Bairro do Jericó

Fotos do bairro do Jericó, zona rural de Cunha, estado de São Paulo.

Por um vale esverdeado da Serra do Mar se chega ao bairro do Jericó, na região sudoeste de Cunha. Um típico bairro rural vale-paraibano, com os estábulos para ordenha de vacas, pertinho da tulha de madeira para guardar a produção cerealífera, com as velhas fazendas rurais ou sítios junto aos sopés das montanhas e um córrego passando no quintal. Ah, também se vê cavalos, mulas, cachorros, homens portando o indefectível chapéu de palha e a saudar os transeuntes com o obrigatório bom-dia, naquele peculiar sotaque da gente cunhense. Jericó, alusão à antiga cidade conquistada pelos hebreus, em Canaã – a Terra Prometida –, é também aqui um lugar de primícias. Nesse bairro se faz o melhor requeijão caseiro de toda Cunha. E as muralhas ainda continuam de pé, em forma de montanhas de pedra e de pontões rochosos que se elevam, como torres que cercavam a velha cidade do Oriente Próximo.

Mas Jericó é também a terra da bela cachoeira, da garoa à tardinha, dos hinos religiosos que ecoam do imponente templo da Igreja Metodista, a segunda igreja protestante inaugurada no Vale Paraíba, e da primeira escola rural do município de Cunha. É a terra dos Mariano Leite, tradicional tronco genealógico cunhense.

No adro, a Igreja Metodista colocou uma placa com os versículos de 7 ao 11, do capítulo 8, do livro de Deuteronômio, que sintetizam Jericó, relevando, claro, as diferenças (entre o Jericó da Palestina e o Jericó da Serra do Mar) de gêneros agrícolas e frutas cultivadas em cada lugar:

“Porque o Senhor teu Deus te introduziu numa boa terra, terra de ribeiros de águas, de fontes, e de mananciais, que saem dos vales e das montanhas;

Terra de trigo e cevada, e de vides e figueiras, e romeiras; terra de oliveiras, de azeite e mel.

Terra em que comerás o pão sem escassez, e nada te faltará nela; terra cujas pedras são ferro, e de cujos montes tu cavarás o cobre.

Quando, pois, tiveres comido, e fores farto, louvarás ao Senhor teu Deus pela boa terra que te deu.

Guarda-te que não te esqueças do Senhor teu Deus, deixando de guardar os seus mandamentos, e os seus juízos, e os seus estatutos que hoje te ordeno; […]”.

Dt. 8:7-11

Palavra do Senhor. Amém.

Há 61 anos, Paço Municipal de Cunha era incendiado por detentos

O que sobrou do Paço Municipal, que abrigava a Prefeitura, Câmara, Fórum e Cadeia, após o incêndio. Data: 1961. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

Na madrugada (às 3h da manhã) do dia 5 de janeiro de 1961, a população da cidade de Cunha acordou atônita. O Paço Municipal, velho sobrado, que abrigava a Prefeitura, a Câmara, Fórum e Cadeia Pública, ardia em chamas e as labaredas iluminavam a pequena urbe, posto que o sobrado ficava em sua parte mais alta, em desolador espetáculo.

A construção do edifício começou no ano de 1785, após a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão alcançar a sua autonomia política e administrativa da Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá, passando a denominar-se com a mudança de status Vila de Nossa da Conceição de Cunha. Portanto, o sobrado era símbolo e marco dessa efeméride histórica.

Fachada do sobrado antes do incêndio: brasão da República no frontispício (embora tenha sido construído na época colonial) e as celas da Cadeia Pública no térreo. Data: Década de 1940. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

Além de seu caráter simbólico, o sobrado guardava em seus arquivos “todos os documentos municipais relativos ao executivo e legislativo, arquivos antigos preciosos sobre a instalação da Câmara, em 1786, e dados importantes concernentes à Revolução de 1932 […]” (VELOSO, 2014, p. 74). Assim, quase duzentos anos de história virou cinzas em minutos, destruindo todas as fontes documentais oficiais do município, algumas do século XVIII, documentos que poderiam elucidar pontos nebulosos do passado de Cunha.

