi a única coisa decente que saiu de lá. A única. Até nisso o Fusca é exclusivo.

Mas essa não é uma história sobre o Fusca. É sobre um micro-ônibus lotado. E é uma tragédia. O maior acidente rodoviário que ocorreu em nossas estradas. O fato vai se apagando na memória, mas a nossa missão é não deixar esquecer. Tem histórias bonitas e tem as tragédias, no fim tudo é história. Quem já viu a cruz de pedrinhas do Morro Grande? Se não viu, é porque o DER não está roçando a margem da rodovia. Mas está lá. “Lugar assombrado”, diziam. “Morreu muita gente”, alertavam. Pelo menos era assombrado quando se passava a pé e a à noite por ali, quando a Cunha-Paraty era uma estrada fantasma. Hoje, com o vai-e-vem de carros, de mineiros e farofeiros invadindo Paraty, não sei se ali há almas penadas, sempre afoitas a barulho e luzes. Depois da meia-noite qualquer lugar é assombrado. Até o quarto da gente.

A poça de água

Jardineira da empresa Santa Teresinha, que fazia a linha Guaratinguetá-Cunha, transitando pela SP-171 antes de ser pavimentada. Foto: Charles Machado. Década de 1950.

O acidente ocorreu na manhã do dia 10 de fevereiro de 1958, no Morro Grande, local hoje assinalado por uma cruz, onde recentemente o D. E. R. realizou uma obra de contenção no talude da margem superior. O micro-ônibus (ou melhor, a jardineira) da empresa Santa Teresinha, que perfazia o itinerário Guaratinguetá-Paraty, despencou ribanceira abaixo, com 200 metros de abismo. Sete pessoas morreram e 25 ficaram feridas. Do veículo restou apenas a lataria. A carroceria desapareceu, a capota ficou a 100 metros para trás e o assoalho ficou preso ao chassi. Pelo morro abaixo, os pertences dos passageiros se espalharam, misturando-se com os cacos de vidro, sangue, malas reviradas, trapos de roupas e lama. Muita lama. Uma cena desoladora.

O motorista ao tentar desviar o micro-ônibus lotado de uma poça de água na estrada (estava chovendo muito na região e a estrada estava um lamaçal), deu forte guinada na direção. Com o movimento, o micro-ônibus bateu em uma cerca, ficando após o choque o veículo sem direção, não obedecendo ao volante. Daí segui desgovernado em direção ao precipício. Perceberam os passageiros e o motorista o que ia ocorrer e entraram em desespero. Saltou então motorista e cobrador para fora e apenas mais 2 passageiros tiveram a mesma sorte a tempo. O micro-ônibus rolou pelo acentuado declive, deixando passageiros na queda. O resgate chegou logo, mas foi difícil tirar os feridos e mortos do local, devido ao terreno escorregadio.

Ainda sobre o que motivou a queda, há uma versão diferente, apresentada ao professor Victor Amato dos Santos por seu primo Zezito Freire (José Carlos de Oliveira Freire). Zezito faleceu em dezembro de 2020, com 98 anos de idade, de Covid-19. De “lucidez invejável até o fim”, relatou por e-mail, em 27 de janeiro de 2014, o seguinte: “dentre os mortos naquele acidente [o que estamos tratando agora], o único que aconteceu, foram meus tios Jesuíno Rubem e Miloca- Emília Freire Rubem – irmã de meu pai. Tio Zezinho (assim era conhecido) casou-se e foi morar em São Luiz. Depois voltou a Paraty trazendo dois filhos. Era um bom mestre de música e último maestro que tivemos foi aluno dele. Aposentou-se e viajou com a mulher para rever a terra de sua saudade. Faleceu quando o chofer dormiu e deixou o ônibus tombar do alto do morro, já chegando a Cunha. Hoje, aqui, só existem netos dele. Os filhos homens faleceram, uma das filhas também e as outras (três) Yeda, Sildete e Nolia Vita não moram aqui.” (grifo nosso). Porém, outros motivos foram levantados na época.

A própria superlotação do coletivo não deixou de ser considerada como provável causa do acidente. No micro-ônibus estavam 34 passageiros (6 deles crianças), além do motorista e cobrador. O correspondente do “Estadão” não deixa de anotar que, embora as causas do “desastre” estivessem sendo apuradas pelo corpo técnico da Polícia Civil, era “opinião generalizada que a precariedade dos carros que a empresa [Santa Teresinha] põe a serviço da linha Cunha-Parati foi o motivo principal da lamentável ocorrência”. Obviamente, a causa maior era considerada, naquele momento, a quebra do eixo de direção, após a batida em uma cerca. Certamente, o estado do micro-ônibus não era dos melhores. O motorista foi considerado covarde e insensível ao saltar primeiro e deixar os passageiros (muitos eram mulheres e crianças) dentro do veículo, para tombar na pirambeira. Isso despertou a ira dos cunhenses.

Mortos e feridos

Morreram na hora 5 pessoas: Jesuino Castro Rubem e sua esposa Emilia Freire Rubem, Miguel Alves Moreira e Alcidio José Santana. Todos de Paraty (RJ). E João Ambrosio Mota, sitiante cunhense. Duas vítimas viriam a morrer no hospital, devido à gravidade dos ferimentos. Elas não foram identificadas nominalmente pelas reportagens. Vinte e cinco passageiros ficaram feridos, sendo 4 deles crianças. Foram todos transferidos para Santa Casa de Cunha, recém-inaugurada. Alguns em estado mais grave foram logo retransferidos para Guaratinguetá. Outros estavam mais em estado de choque do que feridos. Em Guaratinguetá, no dia 11, os feridos menos graves foram removidos para as suas respectivas cidades de origem, pois muitos deles eram do Rio de Janeiro e de outras cidades do Vale do Paraíba.

Escaparam ilesos o motorista Sinezio Aleixo, o cobrador Jeronimo Cruz e mais dois passageiros, que, quebrando o vidro de uma das janelas, saltaram do veículo antes que ele tombasse ribanceira abaixo. Ou saíram pela porta mesmo? Há versões desencontradas desse detalhe.

Em meio a tantas tristezas e lutos, fato curioso relata o professor e historiador Victor Amato dos Santos à página Jacuhy, através dos “comentários”. Escreve ele: “os dois primeiros mortos dos cinco citados na publicação são o tio Jesuíno Castro Rubem e a tia Miloca (Emília Freire Rubem, irmã do meu bisavô Crisanto Freire). Eles moravam em Paraty. Minha avó Nina Freire, sobrinha deles e prima do Zezito, sempre contava sobre a tristeza daquela situação do acidente. Ela mencionava inclusive sobre uma criança de colo que, não se sabe como, foi lançada para fora do ônibus, na queda pela ribanceira, e achada ilesa no meio do mato. O bebê chorava muito, e, graças a isso, pôde ser encontrado e resgatado.”. Uma das 6 crianças que estavam à bordo. Um milagre em meio ao desastre.

Paraty em luto

Muitas vítimas do acidente eram do município vizinho de Paraty. Naquele tempo, não havia estrada que ligava Paraty à cidade do Rio de Janeiro, a Rodovia Rio-Santos ainda era um sonho. Daí, para chegar na capital fluminense, os paratienses passavam por Cunha e iam até Guaratinguetá, para de lá seguir para o Rio.

