O rio

Rio Jacuí, antes de formar a cachoeira do Desterro.

Ser como o rio que deflui

Silencioso dentro da noite.

Não temer as trevas da noite.

Se há estrelas no céu, refleti-las

E se os céus se pejam de nuvens,

Como o rio as nuvens são água,

Refleti-las também sem mágoa

Nas profundidades tranqüilas.

Manuel Bandeira

O planeta do geógrafo

Aquarela de Antoine de Saint-Exupéry

Por Antoine de Saint-Exupéry *

O sexto planeta era dez vezes maior. Era habitado por um velho que escrevia livros enormes.

— Bravo! Eis um explorador! Exclamou ele, logo que viu o principezinho.

O principezinho assentou-se na mesa, ofegante. Já viajara tanto!

— De onde vens? Perguntou-lhe o velho.

— Que livro é esse? Perguntou-lhe o principezinho. Que faz o senhor aqui?

— Sou geógrafo, respondeu o velho.

— Que é um geógrafo? Perguntou o principezinho.

— É um sábio que sabe onde se encontram os mares, os rios, as cidades, as montanhas, os desertos.

É bem interessante, disse o principezinho. Eis, afinal, uma verdadeira profissão! E lançou um olhar, em torno de si, no planeta do geógrafo. Nunca havia visto planeta tão majestoso.

— O seu planeta é muito bonito. Haverá oceanos nele?

— Como hei de saber? Disse o geógrafo.

— Ah! (O principezinho estava decepcionado). E montanhas?

— Como hei de saber? Disse o geógrafo.

— E cidades, e rios, e desertos?

— Como hei de saber? Disse o geógrafo pela terceira vez.

— Mas o senhor é geógrafo!

— É claro, disse o geógrafo; mas não sou explorador. Há uma falta absoluta de exploradores. Não é o geógrafo que vai contar as cidades, os rios, as montanhas, os mares, os oceanos, os desertos. O geógrafo é muito importante para estar passeando. Não deixa um instante a escrivaninha. Mas recebe os exploradores, interroga-os, anota as suas lembranças. E se as lembranças de alguns lhe parecem interessantes, o geógrafo estabelece um inquérito sobre a moralidade do explorador.

— Por quê?

— Porque um explorador que mentisse produziria catástrofes nos livros de geografia. Como o explorador que bebesse demais.

” — Mas nós não anotamos as flores, disse o geógrafo.

— Por que não? É o mais bonito! “

Saint-Exupéry

— Por quê? Perguntou o principezinho.

— Porque os bêbados vêem dobrados. Então o geógrafo anotaria duas montanhas onde há uma só.

— Conheço alguém, disse o principezinho, que seria um mau explorador.

— É possível. Pois bem, quando a moralidade do explorador parece boa, faz-se uma investigação sobre a sua descoberta.

— Vai-se ver?

— Não. Seria muito complicado. Mas exige-se do explorador que ele forneça provas. Tratando-se, por exemplo, de uma grande montanha, ele trará grandes pedras.

O geógrafo, de súbito, se entusiasmou:

— Mas tu vens de longe. Tu és explorador! Tu me vais descrever o teu planeta!

E o geógrafo, tendo aberto o seu caderno, apontou o seu lápis. Anotam-se primeiro a lápis as narrações dos exploradores. Espera-se, para cobrir à tinta, que o explorador tenha fornecido provas.

— Então? Interrogou o geógrafo.

— Oh! Onde eu moro, disse o principezinho, não é interessante: é muito pequeno. Eu tenho três vulcões. Dois vulcões em atividade e um vulcão extinto. A gente nunca sabe…

— A gente nunca sabe, repetiu o geógrafo.

— Tenho também uma flor.

— Mas nós não anotamos as flores, disse o geógrafo.

— Por que não? É o mais bonito!

— Porque as flores são efêmeras.

— Que quer dizer “efêmera”?

— As geografias, disse o geógrafo, são os livros de mais valor. Nunca ficam fora de moda. É muito raro que um monte troque de lugar. É muito raro um oceano esvaziar-se. Nós escrevemos coisas eternas.

— Mas os vulcões extintos podem se reanimar, interrompeu o principezinho. Que quer dizer “efêmera”?

— Que os vulcões estejam extintos ou não, isso dá no mesmo para nós, disse o geógrafo. O que nos interessa é a montanha. Ela não muda.

— Mas que quer dizer “efêmera”? Repetiu o principezinho, que nunca, na sua vida, renunciara a uma pergunta que tivesse feito.

— Quer dizer “ameaçada de próxima desaparição”.

— Minha flor estará ameaçada de próxima desaparição?

— Sem dúvida.