Deve-se ainda ressaltar a importância arquitetônica desse sobrado histórico, conjunção harmônica e elegante de madeiras-de-lei e grossas, rústicas paredes de taipa de pilão, primor da técnica colonial. Imponente, favorecido pela topografia do Alto do Cruzeiro, situava-se onde hoje é a Delegacia da Polícia Civil. De suas janelas coloniais havia uma vista completa do burgo, do rocio e das serranias que nos cercam.

Causa do incêndio

Foi um ato criminoso, conforme sempre fazia questão de preconizar o professor João VELOSO (2010, p. 278). Dois detentos da Cadeia Pública de Cunha, que dividiam a mesma cela, atearam fogo em um colchão e mantiveram-no próximo ao forro até que a madeira velha ficasse incandescente. Desse modo o fogo se alastrou pelo madeiramento, consumindo com rapidez o material inflamável que compunha o sobrado.

A real motivação que levou os incendiários a destruir um patrimônio cunhense deu origem a muitos rumores. Seria um protesto contra a insalubridade da cela? Vingança contra uma reprimenda que receberam de um policial da Força Pública? Ou obra encomendada por políticos locais, com o intuito de se livrar das provas contra os seus delitos? Muito foi especulado sobre a motivação do incêndio do sobrado, mas nada foi provado. Os dois presos foram responsabilizados e pagaram a pena.

Vista lateral do que sobrou do sobrado, antes de sua demolição. Data: 1961. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

Os detentos

Assim que o fogo se alastrou, os dois presos que causaram o incêndio (um deles tinha a alcunha de “Gabiru”) gritaram por socorro e foram retirados de lá, ficando alojados em uma casa vizinha. Ao todo eram quinze homens. Foram algemados e amarrados e no mesmo dia foram transferidos para Cadeia Pública de Guaratinguetá.

Aglomeração

O clarão do incêndio assustava e chamava a atenção da população, que acorria para a Praça Prudente Guimarães para ver o que se sucedia. Uma multidão tomou a praça e acompanha ao longe o fogaréu cuspir ao céu. Havia naquelas pessoas certa perplexidade ante ao que viam em sua frente e certa impotência, pois nada podiam fazer para impedir a destruição do sobrado colonial.

Entre tantos que ali se aglomeraram, alguns, cônscios da documentação valiosa que estava virando fumaça, tentaram, em vão, entrar no sobrado para salvá-la, retirando-as das chamas. Foram impedidos por um policial militar que, com arma em punho, parado ao final da escada que dava acesso ao piso superior, impediu que os corajosos munícipes tivessem à repartição da Prefeitura, posicionando-se à frente da porta. Em tal ato de bravura, tentava ele impedir que essas pessoas insensatas fossem feridas ou queimadas? Ou queria assegurar que os documentos ali arquivados fossem incinerados?

Perplexa com o que via e impotente diante da lenta destruição, logo a multidão sentiu a ausência de seu alcaide e começou a murmurar: cadê o prefeito de Cunha?

A ação do prefeito

O prefeito Osmar Felipe, já falecido, encontrava-se naquela madrugada em São Paulo, capital. Como em Cunha não havia telefone, o prefeito só foi informado às 9h da manhã, após seu chefe de gabinete deslocar-se até Guaratinguetá para contatá-lo e o pôr a par da situação.

Tomando conhecimento do ocorrido e da gravidade da situação, Osmar Felipe entrou em contato rapidamente com o governador Carvalho Pinto, no Palácio dos Campos Elísios, conseguindo o envio imediato de homens da Polícia Técnica e um contingente do Corpo de Bombeiros, despachados para Cunha por ordem direta do governador, a fim de conter o incêndio do Paço Municipal.

O jornal O Estado de S. Paulo”, 8 jan. 1961, p. 22, noticia o ocorrido em uma matéria recheada de insinuações políticas sobre a motivação do incêndio. Fonte: Acervo Estadão.

Mesmo tendo feito tudo que estava em seu alcance, o ex-prefeito Osmar Felipe foi alvo de muitas críticas e de difamação de sua pessoa e ação, motivada por seus adversários políticos locais. Por conseguinte, diversas “fake news” circularam pelo município, propagadas por seus opositores.

A ação dos bombeiros

Caminhão do Corpo de Bombeiros atolado no Morro do Facão (Morro do Cemitério). O atraso dos bombeiros custou a estrutura do sobrado. Data: 5 jan. 1961. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

O grupo de bombeiros que partira em direção a Cunha, no mesmo dia, para apagar o incêndio, não imaginava que o obstáculo maior era chegar à cidade. A estrada intermunicipal Cunha-Guaratinguetá era de terra batida e mal conservada. O trajeto durava horas.

Como janeiro é um mês chuvoso em nossa região, as estradas de Cunha estavam intransitáveis. Quando o caminhão do Corpo de Bombeiros começou a subir o Morro do Facão (“Morro do Cemitério”, oficialmente Alameda Francisco da Cunha e Meneses) atolou, pois a rua estava tomada pela lama. Após muito patinar e ser empurrado no braço por bombeiros e moradores, quando enfim superou a lama e o morro, já era tarde demais… O fogo, além de reduzir a madeira à brasa, havia causado danos estruturais irreversíveis à secular edificação. Não restou outra alternativa aos bombeiros a não ser demolir o que havia restado do sobrado. Suas grossas paredes de taipa de pilão, pela magnitude, ofereciam risco, caso terminasse de desabar, a moradores, transeuntes e curiosos.

Apesar de terem sido deslocados para Cunha no mesmo dia, os bombeiros chegaram tarde demais. As estradas e ruas de Cunha estavam enlameadas naquele chuvoso janeiro de 1961. Na foto, temos a atual Alameda Francisco da Cunha e Meneses. Data: 5 jan. 1961. Foto: Museu Municipal Francisco Veloso.

Nada restou do antigo sobrado.

Consequências

Todas foram ruins para nossa cidade. A começar pela perda de todas as fontes documentais relativas à História de Cunha, provocando uma lacuna enorme nos levantamentos e pesquisas. O professor João VELOSO (2010, p. 278) sempre se queixava da dificuldade que era pesquisar sobre a história local, tendo que se basear em fontes orais ou consultar arquivos, acervos e museus em outros lugares.

A destruição de um patrimônio histórico material de grande valor simbólico para Cunha, serviu como prenúncio do que viria a ocorrer nas décadas seguintes com os outros casarões, que acabaram sendo demolidos por seus proprietários, desconfigurando a paisagem urbana colonial/imperial. Destruições feitas sob o signo de um pretenso progresso vindouro. Que não veio!

A Prefeitura ficou sem sede própria, se instalando de forma provisória no recém-inaugurado Fórum da Comarca de Cunha. E de lá em diante foi mudando de imóvel em imóvel. A atual sede da Prefeitura de Cunha ocupa um imóvel alugado.

Evidenciou a necessidade de conectar Cunha com o restante do mundo, pois sem telefone e estrada transitável, o município ficava isolado dos outros lugares. O asfaltamento da Rodovia Paulo Virgínio (SP-171) viria na mesma década, com a obra sendo entregue pela construtura Serveng, em 1967. Se houvesse linha telefônica interurbana, os bombeiros seriam acionados a tempo de, pelo menos, impedir danos estruturais, possibilitando a reconstrução do edifício futuramente, com suas paredes originais, se houvesse vontade dos gestores municipais, é claro. Ou melhor: Cunha deveria possuir o seu próprio destacamento do Corpo de Bombeiros.

Reconstrução

Em 2020, o então prefeito Rolien Guarda Garcia anunciou em sua rede social que pretendia reconstruir o sobrado incendiado, mantendo a fachada original. Informou que o Governo Estadual havia cedido o prédio da atual Delegacia de Polícia de Cunha à Prefeitura e que havia dinheiro em caixa para realizar tal empreendimento.

Delegacia de Polícia de Cunha, na Praça Dr. Prudente Guimarães. No local, até 1961, ficava o antigo sobrado histórico. Data: 2019.

Apesar do inegável embelezamento paisagístico que traria à cidade, o sobrado que se ergueria seria um simulacro. Reconstruído em alvenaria (provavelmente), sem seguir a volumetria e distribuição das divisões internas do sobrado original, uma obra assim, além de cara, nada acrescentaria ao patrimônio histórico de Cunha, porque o antigo, que era o que importava, nem a poeira sobrou.

Vantagem maior faria a Prefeitura se gastasse os recursos públicos nos casarões que ainda restam. Inclusive naquele que é propriedade da Municipalidade, o “Casarão Osmar Felipe”, situado na Praça Coronel João Olímpio. Ali poderia ser o Paço Municipal. Mas se vê que está abandonado e vem se deteriorando à vista de todos, sem muita preocupação por parte de nossos políticos. Não poderia o atual prefeito José Éder utilizar o recurso que estava empenhado (se ainda há ou se um dia houve) na reconstrução do antigo sobrado incendiado para restaurar o atual “Casarão Osmar Felipe”? É o sobrado mais elegante e bem trabalhado de nossa arquitetura imperial. E o detalhe é que ainda está de pé. Vão esperar cair para depois reconstruir?

Quem sabe assim não tenhamos o dissabor, no futuro, de fazer uma postagem do “Hoje na História de Cunha” noticiando o infeliz dia em que desabou o casarão da Praça Coronel João Olímpio, incendiado pelo descaso e consumido pela indiferença, como aquele sobrado de Goiás Velho, que foi sucumbindo ante à negligência das pessoas, levando consigo as preciosas memórias do lugar, tão bem descrito no poema “O Passado…”, de Cora Coralina. Fica o alerta.

Referências:

CORALINA, C. O Passado…Jornal da Poesia. Disponível em: < http://www.jornaldepoesia.jor.br/cora.html#passado > . Acesso em: 5 jan. 2022.
DESTRUÍDAS leis e relíquias da vida e da história de Cunha. Diário de São Paulo, 6 jan. 1961.
VELOSO, J. J. de O. A História de Cunha (1600-2010): Freguesia do Facão: A rota da exploração das minas e abastecimento das tropas. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2010.
______. A história de Zina: a saga de uma família na zona rural cunhense. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2014.

Postagens mais lidas de 2021

Meio ambiente, economia e história de Cunha foram os assuntos mais lidos. Arte: Jacuhy.

Em 2021 criamos este blog utilizando a plataforma do WordPress. O objetivo era fornecer um meio que facilitasse a leitura das postagens em nossa página no Facebook, quase todas extensas demais (“textões”) e cuja leitura ficava prejudicada naquela rede social.

Reaproveitamos postagens antigas já feitas e publicamos neste blog. Também fizemos outras matérias inéditas. A temática é a mesma da página: a história, a cultura e a geografia do município de Cunha, ampliando a escala, às vezes, para o nível estadual e regional.

Foram 68 postagens tratando de temas diversos, como podemos verificar nas “tags” principais, que estão dispostas em nuvem na lateral direita: agropecuária, bairros rurais, cerâmica, cultura, demografia, economia, fotografia, geografia, história, história do brasil, joão veloso, livros, mapas, mata atlântica, meio ambiente, população, reflexão, revolução de 1932, são paulo, turismo, unidades de conservação, vale do paraíba etc. Muita coisa foi escrita, mas ainda há muito a se tratar. E vamos pesquisando e postando aqui na medida do possível.

Agradecemos os nossos 3.320 seguidores do Facebook pela força. Eles contribuíram para que este blog recebesse 7.346 visitantes e que as matérias publicadas tivessem 9.269 visualizações. Novas notícias sobre coisas passadas serão publicadas em breve. E entrevistas também. Aguardem. Gratidão a todos! Feliz 2022!

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#10 Lagoinha já foi distrito de Cunha