Faço aqui algumas breves considerações sobre a cartografia turística do município de Cunha e as regionalizações impostas pela Secretaria de Turismo de São Paulo e pelo Ministério do Turismo.
Cartografia
Esse mapa turístico de Cunha vem sendo reproduzido e impresso pela Prefeitura, com algumas alterações, desde o início deste século. Foi criado pelo designer cunhense Wagner Oliveira. Sem dúvida, é muito bonito e elegante, mas peca nos aspectos cartográficos. Prevalece os aspectos estéticos sobre os técnicos. A cidade de Cunha, como se nota, está ampliada e o restante que do plano, que cobre o município, está em escala menor. Esse tipo de representação acarreta muitas distorções e gera confusão em que lê esse mapa. Geralmente, quando se amplia parte de uma peça cartográfica, a representação em escala maior aparece fora do plano geral, no canto e/ou destacada, a fim de chamar a atenção e não iludir quem realiza a leitura. Ademais, os pontos turísticos de Cunha, diferente de Campos do Jordão, por exemplo, não estão concentrados no perímetro urbano, mas dispersos pela nossa extensa área rural. Desse modo, ainda que o objetivo dessa técnica seja permitir a localização dos pontos turísticos e empreendimentos turísticos dentro da cidade, acaba atrapalhando a localização dos lugares similares que estão na zona rural, já que, como escrevi, Cunha não tem seus pontos e empreendimentos turísticos concentrados na zona urbana. A falta de uma escala mais próxima à realidade, sobretudo nos trechos rurais, tem gerado muitas frustrações nos turistas que se guiam por esse mapa, quando percorrem os roteiros que haviam traçado.
Outro problema é a quantidade de informações que são apresentadas e representadas. Como o número de empreendimentos turísticos em nosso município vem aumentando a cada ano, à medida em que esses mapas são atualizados, ficam cada vez mais poluídos e carregados, o que compromete a leitura e a estética da peça gráfica. A solução pode estar na seleção das informações fornecidas ou na criação de um mapa digital para o turismo cunhense, através de um aplicativo para smartphone, por exemplo. Com os mapas digitais não só a atualização pode ser feita de maneira mais rápida e econômica, como a quantidade de informações pode ser resolvida com a criação de camadas selecionáveis, onde o próprio usuário pode decidir o que ele quer ver e localizar.
Regionalizações
Cunha era uma estância climática desde 1948. Foi a primeira do estado, antes até de Campos do Jordão. Na verdade, era para ser estância hidromineral devido às fontes da “Águas Virtuosas de Santa Rosa”. Mas, por pressões políticas de alguns deputados federais, insuflados pelos municípios que já gozavam desse “status” e acesso ao orçamento estadual, acabou se tornando uma estância climática (VELOSO, 1995, p. 12). Nessa batalha de Cunha atuaram dois políticos da época: deputado estadual Sebastião Carneiro da Silva (PSD), grande batalhador das causas valeparaibanas, e o governador Ademar de Barros (PSP), ex-combatente do serviço médico do Exército Constitucionalista, tendo servido na frente de Cunha. Na década de 1940, o dr. João Lellis Vieira, cunhense “da gema” e articulista do jornal “Correio Paulistano”, aproveitava o espaço que tinha para provocar Campos do Jordão, exclamando que Cunha, ao contrário daquela estância da Mantiqueira, era “climatericamente a Suíça Brasileira!”. Puro bairrismo. E um monólogo inócuo. Em nada abalou a reputação de Campos do Jordão, construída pelo próprio governo estadual, visando massagear o ego e ofertar um “plano B” para as quatrocentonas falidas, que já não dispunham de bufunfa para visitar a Suíça (de verdade) …
Em 2015, o artigo 7º, da Lei Complementar nº 1.261 do estado de São Paulo, que “Estabelece condições e requisitos para a classificação de Estâncias e de Municípios de Interesse Turístico e dá providências correlatas”, prescreveu que “os municípios classificados por lei como Estâncias Balneárias, Hidrominerais, Climáticas e Turísticas passam a ser classificados como Estâncias Turísticas, sem prejuízo da utilização da terminologia anteriormente adotada, para efeito de divulgação dos seus principais atrativos, produtos e peculiaridades.” Assim, ainda que a Prefeitura de Cunha mantivesse a divulgação do título de “Estância Climática”, oficialmente passou a ser “Estância Turística”. Na parte que interessa à Municipalidade, o acesso à verba extra do orçamento estadual para fomentar o turismo local, nada mudou. Portanto, nenhum estardalhaço foi gerado. A questão que se pôs a partir de então foi como o Governo Estadual organizaria e enquadraria os municípios turísticos.