Tão logo foram identificadas as vítimas, o prefeito de Cunha Antonio Accácio Cursino pegou o seu carro e se deslocou até Paraty para comunicar as famílias das vítimas do acidente ocorrido. Não havia linha telefônica entre as duas cidades. Nem outro meio de comunicação mais rápido.

No final da tarde chegaram em caravana a Cunha, o prefeito de Paraty, o vigário daquela localidade, os médicos e os veículos para transportar os corpos dos mortos e feridos para a cidade litorânea. Paraty enlutou-se pela tragédia.

Prisão do motorista

O delegado regional de Polícia de Guaratinguetá, dr. Wilson Souza e Silva, prendeu em flagrante o motorista Sinezio Aleixo, que tinha na época 29 anos de idade. A prisão foi mais por cautela do que por convicção, pois os fatos ainda estavam sendo apurados, mas a população de Cunha, comovida e transtornada, queria linchá-lo, culpando-o pelo acidente. Não foi possível apurar se o motorista continuou preso, se foi acusado pelo acidente ou absolvido.

“Era o dia da pessoa”

João Ambrosio, que tinha fazenda no Itacuruçá, tomou o ônibus na entrada da Catioca, menos de um quilômetro aquém do trecho onde ocorreu o acidente. Acabou sendo uma das vítimas fatais, morrendo ainda no local. Seu corpo foi transportado para Guaratinguetá, onde foi sepultado. Um infortúnio.

O batismo de fogo da Santa Casa de Cunha

Avenida Padre Rodolpho e Santa Casa de Cunha. Final da década de 1960. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

A Santa Casa de Misericórdia Nossa Senhora da Conceição, inaugurada em condições insatisfatórias em agosto de 1954, viveu o seu “batismo de fogo”. Sendo o hospital mais próximo, coube a ele atender e acudir os feridos que chegavam com muitas fraturas, traumatismos e perdendo sangue. Sobre esse período da nossa Santa Casa, relata o professor João Veloso (2010, p. 358): “(…) a Santa Casa funcionou precariamente, graças à dedicação exclusiva das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, que não mediram sacrifícios ante as condições sofríveis da época, além da ajuda benfazeja de alguns cunhenses (…) permaneceu, segundo informações, sem água nem luz, um curto período de tempo [1954-1959] (…) época de muita dificuldade para a recém-inaugurada Santa Casa, o que refletia no próprio atendimento à população”.

A despeito de todas essas adversidades e precariedades, a Santa Casa não “negou fogo”. Seu corpo de médicos, enfermeiras e freiras salvaram e trataram muitos feridos. Havia apenas dois médicos em Cunha: dr. Fued Serafim e dr. Daher Pedro. E quando começou a chegar os feridos, mesmo sem recursos, atuaram com perícia, amenizando o sofrimento de uns e evitando a morte de outros.

Recebeu a Santa Casa remédios da cidade de Aparecida e um balão de oxigênio de Guaratinguetá. E alguns enfermeiros também foram enviados.

Contou a Santa Casa, como sempre, com o espírito solidário e cristão dos cunhenses, que vendo a gravidade da situação e a falta de pessoal do hospital, escalaram o Alto do Cruzeiro para prestar socorro, doar sangue e acudir os feridos que chegavam. Tal ato não passou desapercebido do correspondente enviado pelo jornal “Estadão”, que faz questão de anotar na reportagem: “Tiveram dolorosas repercussões as consequencias desse lamentavel desastre. O comercio e as repartições publicas cerraram suas portas. E a população da cidade, num belo gesto de solidariedade humana, acorreu ao local do desastre e à Santa Casa local, procurando todos, cada um a seu modo, prestar aos feridos o auxilio que fôsse possível.”. Cunha, mesmo ante à tragédia, sendo Cunha.

Consequências

A linha de ônibus de Guaratinguetá a Paraty foi suspensa após o acidente. Ônibus só voltou a circular pelo trajeto em agosto de 1958, quando a concessão da empresa Santa Teresinha foi retirada e repassada à Empresa Rodoviária São José, da família Abdalla, que colocou veículos novos para fazer a linha e enfrentar a precariedade das estradas de Cunha.

O trauma foi grande para a população local. Além da situação decrépita dos veículos de transporte coletivo que serviam aos munícipes, ficou evidente o perigo que as péssimas condições das enlameadas e alcantiladas estradas de Cunha ofereciam aos transeuntes. Por ser um risco real à vida de muitos, a necessidade de asfaltar os acessos a Cunha entrou na pauta política local. Em 1967, foi asfaltada a Rodovia Paulo Virgínio (SP-171), que interliga Cunha a Guaratinguetá. Em 1986, no governo de Franco Montoro, foram asfaltados mais 22 quilômetros de estrada (SP-171, Rodovia Vice-Prefeito Salvador Pacetti), da cidade de Cunha até a divisa com o estado do Rio de Janeiro. O trecho que faltava pavimentar para ligar a SP-171 à Estrada Parque Comendador Antonio Conti (RJ-165) foi concretizado apenas em 2016, uma obra milionária e demorada, feita pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, finalizada após longa novela de embargos e judicializações, na qual coube ao Ministério Público Federal o papel de vilão, incensando teses e argumentações ambientalistas irracionais e, por conseguinte, radicais. Uma estrada do século XVIII, a Real, que corta um Parque Nacional, o da Bocaina, criado em 1977, como compensação ambiental para o Complexo Nuclear de Angra dos Reis. Hoje vital para o turismo de Cunha, todavia não menos perigosa.

Fontes:
COM 27 passageiros, o micro-onibus desgovernado rolou pela ribanceira. Folha da Manhã. p. 11, 11 fev. 1958.
DIMINUIU o eleitorado de Cunha. O Estado de S. Paulo, p. 13, 6 ago. 1958.
GRAVE desastre de onibus em Cunha. O Estado de S. Paulo, p. 15, 12 fev. 1958.
NOTAS policiais. Folha da Manhã. p. 6, 12 fev. 1958.
Relato de Victor Amato dos Santos (músico, professor e historiador cunhense).
Relato de Zezito Freire (José Carlos de Oliveira Freire), enviado à página por Victor Amato dos Santos (a quem agradecemos a constante contribuição com o Jacuhy).
VELOSO, J. J. de O. A História de Cunha (1600-2010). Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2010.

Há 61 anos, Paço Municipal de Cunha era incendiado por detentos

O que sobrou do Paço Municipal, que abrigava a Prefeitura, Câmara, Fórum e Cadeia, após o incêndio. Data: 1961. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

Na madrugada (às 3h da manhã) do dia 5 de janeiro de 1961, a população da cidade de Cunha acordou atônita. O Paço Municipal, velho sobrado, que abrigava a Prefeitura, a Câmara, Fórum e Cadeia Pública, ardia em chamas e as labaredas iluminavam a pequena urbe, posto que o sobrado ficava em sua parte mais alta, em desolador espetáculo.