Minha flor é efêmera, disse o principezinho, e não tem mais que quatro espinhos para defender-se do mundo! E eu a deixei sozinha!

Foi seu primeiro movimento de remorso. Mas retomou coragem:

— Que me aconselha a visitar? Perguntou ele.

— O planeta Terra, respondeu-lhe o geógrafo. Goza de grande reputação…

E o principezinho se foi, pensando na flor.

Fonte:
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe (com aquarelas do autor). Tradução: D. Marcos Barbosa. 17. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1974, cap. XV, pp. 54-58.

* Antoine de Saint-Exupéry (Lyon, 29 de junho de 1900 — Mar Mediterrâneo, 31 de julho de 1944), foi um escritor, ilustrador e piloto francês. “O Pequeno Príncipe” foi publicado em 1943 e foi o grande sucesso de Saint-Exupéry. A obra vendeu mais de 200 milhões de exemplares em todo o mundo. O autor, no entanto, morreria um ano depois da publicação do livro e não testemunhou o seu sucesso

Credo de Dom Quixote

“Dom Quixote lutando contra os moinhos de vento”. Ilustração de G. A. Harker. Ano: 1910.

Por Mário Ferreira dos Santos *

Creio na sabedoria divina criadora do cosmos; creio no cavalheirismo dos libertadores de bons prisioneiros; creio no amparo aos perseguidos, e aos necessitados, ávidos de justiça e de liberdade.

Creio no orgulho ante os poderosos; na justiça ante os maus; na magnanimidade ante os bons e os mansos, na delicadeza ante as mulheres e as crianças.

Creio na coragem; no domínio dos desejos e no amor eterno.

Creio na vida e na morte; amo as sombras dos bosques e a luz plena do meio-dia.

Creio na cavalaria andante, realização suprema do homem bom e viril.

Creio que há sempre um ideal a conquistar; feiticeiros que combater, duendes que enfrentar, e monstros que destruir.

Creio na necessidade do mal para maior glória do bem.

Creio na noite para maior glória do sol, e no sol para maior glória da lua, inseparáveis amigos e confidentes dos campeadores do ideal.

Fonte: Da obra “Páginas Várias“, Editora Logos, 2ª edição, 1963, p. 194. (Coleção “Antologia da Literatura Mundial“).

* Mário Dias Ferreira dos Santos (1907-1968) foi um filósofo, tradutor e escritor paulista. Traduziu obras de diversos autores e escreveu livros sobre diversos temas, publicados sob o nome “Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais“. Ele também desenvolveu seu próprio sistema, nomeado de “Filosofia Concreta“. Foi um dos poucos estudiosos brasileiros do chamado anarquismo cristão, tendo sido ativo participante do “Centro de Cultura Social“, um dos mais importantes núcleos anarquistas de São Paulo.

As abelhas

Imagem de satélite mostrando o Sudeste do Brasil, Paraguai, Uruguai e nordeste da Argentina, à noite. Fonte: NASA. Ano: 2012.

O sábio terrestre examina o enxame de abelhas, cuja organização ele considera um exemplo para os homens…

Observa as rainhas, os zangões e as obreiras. Parecem-lhes inteligentes, pois o trabalho e a criação de reservas demonstram não só uma ordem preestabelecida como também certa previsão.

Com carinho estuda a sua incipiente agricultura.

Mas o homem é inteligente, disso não resta dúvida (são os próprios homens que o afirmam), mas as abelhas e as formigas também podem ser consideradas inteligentes.

O sábio terreno, que as examina, faz essas apreciações com método e segurança. As abelhas de hoje pouco diferem das abelhas dos tempos homéricos, mas diferem. E essa diferença apresenta uma evolução que merece ser apreciada.

E continua a estudá-las, com carinho e com método.

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Em sua torre diáfana, o sábio da sétima constelação estuda o globo terráqueo. Através da imensidade do infinito, com seus aparelhos, examina a vida dos habitantes da Terra.

E ao investigá-los, com carinho e com método, o que aliás é apanágio de todos os sábios, fornece ao discípulo estas considerações que podemos traduzir com estas palavras:

− Inegavelmente, esses animalículos terrestres são bem interessantes. Apresentam fórmulas diferentes de construção, de uma variedade contrastante. São um pouco diferentes, mas vivem juntos. Deixam-se atrair muito pela luz. Vejo nos seus enxames, que os lugares mais iluminados possuem maior número deles. Correm pelas alamedas para salvarem-se de veículos que os podem esmagar.