Em um primeiro momento, a Secretaria de Turismo estadual lançou um documento para orientar as prefeituras sobre as mudanças ocorridas por força da nova lei. Assim, naquele momento, São Paulo estava dividido turisticamente em 15 macrorregiões e subdividido em 34 regiões turísticas englobando todos os 645 municípios paulistas (SÃO PAULO, 2015). Cunha pertencia à “Macrorregião do Vale do Paraíba” e à “Região Turística do Vale do Paraíba e Serras”. Basicamente, a Secretaria seguiu a regionalização histórica já existente, sem inventar moda. No mesmo documento, ao aprofundar a regionalização, a Secretaria criou os “Circuitos Turísticos”, uma sub-regionalização das regiões turísticas. Cunha, por sua vez, integrava, simultaneamente, o “Circuito Cultura Caipira”, junto com outros municípios do Alto Vale, e o “Roteiro do Vale Histórico”, junto com os municípios do “garoupas”. Essa regionalização era bastante condizente com a realidade e a história local, valorizando os aspectos culturais de Cunha e adjacências.
A referida Lei Complementar reconhecia 13 segmentos de turismo: Social; Ecoturismo; Cultural; Religioso; Estudos e de Intercâmbio; de Esportes; de Pesca; Náutico; de Aventura; de Sol e Praia; de Negócios e Eventos; Rural; de Saúde. Sendo que Cunha estava segmentada dentro de uma região de turismo cultural, cuja definição, dada pela mesma lei é a que segue: “compreende as atividades turísticas relacionadas à vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais da cultura”. Ainda que não seja a melhor para descrever o turismo cunhense era mais condizente que o enquadramento dado, por exemplo, ao turismo religioso, que é definido assim: “configura-se pelas atividades turísticas decorrentes da busca espiritual e da prática religiosa em espaços e eventos relacionados às religiões institucionalizadas, independentemente da origem étnica ou do credo”. Entretanto, a partir de 2017, Cunha passou a integrar a “Região Turística da Fé”, junto com Aparecida, Cachoeira Paulista, Guaratinguetá etc. mesmo não sendo um centro de peregrinação religiosa como esses municípios.
O que se vê é que nem o próprio Governo conseguiu superar a utilização e categorização das estâncias (turísticas, climáticas e hidrominerais), ainda que oficialmente tenha sido proscrita. O termo “municípios turísticos” ou “estância turística” ainda não foi plenamente assimilado pelas pastas estaduais. E muito menos pelos municípios, empresários, guias e população em geral. Por óbvios motivos políticos e eleitorais, em 2016, uma lei estadual criou a categoria “Municípios de Interesse Turístico”, ampliando em mais 140 o número de municípios paulistas com acesso ao filão orçamentário para “incrementar o turismo”.
Interessante notar que até no site desenvolvido pelas prefeituras da Região Turística da Fé, a foto de Cunha na página inicial é a única não remete à religião ou às igrejas, apresentando a foto de uma das dezenas de cachoeiras do município na chamada da página inicial. Ainda que as festas religiosas de Cunha sejam seculares e possam atrair turistas, elas são expressões de fé da população local e não um evento de cunho turístico. São manifestações de fé genuínas e não eventos comerciais de fundo religioso. Talvez a única exceção dentro dessas manifestações seja a Festa de Sá Mariinha das Três Pontes, em cujo lugar há até um pequeno centro de apoio ao romeiro, mas ainda assim são romeiros de Cunha e adjacências que vistam o local, ou seja, devotos da própria região e que estão no mesmo meio cultural. Diferentemente de Aparecida, Cachoeira Paulista e Guaratinguetá, que são centros nacionais do Catolicismo, e atraem fiéis até de outros países e em contingentes impensáveis para as festas religiosas de Cunha.
A descrição para caracterização da Região Turística da Fé é ambígua. Vejamos: “A Região Turística da Fé se destaca como uma das mais belas do país, está localizada no eixo Rio x São Paulo entre as Serras da Mantiqueira, da Bocaina e do Mar. São 08 municípios no Vale do Paraíba que estão unidos pelo desenvolvimento do turismo regional: Aparecida, Cachoeira Paulista, Canas, Cunha, Guaratinguetá, Lorena e Piquete. Com um grande número de santuários e belezas naturais a região proporciona uma experiência única de fé, contemplação e atividades turísticas em meio das lindas paisagens de serras e rios nos mais variados tipos de turismo e seus atrativos: turismo religioso, turismo rural, turismo cultural, de esportes, de aventura, ecoturismo, negócios e eventos, náutico e gastronômico.” (grifo meu) (REGIÃO TURÍSTICA DA FÉ, 2020). Como se nota, não se sabe ao certo qual o tipo de turismo a desenvolver, porque uma coisa é atrair e acolher romeiros e outra coisa é desenvolver o ecoturismo. No encontro que culminou em um estatuto para os municípios integrantes da RT da Fé, afirmou-se que: “(…) muitos projetos possam acontecer na Rota da Fé, tanto focando a religiosidade regional, como investimentos na infraestrutura (…)” (grifo meu) (PREFEITURA DE APARECIDA, 2019). Ora, como Cunha focar seu investimento em eventos religiosos, se quase todas suas festas turísticas são laicas e comerciais?
Praticamente quase todos os tipos de turismo praticados no Brasil são citados como a ser desenvolvido pela Região Turística da Fé. É claro que a diversificação das atividades turísticas é desejável, mas no caso parece que os mentores municipais estão meio perdidos quanto aos objetivos e metas a serem traçadas. Ter colocado Cunha no meio desses municípios engrossou o caldo da confusão, sem dúvida. Quem dá enfoque em tudo acaba não priorizando nada. Não há nenhum elemento caracterizador, ainda que o turismo religioso preceda os demais e seja citado “um grande número de santuários”, para logo em seguida já destacar as “belezas naturais”, que uma caracterização tão genérica, que pode aparecer na descrição da maioria das regiões turísticas do mundo. O fato é que Cunha não conta com santuários e nem é visitada por motivos religiosos. Na página de Cunha, no site da Região Turística da Fé, até são citadas as festas religiosas, mas os destaques são para os campos de lavandas, cachoeiras e às festas ligadas ao clima serrano. Faria mais sentido, penso eu, alocar Cunha na região vizinha, do “Rios do Vale”, que engloba parte dos municípios do Alto Vale do Paraíba. Pelo menos em nosso território nasce o rio Paraibuna, no bairro da Aparição, e ganha corpo o rio Paraitinga, que desce da Serra da Bocaina. Associar a beleza natural a alguma ação contemplativa de fé em nosso município é um grande disparate, a menos que Cunha tenha algum centro de peregrinação xamânica e ninguém nos avisou de nada…
Não se pode criar regionalizações em gabinetes, desconsiderando a história e desenvolvimento de cada lugar. Canetadas de políticos não devem preceder e prevalecer sobre o trabalho científico de geógrafos e turismólogos.
Considerações finais
Atualmente, a maior parte das pessoas que visitam Cunha utiliza para encontrar os destinos almejados as plataformas cartográficas digitais, como o Google Maps (por exemplo), por serem mais simples, acessíveis e atualizadas. Acessíveis até certo ponto, convenhamos, já que em uma boa parte da zona rural de Cunha não há sinal de celular e, consequentemente, de internet. Entretanto, ainda que venha caindo em desuso e estejam condenados, os mapas turísticos impressos de Cunha precisam equilibrar os aspectos artísticos e técnicos na sua apresentação, tornando-se um instrumento de localização mais útil a quem se destina: os turistas.
Com relação à regionalização turística a que Cunha foi submetida, compete à Prefeitura, através de seu corpo técnico, e ao Conselho Municipal de Turismo de Cunha (COMTUR) questionar esse enquadramento alheio à realidade do turismo local: ao seu desenvolvimento e história, à sua tipologia e às potencialidades que apresenta. Inclusive, o planejamento turístico estadual aponta que um dos objetivos estratégicos para o setor é “promover a atuação articulada de agentes públicos e privados na implantação de empreendimentos e produtos turísticos nacionais ou internacionais, que aproveitem as vocações e potencialidades dos municípios e regiões do Estado de São Paulo.” (SÃO PAULO, 2020, p. 37). E ainda, no mesmo documento, estabelece que o “incentivo e valorização das iniciativas que fortaleçam a identidade local e regional dos destinos turísticos” e a modernização e ampliação das “estratégias de marketing e comunicação de destinos, produtos e serviços turísticos ofertados no Estado de São Paulo nos níveis municipal, regional, nacional e internacional” (SÃO PAULO, 2020, pp. 44-45) são estratégias prioritárias para fomentar o turismo paulista na próxima década. Trata-se de uma regionalização totalmente deslocada, no tempo e no espaço. E que pode comprometer nosso desenvolvimento turístico se for seguida e houver direcionamento de investimentos.
Cunha viveu nesse primeiro quinquênio da pavimentação completa da rodovia que liga a cidade a Paraty (RJ) um crescimento nunca visto do seu turismo. O fluxo cada vez maior de pessoas que se dirige às praias da Costa Verde fluminense e para o Litoral Norte paulista transformou nossas montanhas em vitrine e propaganda ininterrupta do lugar. É um outdoor vivo e verdadeiro dos dois lados da pista da rodovia SP-171. Entretanto, é preciso planejar e aprimorar as atividades turísticas que acontecem aqui, para gere renda e traga benefícios para todos os cunhenses e que seja sustentável, ecologicamente e financeiramente, nas próximas décadas.
Referências:
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