A construção do edifício começou no ano de 1785, após a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão alcançar a sua autonomia política e administrativa da Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá, passando a denominar-se com a mudança de status Vila de Nossa da Conceição de Cunha. Portanto, o sobrado era símbolo e marco dessa efeméride histórica.

Fachada do sobrado antes do incêndio: brasão da República no frontispício (embora tenha sido construído na época colonial) e as celas da Cadeia Pública no térreo. Data: Década de 1940. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

Além de seu caráter simbólico, o sobrado guardava em seus arquivos “todos os documentos municipais relativos ao executivo e legislativo, arquivos antigos preciosos sobre a instalação da Câmara, em 1786, e dados importantes concernentes à Revolução de 1932 […]” (VELOSO, 2014, p. 74). Assim, quase duzentos anos de história virou cinzas em minutos, destruindo todas as fontes documentais oficiais do município, algumas do século XVIII, documentos que poderiam elucidar pontos nebulosos do passado de Cunha.

Deve-se ainda ressaltar a importância arquitetônica desse sobrado histórico, conjunção harmônica e elegante de madeiras-de-lei e grossas, rústicas paredes de taipa de pilão, primor da técnica colonial. Imponente, favorecido pela topografia do Alto do Cruzeiro, situava-se onde hoje é a Delegacia da Polícia Civil. De suas janelas coloniais havia uma vista completa do burgo, do rocio e das serranias que nos cercam.

Causa do incêndio

Foi um ato criminoso, conforme sempre fazia questão de preconizar o professor João VELOSO (2010, p. 278). Dois detentos da Cadeia Pública de Cunha, que dividiam a mesma cela, atearam fogo em um colchão e mantiveram-no próximo ao forro até que a madeira velha ficasse incandescente. Desse modo o fogo se alastrou pelo madeiramento, consumindo com rapidez o material inflamável que compunha o sobrado.

A real motivação que levou os incendiários a destruir um patrimônio cunhense deu origem a muitos rumores. Seria um protesto contra a insalubridade da cela? Vingança contra uma reprimenda que receberam de um policial da Força Pública? Ou obra encomendada por políticos locais, com o intuito de se livrar das provas contra os seus delitos? Muito foi especulado sobre a motivação do incêndio do sobrado, mas nada foi provado. Os dois presos foram responsabilizados e pagaram a pena.

Vista lateral do que sobrou do sobrado, antes de sua demolição. Data: 1961. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

Os detentos

Assim que o fogo se alastrou, os dois presos que causaram o incêndio (um deles tinha a alcunha de “Gabiru”) gritaram por socorro e foram retirados de lá, ficando alojados em uma casa vizinha. Ao todo eram quinze homens. Foram algemados e amarrados e no mesmo dia foram transferidos para Cadeia Pública de Guaratinguetá.

Aglomeração

O clarão do incêndio assustava e chamava a atenção da população, que acorria para a Praça Prudente Guimarães para ver o que se sucedia. Uma multidão tomou a praça e acompanha ao longe o fogaréu cuspir ao céu. Havia naquelas pessoas certa perplexidade ante ao que viam em sua frente e certa impotência, pois nada podiam fazer para impedir a destruição do sobrado colonial.

Entre tantos que ali se aglomeraram, alguns, cônscios da documentação valiosa que estava virando fumaça, tentaram, em vão, entrar no sobrado para salvá-la, retirando-as das chamas. Foram impedidos por um policial militar que, com arma em punho, parado ao final da escada que dava acesso ao piso superior, impediu que os corajosos munícipes tivessem à repartição da Prefeitura, posicionando-se à frente da porta. Em tal ato de bravura, tentava ele impedir que essas pessoas insensatas fossem feridas ou queimadas? Ou queria assegurar que os documentos ali arquivados fossem incinerados?

Perplexa com o que via e impotente diante da lenta destruição, logo a multidão sentiu a ausência de seu alcaide e começou a murmurar: cadê o prefeito de Cunha?

A ação do prefeito

O prefeito Osmar Felipe, já falecido, encontrava-se naquela madrugada em São Paulo, capital. Como em Cunha não havia telefone, o prefeito só foi informado às 9h da manhã, após seu chefe de gabinete deslocar-se até Guaratinguetá para contatá-lo e o pôr a par da situação.

Tomando conhecimento do ocorrido e da gravidade da situação, Osmar Felipe entrou em contato rapidamente com o governador Carvalho Pinto, no Palácio dos Campos Elísios, conseguindo o envio imediato de homens da Polícia Técnica e um contingente do Corpo de Bombeiros, despachados para Cunha por ordem direta do governador, a fim de conter o incêndio do Paço Municipal.

O jornal O Estado de S. Paulo”, 8 jan. 1961, p. 22, noticia o ocorrido em uma matéria recheada de insinuações políticas sobre a motivação do incêndio. Fonte: Acervo Estadão.

Mesmo tendo feito tudo que estava em seu alcance, o ex-prefeito Osmar Felipe foi alvo de muitas críticas e de difamação de sua pessoa e ação, motivada por seus adversários políticos locais. Por conseguinte, diversas “fake news” circularam pelo município, propagadas por seus opositores.

A ação dos bombeiros

Caminhão do Corpo de Bombeiros atolado no Morro do Facão (Morro do Cemitério). O atraso dos bombeiros custou a estrutura do sobrado. Data: 5 jan. 1961. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

O grupo de bombeiros que partira em direção a Cunha, no mesmo dia, para apagar o incêndio, não imaginava que o obstáculo maior era chegar à cidade. A estrada intermunicipal Cunha-Guaratinguetá era de terra batida e mal conservada. O trajeto durava horas.

Como janeiro é um mês chuvoso em nossa região, as estradas de Cunha estavam intransitáveis. Quando o caminhão do Corpo de Bombeiros começou a subir o Morro do Facão (“Morro do Cemitério”, oficialmente Alameda Francisco da Cunha e Meneses) atolou, pois a rua estava tomada pela lama. Após muito patinar e ser empurrado no braço por bombeiros e moradores, quando enfim superou a lama e o morro, já era tarde demais… O fogo, além de reduzir a madeira à brasa, havia causado danos estruturais irreversíveis à secular edificação. Não restou outra alternativa aos bombeiros a não ser demolir o que havia restado do sobrado. Suas grossas paredes de taipa de pilão, pela magnitude, ofereciam risco, caso terminasse de desabar, a moradores, transeuntes e curiosos.

Apesar de terem sido deslocados para Cunha no mesmo dia, os bombeiros chegaram tarde demais. As estradas e ruas de Cunha estavam enlameadas naquele chuvoso janeiro de 1961. Na foto, temos a atual Alameda Francisco da Cunha e Meneses. Data: 5 jan. 1961. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

Nada restou do antigo sobrado.

Consequências

Todas foram ruins para nossa cidade. A começar pela perda de todas as fontes documentais relativas à História de Cunha, provocando uma lacuna enorme nos levantamentos e pesquisas. O professor João VELOSO (2010, p. 278) sempre se queixava da dificuldade que era pesquisar sobre a história local, tendo que se basear em fontes orais ou consultar arquivos, acervos e museus em outros lugares.

A destruição de um patrimônio histórico material de grande valor simbólico para Cunha, serviu como prenúncio do que viria a ocorrer nas décadas seguintes com os outros casarões, que acabaram sendo demolidos por seus proprietários, desconfigurando a paisagem urbana colonial/imperial. Destruições feitas sob o signo de um pretenso progresso vindouro. Que não veio!

A Prefeitura ficou sem sede própria, se instalando de forma provisória no recém-inaugurado Fórum da Comarca de Cunha. E de lá em diante foi mudando de imóvel em imóvel. A atual sede da Prefeitura de Cunha ocupa um imóvel alugado.

Evidenciou a necessidade de conectar Cunha com o restante do mundo, pois sem telefone e estrada transitável, o município ficava isolado dos outros lugares. O asfaltamento da Rodovia Paulo Virgínio (SP-171) viria na mesma década, com a obra sendo entregue pela construtura Serveng, em 1967. Se houvesse linha telefônica interurbana, os bombeiros seriam acionados a tempo de, pelo menos, impedir danos estruturais, possibilitando a reconstrução do edifício futuramente, com suas paredes originais, se houvesse vontade dos gestores municipais, é claro. Ou melhor: Cunha deveria possuir o seu próprio destacamento do Corpo de Bombeiros.

Reconstrução

Em 2020, o então prefeito Rolien Guarda Garcia anunciou em sua rede social que pretendia reconstruir o sobrado incendiado, mantendo a fachada original. Informou que o Governo Estadual havia cedido o prédio da atual Delegacia de Polícia de Cunha à Prefeitura e que havia dinheiro em caixa para realizar tal empreendimento.

Delegacia de Polícia de Cunha, na Praça Dr. Prudente Guimarães. No local, até 1961, ficava o antigo sobrado histórico. Data: 2019.

Apesar do inegável embelezamento paisagístico que traria à cidade, o sobrado que se ergueria seria um simulacro. Reconstruído em alvenaria (provavelmente), sem seguir a volumetria e distribuição das divisões internas do sobrado original, uma obra assim, além de cara, nada acrescentaria ao patrimônio histórico de Cunha, porque o antigo, que era o que importava, nem a poeira sobrou.

Vantagem maior faria a Prefeitura se gastasse os recursos públicos nos casarões que ainda restam. Inclusive naquele que é propriedade da Municipalidade, o “Casarão Osmar Felipe”, situado na Praça Coronel João Olímpio. Ali poderia ser o Paço Municipal. Mas se vê que está abandonado e vem se deteriorando à vista de todos, sem muita preocupação por parte de nossos políticos. Não poderia o atual prefeito José Éder utilizar o recurso que estava empenhado (se ainda há ou se um dia houve) na reconstrução do antigo sobrado incendiado para restaurar o atual “Casarão Osmar Felipe”? É o sobrado mais elegante e bem trabalhado de nossa arquitetura imperial. E o detalhe é que ainda está de pé. Vão esperar cair para depois reconstruir?

Quem sabe assim não tenhamos o dissabor, no futuro, de fazer uma postagem do “Hoje na História de Cunha” noticiando o infeliz dia em que desabou o casarão da Praça Coronel João Olímpio, incendiado pelo descaso e consumido pela indiferença, como aquele sobrado de Goiás Velho, que foi sucumbindo ante à negligência das pessoas, levando consigo as preciosas memórias do lugar, tão bem descrito no poema “O Passado…”, de Cora Coralina. Fica o alerta.

Referências:

CORALINA, C. O Passado…Jornal da Poesia. Disponível em: < http://www.jornaldepoesia.jor.br/cora.html#passado > . Acesso em: 5 jan. 2022.
DESTRUÍDAS leis e relíquias da vida e da história de Cunha. Diário de São Paulo, 6 jan. 1961.
VELOSO, J. J. de O. A História de Cunha (1600-2010): Freguesia do Facão: A rota da exploração das minas e abastecimento das tropas. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2010.
______. A história de Zina: a saga de uma família na zona rural cunhense. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2014.

Pedra Grande – Cunha – SP

Pedra Grande da Serra da Bocaina. Foto: Pousada Joaninha.

Localização:
Está localizada no bairro do Campo da Bocaina, zona rural de Cunha (SP). Está totalmente localizada dentro do território cunhense, mais especificamente dentro do território do distrito de Campos de Cunha, na região fronteiriça com o município de Silveiras (SP). As coordenadas geográficas do lugar, obtida pelo Google Maps, são as seguintes: 22°49’16.1″S; 44°46’05.3″W.

Localização da Pedra Grande, município de Cunha (SP). Cartografia: Jacuhy.

Altitude:
É variável, conforme o produto cartográfico, site geoespacial ou SIG utilizado. Assim, é no:

a) IBGE: 1.800 metros.
b) IGC: 1.807 metros.
c) Google Maps: 1.780 metros.
d) Google Earth: 1.810 metros.

Altimetria, cobertura do solo e localização da Pedra Grande, em carta do IGC, escala 1:10.000. Recorte e edição: Jacuhy.

História:
Quando os portugueses começaram a colonizar a região do Vale do Paraíba, nos fins do século XVI e início do século XVII, a região da Serra da Bocaina foi um dos últimos refúgios dos indígenas (Puris) que resistiram à catequização e ao aldeamento. No século XVIII, com a descoberta de ouro em Minas, a região é recortada por caminhos alternativos à Estrada Real, aproveitando as trilhas indígenas que já havia pelas galerias e descampados. Da atual cidade de Lorena (SP), antiga Hepacaré, partiam rotas para o gado e para ouro desviado e furtado (descaminhos), visando alcançar o porto de Mambucaba (RJ), desviando das barreiras alfandegárias e postos de fiscalização e controle. No século XIX viveu o Vale o ciclo do café. As rotas serranas foram reativadas, visando escoar a produção até o porto mais próximo. Como as garoupas (município do “fundo do Vale”) foram pródigas na produção, tropeiros atravessavam a Serra com suas tropas abarrotadas de café, almejando chegar à Mambucaba ou Angra dos Reis (RJ). Nesse tempo, de muito trabalho e escravidão nas fazendas da região, a Bocaina forneceu boqueirões e grutas para formação de quilombos de negros fugidos e resistentes à escravidão. Nos anos de 1940, desenvolveu-se naquelas bandas a pecuária extensiva de leite e corte, agravando processos erosivos e levando a destruição da flora local. Com solo pobre, a agricultura nunca foi o forte da área. Nos anos de 1970 surgiu o Parque Nacional da Serra da Bocaina, demonstrando a importância ecológica e a consequente necessidade de preservar a região, estrategicamente localizada entre as duas maiores metrópoles do país, São Paulo e Rio de Janeiro. Ali por perto, em Angra dos Reis (RJ), nos anos de 1970, durante o Regime Militar, começa a instalação da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto (CNAAA), complexo formado por 3 usinas nucleares, projeto para lá de polêmico e muito criticado por ambientalistas. Da década de 1990 em diante, com o advento do turismo na região, a Serra da Bocaina começou a ser explorada pela sua beleza paisagística, pelo clima de altitude e pela vegetação diversificada e esplendida, onde a Mata Atlântica incorpora elementos naturais de áreas subtropicais.

A cidade de Cunha, aos pés da Serra do Alto do Diamante, vista desde a Pedra Grande. Foto: Pousada Joaninha.

Meio físico:
A Pedra está localizada na Serra da Bocaina, em lugar marcado pelo clima tropical de altitude, porém bem mais frio e úmido que o entorno, devido à altitude superior e à proximidade com o mar. As temperaturas ficam na média anual inferior a 17°C e com verão brando. Durante os meses de inverno, principalmente junho e julho, ocorrem temperaturas inferiores a 0° C, ocasionando geadas. Está inserida na bacia hidrográfica do rio Paraitinga, sendo uma região de cabeceira e nascentes. O solo da região é típico de região serrana, sendo o cambissolo húmico. A vegetação é de campos de altitude, as matas ficam concentradas apenas nos fundos dos vales. Nos campos de altitude há a predominância de espécies herbáceas e arbustivas. Conforme a altitude diminui, tem-se a dominância de espécies arbóreas que formam uma mata característica da Floresta Ombrófila Mista Alto Montana, com a presença de Araucárias. As unidades geológicas que afloram na região pertencem ao Terreno Embu. Essa entidade tectônica é constituída por rochas metamórficas e ígneas, em sua maioria com idades proterozoicas (formadas há 2,5 bilhões a 542 milhões de anos). A Pedra em si, do ponto de vista geológico, é um afloramento de Metagranitóide Porfirítico, exercendo controle sobre morfologia do entorno, se destacando no relevo devido a sua resistência à alteração intempérica.

Aspecto da Pedra Grande e entorno. Foto: EcoValeTur.

Parque:
Apesar de estar na Serra da Bocaina, a Pedra Grande não está inserida dentro do Parque Nacional da Serra da Bocaina, unidade de conservação de proteção integral. Assim, não há controle de visitação ao local, o que pode ser bastante danoso ao ecossistema do lugar. Não há nenhuma estrutura física para atender a demanda de visitantes e nem qualquer tipo de fiscalização pelo poder público. O descarte de lixo feito de maneira inapropriada no local ou mesmo as fogueiras, acendidas pelos esporádicos acampamentos, podem causar poluição ou queimadas acidentais, colocando em risco o rico e diferenciado ecossistema da Bocaina, considerado por muitos cientistas um refúgio ecológico.

Mapa concêntrico da Pedra Grande da Bocaina. Notar a proximidade com Campos de Cunha. Elaboração: Jacuhy.

Ecoturismo:
Por estar no topo das escarpas da Serra da Bocaina, a Pedra é um excelente mirante, de onde se pode avistar a Mantiqueira, a cidade de Cunha, parte do Vale do Paraíba, a Serra do Mar e da Quebra-Cangalha e até alguns pontos da Costa Verde fluminense. A beleza cenográfica do lugar é de tirar o fôlego. A exploração turística do mirante já vem sendo feita. Passeios de moto, de bicicleta (mountain bike), a pé (trekking), a cavalo, de carro (off-road) têm a Pedra como paragem (camping) ou percurso. O município de Silveiras já explora turisticamente a Pedra, conforme é possível observar nas suas peças de divulgação turística. No entanto, cabe a Cunha saber aproveitar também o mirante da Pedra Grande, já que é parte de seu território, incluindo-o em seu mapa turístico e como um dos destinos a ser visitado pelos viajantes que aqui chegam ou passam. A inclusão desse mirante contribuirá com o próprio desenvolvimento turístico do distrito de Campos de Cunha. Mas é preciso pensar e planejar formas não predatórias de turismo no lugar.

Vídeo da Pedra feito pela empresa EcoValeTur. Data: 12 de jul. de 2019.

Acesso:
A Pedra pode ser acessada por estrada de terra batida, tanto pelo município de Silveiras (SP), via bairro dos Macacos (Colinas), como por Cunha, via bairro da Bocaina. O acesso mais comum e mais recomendado, devido às condições da estrada, é por Silveiras. Pela facilidade de acesso, muitas pessoas confundem a localização da Pedra, colocando-a dentro do município de Silveiras, quando na verdade está dentro de Cunha, conforme pode ser visto nos recortes cartográficos que acompanham esta postagem. Esse Embaraço é reforçado ainda, porque a Pedra está muito próxima à divisa intermunicipal. Equívocos desse tipo ocorrem com frequência com morros em áreas ou próximos de limites territoriais. Veja o que ocorre, p. ex., com a Pedra Macela, na divisa entre Cunha e Paraty (RJ).

Pedra Grande e Serra da Bocaina. Foto: Emil Davidson. Data: maio de 2019. Fonte: Google Maps.

Outras informações:
a) No Google Maps, Pedra Grande já aparece como “Trilha de Caminhada”, porém com “plus code” (56JH+7F Silveiras, São Paulo) localizado em Silveiras, possivelmente cadastrado no site pela ECOVALETUR.
b) Não temos nenhuma informação sobre as condições de trafegabilidade no momento, das estradas que levam à Pedra Grande; entretanto, convém salientar, que nunca foram boas e não são recomendadas para carros de passeio.
c) “Bocaina” é vocábulo de origem tupi, disso não há dúvida; todavia seu significado é controverso. Uma das acepções é: “lugar onde há fontes de água”, derivando de bocá, “irromper”, e ynhã, “fonte, ou jorro d’água”. Talvez seja esse o porquê da Serra apresentar um inexistente lago nas representações cartográficas coloniais, setecentistas; tomando, certamente, os cartógrafos, por fidedigna a tradução literal do vocábulo indígena. No entanto, de fato o termo faz jus à condição hidrográfica da Serra, pois nela nasce o rio Paraitinga, principal formador do rio Paraíba do Sul.

Situação da Pedra Grande, em recorte feito na carta do IBGE, escala 1:50.000. Edição: Jacuhy.

Referências:
AB’SÁBER, Aziz Nacib. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
ECOVALETUR. Pedra Grande da Bocaina (roteiro). Disponível em: <  https://ecovaletur.com.br/roteiro/pedra-grande-da-bocaina/ >. Acesso em: 2 mai. 2021.
GOOGLE MAPS. Disponível em: < https://www.google.com.br/…/@-22.8211891…/data=!3m1!1e3 >. Acesso em: 2 mai. 2021.
IBGE. Campos de Cunha. Rio de Janeiro: IBGE, 1974. 1 carta topográfica, color., 4465 x 3555 pixels, 5,50 MB, jpeg. Escala 1:50.000. Projeção UTM. Datum horizontal: marégrafo Imbituba, SC, Datum vertical: Córrego Alegre, MG. Folha SF-23-Z-A-IV-3, MI: 2742-3. Disponível em: < https://biblioteca.ibge.gov.br/…/GEB…/SF-23-Z-A-IV-3.jpg >. Acesso em: 25 nov. 2020.
INSTITUTO GEOGRÁFICO E CARTOGRÁFICO (IGC). Ribeirão dos Criminosos. São Paulo: Governo do Estado de S. Paulo – Sec. de Economia e Planejamento: Plano Cartográfico do Estado de S. Paulo / Coordenadoria de Divisão Regional / Divisão de Geografia, 1978. Escala 1:10.000. Projeção UTM. Datum horizontal: marégrafo Imbituba, SC, Datum vertical: Córrego Alegre, MG. Carta SF-23-Z-A-IV-3-NE-D, Folha: 074/135.
PREFEITURA MUNICIPAL DE SILVEIRAS. Silveiras, Terra do Tropeiro. Vídeo de divulgação. Letra e música: Celso Galvão. Data da postagem do vídeo: 21 de fev. de 2019. Disponível em: < https://youtu.be/CzMOTWIEja8 >. Acesso em: 20 out. 2020.
POUSADA JOANINHA. Passeios. Disponível em: < https://www.pousadadajoaninha.com.br/passeios.php >. Acesso em 26 out. 2020.
REIS, Paulo Pereira dos. O indígena do Vale do Paraíba: apontamentos históricos para o estudo dos indígenas do Vale do Paraíba paulista e regiões circunvizinhas. Coleção Paulística, v. 16. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1979.
ROMARIZ, Dora de Amarante. Biogeografia: conceitos e temas. São Paulo: Scortecci, 2008.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria do Meio Ambiente, Instituto Florestal. Mapa pedológico do Estado de São Paulo: revisado e ampliado. Marcio Rossi. São Paulo: Instituto Florestal, 2017. 118p. : il. color ; mapas. 42×29,7 cm. Disponível em: < http://www.iflorestal.sp.gov.br >. Acesso em: 1 mai. 2021.
SOARES, Arthur Távora de Mello. Mapeamento Geológico, Análise Estrutural e Metamorfismo nas proximidades de Campos de Cunha, São Paulo. Monografia de Graduação em Geologia. Orientadores: Julio Cezar Mendes, Rodrigo Vinagre. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto de Geociências / Departamento de Geologia, 2018. Disponível em: < http://hdl.handle.net/11422/4254 >. Acesso em: 2 mai. 2021.
TIBIRIÇÁ, Luiz Caldas. Dicionário de topônimos brasileiros de origem Tupi. São Paulo: Traço, 1985.
TOLEDO, Francisco Sodero. Estradas Reais: O Caminho Novo da Piedade. Campinas, SP: Editora Alínea, 2009.

Vídeo do canal “Girando na Vida” sobre a Pedra Grande. Data: 18 de mai. de 2020.

Turismo em Cunha: cartografias, regionalizações etc.

O Lavandário e o pôr-do-Sol mais lindo do Brasil.

Faço aqui algumas breves considerações sobre a cartografia turística do município de Cunha e as regionalizações impostas pela Secretaria de Turismo de São Paulo e pelo Ministério do Turismo.

Cartografia

Mapa Turístico da Estância Climática de Cunha. Ano: 2009. Fonte: Prefeitura de Cunha (SP).

Esse mapa turístico de Cunha vem sendo reproduzido e impresso pela Prefeitura, com algumas alterações, desde o início deste século. Foi criado pelo designer cunhense Wagner Oliveira. Sem dúvida, é muito bonito e elegante, mas peca nos aspectos cartográficos. Prevalece os aspectos estéticos sobre os técnicos. A cidade de Cunha, como se nota, está ampliada e o restante que do plano, que cobre o município, está em escala menor. Esse tipo de representação acarreta muitas distorções e gera confusão em que lê esse mapa. Geralmente, quando se amplia parte de uma peça cartográfica, a representação em escala maior aparece fora do plano geral, no canto e/ou destacada, a fim de chamar a atenção e não iludir quem realiza a leitura. Ademais, os pontos turísticos de Cunha, diferente de Campos do Jordão, por exemplo, não estão concentrados no perímetro urbano, mas dispersos pela nossa extensa área rural. Desse modo, ainda que o objetivo dessa técnica seja permitir a localização dos pontos turísticos e empreendimentos turísticos dentro da cidade, acaba atrapalhando a localização dos lugares similares que estão na zona rural, já que, como escrevi, Cunha não tem seus pontos e empreendimentos turísticos concentrados na zona urbana. A falta de uma escala mais próxima à realidade, sobretudo nos trechos rurais, tem gerado muitas frustrações nos turistas que se guiam por esse mapa, quando percorrem os roteiros que haviam traçado.

Mapa Turístico da Estância Climática de Cunha. Ano: 2015. Fonte: CunhaTur.

Outro problema é a quantidade de informações que são apresentadas e representadas. Como o número de empreendimentos turísticos em nosso município vem aumentando a cada ano, à medida em que esses mapas são atualizados, ficam cada vez mais poluídos e carregados, o que compromete a leitura e a estética da peça gráfica. A solução pode estar na seleção das informações fornecidas ou na criação de um mapa digital para o turismo cunhense, através de um aplicativo para smartphone, por exemplo. Com os mapas digitais não só a atualização pode ser feita de maneira mais rápida e econômica, como a quantidade de informações pode ser resolvida com a criação de camadas selecionáveis, onde o próprio usuário pode decidir o que ele quer ver e localizar.

Mapa Turístico da Estância Climática de Cunha. Ano: 2019. Fonte: Prefeitura de Cunha (SP).

Regionalizações

Cunha era uma estância climática desde 1948. Foi a primeira do estado, antes até de Campos do Jordão. Na verdade, era para ser estância hidromineral devido às fontes da “Águas Virtuosas de Santa Rosa”. Mas, por pressões políticas de alguns deputados federais, insuflados pelos municípios que já gozavam desse “status” e acesso ao orçamento estadual, acabou se tornando uma estância climática (VELOSO, 1995, p. 12). Nessa batalha de Cunha atuaram dois políticos da época: deputado estadual Sebastião Carneiro da Silva (PSD), grande batalhador das causas valeparaibanas, e o governador Ademar de Barros (PSP), ex-combatente do serviço médico do Exército Constitucionalista, tendo servido na frente de Cunha. Na década de 1940, o dr. João Lellis Vieira, cunhense “da gema” e articulista do jornal “Correio Paulistano”, aproveitava o espaço que tinha para provocar Campos do Jordão, exclamando que Cunha, ao contrário daquela estância da Mantiqueira, era “climatericamente a Suíça Brasileira!”. Puro bairrismo. E um monólogo inócuo. Em nada abalou a reputação de Campos do Jordão, construída pelo próprio governo estadual, visando massagear o ego e ofertar um “plano B” para as quatrocentonas falidas, que já não dispunham de bufunfa para visitar a Suíça (de verdade) …

Mapa da Tipologia Turística das Estâncias Paulistas. Ano: 2017. Fonte: Companhia Paulista de Eventos e Turismo.

Em 2015, o artigo 7º, da Lei Complementar nº 1.261 do estado de São Paulo, que Estabelece condições e requisitos para a classificação de Estâncias e de Municípios de Interesse Turístico e dá providências correlatas”, prescreveu que “os municípios classificados por lei como Estâncias Balneárias, Hidrominerais, Climáticas e Turísticas passam a ser classificados como Estâncias Turísticas, sem prejuízo da utilização da terminologia anteriormente adotada, para efeito de divulgação dos seus principais atrativos, produtos e peculiaridades.” Assim, ainda que a Prefeitura de Cunha mantivesse a divulgação do título de “Estância Climática”, oficialmente passou a ser “Estância Turística”. Na parte que interessa à Municipalidade, o acesso à verba extra do orçamento estadual para fomentar o turismo local, nada mudou. Portanto, nenhum estardalhaço foi gerado. A questão que se pôs a partir de então foi como o Governo Estadual organizaria e enquadraria os municípios turísticos.

Mapa dos Segmentos Turísticos no Estado de S. Paulo. Ano: 2017. Fonte: Companhia Paulista de Eventos e Turismo.

Em um primeiro momento, a Secretaria de Turismo estadual lançou um documento para orientar as prefeituras sobre as mudanças ocorridas por força da nova lei. Assim, naquele momento, São Paulo estava dividido turisticamente em 15 macrorregiões e subdividido em 34 regiões turísticas englobando todos os 645 municípios paulistas (SÃO PAULO, 2015). Cunha pertencia à “Macrorregião do Vale do Paraíba” e à “Região Turística do Vale do Paraíba e Serras”. Basicamente, a Secretaria seguiu a regionalização histórica já existente, sem inventar moda. No mesmo documento, ao aprofundar a regionalização, a Secretaria criou os “Circuitos Turísticos”, uma sub-regionalização das regiões turísticas. Cunha, por sua vez, integrava, simultaneamente, o “Circuito Cultura Caipira”, junto com outros municípios do Alto Vale, e o “Roteiro do Vale Histórico”, junto com os municípios do “garoupas”. Essa regionalização era bastante condizente com a realidade e a história local, valorizando os aspectos culturais de Cunha e adjacências.

Cunha foi inserida dentro do segmento histórico e cultural, com destaque por sua cerâmica de alta temperatura nacionalmente conhecida. Fonte: Companhia Paulista de Eventos e Turismo. Ano: 2017.

A referida Lei Complementar reconhecia 13 segmentos de turismo: Social; Ecoturismo; Cultural; Religioso; Estudos e de Intercâmbio; de Esportes; de Pesca; Náutico; de Aventura; de Sol e Praia; de Negócios e Eventos; Rural; de Saúde. Sendo que Cunha estava segmentada dentro de uma região de turismo cultural, cuja definição, dada pela mesma lei é a que segue: “compreende as atividades turísticas relacionadas à vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais da cultura”. Ainda que não seja a melhor para descrever o turismo cunhense era mais condizente que o enquadramento dado, por exemplo, ao turismo religioso, que é definido assim: “configura-se pelas atividades turísticas decorrentes da busca espiritual e da prática religiosa em espaços e eventos relacionados às religiões institucionalizadas, independentemente da origem étnica ou do credo”. Entretanto, a partir de 2017, Cunha passou a integrar a “Região Turística da Fé”, junto com Aparecida, Cachoeira Paulista, Guaratinguetá etc. mesmo não sendo um centro de peregrinação religiosa como esses municípios.

Mapa dos Circuitos Turísticos Paulistas. Ano: 2016. Fonte: Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo.

O que se vê é que nem o próprio Governo conseguiu superar a utilização e categorização das estâncias (turísticas, climáticas e hidrominerais), ainda que oficialmente tenha sido proscrita. O termo “municípios turísticos” ou “estância turística” ainda não foi plenamente assimilado pelas pastas estaduais. E muito menos pelos municípios, empresários, guias e população em geral. Por óbvios motivos políticos e eleitorais, em 2016, uma lei estadual criou a categoria “Municípios de Interesse Turístico”, ampliando em mais 140 o número de municípios paulistas com acesso ao filão orçamentário para “incrementar o turismo”.

Interessante notar que até no site desenvolvido pelas prefeituras da Região Turística da Fé, a foto de Cunha na página inicial é a única não remete à religião ou às igrejas, apresentando a foto de uma das dezenas de cachoeiras do município na chamada da página inicial. Ainda que as festas religiosas de Cunha sejam seculares e possam atrair turistas, elas são expressões de fé da população local e não um evento de cunho turístico. São manifestações de fé genuínas e não eventos comerciais de fundo religioso. Talvez a única exceção dentro dessas manifestações seja a Festa de Sá Mariinha das Três Pontes, em cujo lugar há até um pequeno centro de apoio ao romeiro, mas ainda assim são romeiros de Cunha e adjacências que vistam o local, ou seja, devotos da própria região e que estão no mesmo meio cultural. Diferentemente de Aparecida, Cachoeira Paulista e Guaratinguetá, que são centros nacionais do Catolicismo, e atraem fiéis até de outros países e em contingentes impensáveis para as festas religiosas de Cunha.

A descrição para caracterização da Região Turística da Fé é ambígua. Vejamos: “A Região Turística da Fé se destaca como uma das mais belas do país, está localizada no eixo Rio x São Paulo entre as Serras da Mantiqueira, da Bocaina e do Mar. São 08 municípios no Vale do Paraíba que estão unidos pelo desenvolvimento do turismo regional: Aparecida, Cachoeira Paulista, Canas, Cunha, Guaratinguetá, Lorena e Piquete. Com um grande número de santuários e belezas naturais a região proporciona uma experiência única de fé, contemplação e atividades turísticas em meio das lindas paisagens de serras e rios nos mais variados tipos de turismo e seus atrativos: turismo religioso, turismo rural, turismo cultural, de esportes, de aventura, ecoturismo, negócios e eventos, náutico e gastronômico.” (grifo meu) (REGIÃO TURÍSTICA DA FÉ, 2020). Como se nota, não se sabe ao certo qual o tipo de turismo a desenvolver, porque uma coisa é atrair e acolher romeiros e outra coisa é desenvolver o ecoturismo. No encontro que culminou em um estatuto para os municípios integrantes da RT da Fé, afirmou-se que: “(…) muitos projetos possam acontecer na Rota da Fé, tanto focando a religiosidade regional, como investimentos na infraestrutura (…)” (grifo meu) (PREFEITURA DE APARECIDA, 2019). Ora, como Cunha focar seu investimento em eventos religiosos, se quase todas suas festas turísticas são laicas e comerciais?

Mapa das Regiões Turísticas do Estado de São Paulo. É o que está em vigor. Cunha aparece em outra região turística. Fonte: Secretaria de Turismo do Estado de S. Paulo. Ano: 2017.

Praticamente quase todos os tipos de turismo praticados no Brasil são citados como a ser desenvolvido pela Região Turística da Fé. É claro que a diversificação das atividades turísticas é desejável, mas no caso parece que os mentores municipais estão meio perdidos quanto aos objetivos e metas a serem traçadas. Ter colocado Cunha no meio desses municípios engrossou o caldo da confusão, sem dúvida. Quem dá enfoque em tudo acaba não priorizando nada. Não há nenhum elemento caracterizador, ainda que o turismo religioso preceda os demais e seja citado “um grande número de santuários”, para logo em seguida já destacar as “belezas naturais”, que uma caracterização tão genérica, que pode aparecer na descrição da maioria das regiões turísticas do mundo. O fato é que Cunha não conta com santuários e nem é visitada por motivos religiosos. Na página de Cunha, no site da Região Turística da Fé, até são citadas as festas religiosas, mas os destaques são para os campos de lavandas, cachoeiras e às festas ligadas ao clima serrano. Faria mais sentido, penso eu, alocar Cunha na região vizinha, do “Rios do Vale”, que engloba parte dos municípios do Alto Vale do Paraíba. Pelo menos em nosso território nasce o rio Paraibuna, no bairro da Aparição, e ganha corpo o rio Paraitinga, que desce da Serra da Bocaina. Associar a beleza natural a alguma ação contemplativa de fé em nosso município é um grande disparate, a menos que Cunha tenha algum centro de peregrinação xamânica e ninguém nos avisou de nada…

Não se pode criar regionalizações em gabinetes, desconsiderando a história e desenvolvimento de cada lugar. Canetadas de políticos não devem preceder e prevalecer sobre o trabalho científico de geógrafos e turismólogos.

Considerações finais

Atualmente, a maior parte das pessoas que visitam Cunha utiliza para encontrar os destinos almejados as plataformas cartográficas digitais, como o Google Maps (por exemplo), por serem mais simples, acessíveis e atualizadas. Acessíveis até certo ponto, convenhamos, já que em uma boa parte da zona rural de Cunha não há sinal de celular e, consequentemente, de internet. Entretanto, ainda que venha caindo em desuso e estejam condenados, os mapas turísticos impressos de Cunha precisam equilibrar os aspectos artísticos e técnicos na sua apresentação, tornando-se um instrumento de localização mais útil a quem se destina: os turistas.

Com relação à regionalização turística a que Cunha foi submetida, compete à Prefeitura, através de seu corpo técnico, e ao Conselho Municipal de Turismo de Cunha (COMTUR) questionar esse enquadramento alheio à realidade do turismo local: ao seu desenvolvimento e história, à sua tipologia e às potencialidades que apresenta. Inclusive, o planejamento turístico estadual aponta que um dos objetivos estratégicos para o setor é “promover a atuação articulada de agentes públicos e privados na implantação de empreendimentos e produtos turísticos nacionais ou internacionais, que aproveitem as vocações e potencialidades dos municípios e regiões do Estado de São Paulo.” (SÃO PAULO, 2020, p. 37). E ainda, no mesmo documento, estabelece que o “incentivo e valorização das iniciativas que fortaleçam a identidade local e regional dos destinos turísticos” e a modernização e ampliação das “estratégias de marketing e comunicação de destinos, produtos e serviços turísticos ofertados no Estado de São Paulo nos níveis municipal, regional, nacional e internacional” (SÃO PAULO, 2020, pp. 44-45) são estratégias prioritárias para fomentar o turismo paulista na próxima década. Trata-se de uma regionalização totalmente deslocada, no tempo e no espaço. E que pode comprometer nosso desenvolvimento turístico se for seguida e houver direcionamento de investimentos.

Cunha viveu nesse primeiro quinquênio da pavimentação completa da rodovia que liga a cidade a Paraty (RJ) um crescimento nunca visto do seu turismo. O fluxo cada vez maior de pessoas que se dirige às praias da Costa Verde fluminense e para o Litoral Norte paulista transformou nossas montanhas em vitrine e propaganda ininterrupta do lugar. É um outdoor vivo e verdadeiro dos dois lados da pista da rodovia SP-171. Entretanto, é preciso planejar e aprimorar as atividades turísticas que acontecem aqui, para gere renda e traga benefícios para todos os cunhenses e que seja sustentável, ecologicamente e financeiramente, nas próximas décadas.

Vídeo sobre a então Estância Climática de Cunha, produzido pela Aprecesp (Associação das Prefeituras das Cidades Estância do Estado de São Paulo), em 2012.

Referências:
CORRÊA, R. L. Região e organização espacial. 8. ed. São Paulo: Ática, 2007.
LIBAULT, A. Geocartografia. São Paulo: Companhia Editora Nacional / Editora da Universidade de São Paulo, 1975.
PREFEITURA DA ESTÂNCIA CLIMÁTICA DE CUNHA. Mapa Turístico de Cunha já está disponível aqui no site oficial da prefeitura, 22 jan. 2019. Disponível em: < http://www.cunha.sp.gov.br/noticias/mapa-turistico-de-cunha-ja-esta-disponivel-aqui-no-site-oficial-da-prefeitura/ >. Acesso em: 4 out. 2021.
PREFEITURA DE APARECIDA. Estatuto da Região Turística da Fé, 26 jul. 2019. Disponível em: < https://www.aparecida.sp.gov.br/portal/noticias/0/3/326/estatuto-da-regiao-turistica-da-fe >. Acesso em: 5 out. 2021.
REGIÃO TURÍSTICA DA FÉ. Conheça Cunha. Disponível em: < https://rtdafe.com.br/cunha/ >. Acesso em 4 out. 2021.
______. Sobre a região. Disponível em: < https://rtdafe.com.br/ >. Acesso em 4 out. 2021.
SÃO PAULO (Estado). LEI COMPLEMENTAR Nº 1.261, DE 29 DE ABRIL DE 2015. Estabelece condições e requisitos para a classificação de Estâncias e de Municípios de Interesse Turístico e dá providências correlatas. São Paulo (SP), abr. 2015. Disponível em: < https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei.complementar/2015/lei.complementar-1261-29.04.2015.html >. Acesso em: 5 out. 2021.
SÃO PAULO (Estado) / Secretaria de Turismo. Município de Interesse Turístico: cartilha de orientação de acordo com a Lei 1261/15. São Paulo: Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo, 2015. Disponível em: < https://www.turismo.sp.gov.br/publico/include/download.php?file=108 >. Acesso em: 4 ou. 2021.
______. Municípios Turísticos (Estâncias), 29 mai. 2017. Disponível em: < https://www.turismo.sp.gov.br/publico/noticia_tour.php?cod_menu=77 >. Acesso em: 9 out. 2021.
______. Mapa das Regiões Turísticas. 2017. Disponível em: < https://www.turismo.sp.gov.br/datafiles/suite/escritorio/aplicativo/conteudo/album_fotografico/782.jpg >. Acesso em 5 out. 2021.
______. TURISMO SP 20-30: Plano Estratégico de Desenvolvimento do Turismo do Estado de São Paulo – resumo executivo. São Paulo: SETUR, out. 2020. Disponível em: < https://www.turismo.sp.gov.br/datafiles/suite/escritorio/aplicativo/webdesign/abertura/Plano%20Turismo%20SP%2020-30%20site09dez2020.pdf >. Acesso em: 5 out. 2021.
SECRETARIA DE TURISMO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Tipologia Turística das Estâncias Paulistas – 2017. “Turismo em São Paulo”, TUR.SP – Companhia Paulista de Eventos e Turismo | Disponível em: < http://www.turismoemsaopaulo.com >. Acesso em: 11 jan. 2018.
______. Segmentos Turísticos no Estado de S. Paulo – 2017. “Turismo em São Paulo”, TUR.SP – Companhia Paulista de Eventos e Turismo | Disponível em: < http://www.turismoemsaopaulo.com >. Acesso em: 11 jan. 2018.
VELOSO, J. J. de O. O ambiente natural cunhense. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 1995.