Parecem ter uma certa ordem na vida, mas às vezes, vejo-os desordenados. Matam-se uns aos outros em lutas ferozes. Não os compreendo bem nesses momentos. Possuem, entretanto, uma certa evolução, pois já criam animais, já tiram da terra os alimentos, constroem máquinas… Talvez pudesse afirmar que são realmente inteligentes…

E continuou a estudá-los, com carinho e com método.

Fonte:

Mário Ferreira dos Santos, “Páginas Várias”, 1963, pp. 210-211.

A vida imita o cinema

Três estrelas decadentes da sétima arte.

Por Mário Ferreira dos Santos

O cinema tem ido buscar na vida o tema para os seus mais eloqüentes dramas. E muitos olhos humanos têm chorado as dores e as tragédias das heroínas da tela e os corações têm pulsado ante a emoção da vitória dos seus heróis. O cinema tem imitado a vida. Muitas vezes tem-na enobrecido, ornamentando-a com histórias fugidas da realidade, e que povoam os sonhos, de ilusões, terminando, quase sempre com o clássico “happy end”, tão a gosto das platéias vulgares.

Há pouco tempo, o cinema projetou, na tela da tela da vida, esse final de filme: É outono e o vento varre as ruas de Nova Iorque. Num tribunal, uma mulher comparece. A voz é apagada e as roupas envelhecidas não escondem um certo porte aristocrático. No rosto descuidado, perduram ainda os traços de uma beleza apagada:

— Sr. Juiz, meu pedido é o mais justo. Tenho uma filha e o meu ex-marido, pai dessa menina, é rico. Ele bem poderia dar uma pensão que permitisse continuar a educação de minha e de sua filha, que está num colégio, onde trabalha para poder se educar.  Como não tenho nada e vivo miseravelmente e sem trabalho, sou forçada a tirá-la do colégio, e ela terá que seguir os azares da vida, sem ter recebida a educação necessária que lhe garanta o seu futuro. Estou com muitas mensalidades atrasadas e, ultimamente, tudo me tem corrido mal. Não tenho a quem apelar, senão ao pai de minha filha. Ele é o príncipe M’Divani, e nega-se a atender-me. Por isso recorro, hoje, à justiça.

O juiz franze a testa e carrega o sobrolho. Põe sobre a mulher o seu olhar profissional, admira aqueles cabelos louros desalinhados, e observa atentamente em silêncio o vestido velho que cobre o seu corpo. Por sua imaginação, talvez passem reminiscências de emoções que já experimentara. Talvez recorde ainda trechos de músicas que não se apagaram de sua memória, e tenho nos olhos uma imagem quase desfeita de cenas que já vivera. Fecha levemente os olhos como para fitar melhor, e diz lentamente:

— Não está você em condições de sustentar a sua filha?

— Não, sr. juiz…

— Não ganhou você milhares de “dólares” no cinema e no teatro?

— Sim, ganhei… – responde ela abaixando a cabeça – ganhei… mas hoje estou na miséria. Não tenho casa, nem sempre tenho o que comer…

— Isso é incrível!!! Onde mora você, Mae Murray?

— No Parque Central, sr. juiz. É ali, num banco, que eu tenho passado estas três últimas noites…”

Mae Murray, a estrela que dominou o céu cinematográfico até 1929, a intérprete de “Viúva Alegre”, “Saxofonomania”, “Fascinação”, e tantos outros que foram os grandes êxitos do passado, não tem casa, não tem roupa, não tem com quem possa educar a sua filha.

Dirão: por que não foi providente e não juntou o necessário para garantir o seu futuro? Mas é o triste destino das cigarras humanas, esse. Aqueles que levam a vida dando o seu trabalho inteligente para divertir as multidões, que pararam à luz da ribalta para receber os aplausos das platéias emocionadas, nem sempre possuem o espírito utilitário e providente dos seres “normais” e comuns. Vivem a glória do momento que os embriaga, e o dia de amanhã é sempre algo longínquo que os olhos não vêem como uma fatalidade. São anormais ante a normalidade corriqueira da vida. E a miséria é, às vezes, o epílogo de suas glórias.

John Gilbert, outro grande astro do passado, galã de celulóide que arrebatou os corações femininos, morreu na mais extrema miséria.

O grande David Griffith, o diretor máximo da tela dos tempos do cinema mudo, viveu implorando, de estúdio em estúdio, que lhe dessem um pouco de trabalho, e lhe concedessem mais uma oportunidade, pois sabia que ainda tinha talento para criar algo de belo e imenso.

Não é de admirar que hoje os artistas sejam utilitários, porque hoje vivemos num mundo apenas utilitário, até que o homem, faminto de idéias, vá procurá-los outra vez.

Texto extraído do livro “Páginas Várias”, 2. ed., 1963, pág. 170 – 172, do filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos.