Entrevista com o professor Victor Amato dos Santos

Montagem sobre foto de Chayeni Fiorelli.

O professor Victor Amato dos Santos é figura conhecida e querida no cenário cultural cunhense. Uns o conhecem por ser o maestro da União Musical Cunhense, a banda de Cunha, que sempre se faz presente nas nossas festas cívicas e religiosas. Outros recordam dele na Banda Furiosa, com as marchinhas que alegravam os foliões nas tardes de Carnaval. E tem aqueles que acompanham as suas postagens no grupo “Memória Cunhense”, no Facebook. Ele está sempre publicando um texto ou nota sobre algum cunhense inolvidável, sobre alguma tradição da nossa gente ou algum dobrado ou samba de sua autoria. O Victor é professor de Língua Portuguesa na Escola Estadual Paulo Virgínio. Trabalha diariamente com a escrita. E foi assim, escrevendo, que ele nos presenteou com dois livros: “A História do Carnaval de Cunha”, em 2012, e a “A História da Música em Cunha”, em 2014. São obras que vêm do seu interesse por história e são frutos do seu amor por Cunha. Por isso, estamos no aguardo da terceira. Será que sai? Para responder essa e outras perguntas, pedi que nos concedesse uma entrevista. Ele é incentivador antigo do Jacuhy, quando ainda estávamos no ninho. E ele, prontamente e gentilmente, nos atendeu.

Jacuhy: Primeiramente, Victor, eu agradeço a sua boa vontade em conceder esta entrevista, tirando um tempinho das suas merecidas férias.  É sempre uma honra contar com o seu apoio e parceria, pois você é uma referência para todos nós que amamos, lutamos e defendemos a História e as Tradições de Cunha. E é sobre isso que gostaria de começar a nossa conversa. Em 1971, o antropólogo estadunidense Robert W. Shirley lançou o livro “O fim de uma tradição” (depois, em 1977, traduzido para o português pelo professor João Veloso), fruto das pesquisas de campo realizadas por ele em Cunha, na década de 1960. A conclusão a que ele chegou foi de que o fim das tradições de Cunha era iminente, em virtude do êxodo rural, do avanço da industrialização e do fim do isolamento de Cunha, rompido pela popularização da mídia eletrônica, pelas ligações rodoviárias e pelos projetos estatais de integração. Você, como agente cultural e estudioso do assunto, olhando em 2023 para a conclusão do antropólogo Shirley, como a enxerga? Acertou? Equivocou-se? E ainda sobre o assunto, qual é a situação dos grupos tradicionais e folclóricos de Cunha atualmente?

Victor: Primeiramente, agradeço as suas considerações a meu respeito. Seu empenho no sentido de aprofundamento sobre as pesquisas já realizadas sobre Cunha é admirável!

Sobre a questão levantada, graças a Deus Shirley se equivocou em relação às previsões de desaparecimento da cultura cunhense, apresentadas em “O Fim de uma Tradição”.

Cunha, como poucos lugares, soube receber as novidades do mundo atual, mas sem deixar para trás as suas raízes mais profundas dos antigos costumes, muitos ainda dos tempos da formação da Povoação oficial e da Fundação da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão. Estão aí as festas de São José da Boa Vista, de São Benedito, do Divino e da Padroeira; o carnaval de rua; a tradicional Semana Santa; o boneco do Judas; as folias de Reis (da cidade e da zona rural) e do Divino Espírito Santo; as congadas (moçambiques); os violeiros; o jongo; a banda de música – que já tem quase dois séculos de existência –; os benzedores; os artesãos e ceramistas; dentre outras manifestações de cultura e de religiosidade popular de não menor importância que as citadas. Vivíssimas no presente, comprovam em plenitude o que afirmo aqui. Esses elementos são aquilo que verdadeiramente atrai o turista para o nosso Município, aliados à paisagem natural exuberante de que dispomos e da qual, responsavelmente, temos o prazer de desfrutar.

Aliás, como um dos que trabalham dentro desse círculo das tradições cunhenses, ainda não vi acontecer qualquer trabalho de resgate de manifestações culturais do nosso município, mas sim um grande empenho de todos os líderes e membros de cada respectivo agrupamento cultural em mantê-los em pleno vigor – só deve ser resgatado aquilo que foi perdido; e, graças a Deus novamente, não tivemos perdas nesse sentido por aqui!

A banda União Musical Cunhense no topo da Pedra Marcela, em 2013, na gravação da música “Aqui é o meu lugar”, tema da TV Vanguarda. Foto: Bethânia Fochi.

Jacuhy: Em novembro de 2021, você surpreendeu a todos anunciando o fim da participação da Banda Furiosa, que alegrava os foliões com suas marchinhas, no carnaval de Cunha. Sua decisão, segundo o que escreveu, foi motivada pelo cumprimento do papel educativo que Banda Furiosa buscava exercer nos 15 anos que participou do carnaval, formando, nas suas palavras, uma “geração que soubesse brincar o carnaval sem os excessos que o caracterizam (…) dar espaço para o encontro saudável entre gerações (crianças, pais, avós e bisavós), que só demonstraram Educação, alegria inocente, satisfação e afins para compartilhar.”. Acrescentou, ainda, que seus problemas de saúde dificultavam muito o seu serviço à frente da Banda. Esse foi um adeus definitivo ou temporário do carnaval? A Banda Furiosa vai continuar abrilhantando as festividades cívicas e religiosas do município? Quais são os desafios que a Banda Furiosa enfrenta para manter-se viva e atuante, como tem sido desde sua formação?

Victor: Há de se diferenciar, primeiro, a banda de música da cidade – que já é quase bicentenária – do conjunto Banda Furiosa, criado por mim em 2005 para realizar as matinês no carnaval cunhense.

Se o conjunto carnavalesco encerrou suas atividades por ter, como expliquei, atingido o propósito para o qual foi criado, a banda de música tradicional – hoje União Musical Cunhense — encontra-se em pleno funcionamento, e espero que assim continue por muitos e muitos anos.

Não posso deixar de mencionar que todos os que nos dedicamos aos trabalhos à frente de cada grupo da tradição e da cultura de Cunha nos vemos, frequentemente, diante e nas mãos de pessoas que têm tudo para nos dar o devido apoio; mas, em incontáveis vezes, elas se deixam levar pelo orgulho, pela vaidade, pela inveja e pela ganância, o que nos traz desmotivação pelos desgastes desnecessários pelos quais nos vemos obrigados a passar. Com a Banda Furiosa não foi diferente. Foi também por isso que decidi encerrar suas atividades no carnaval de Cunha.

Na União Musical Cunhense, que atualmente tem participado mais e de forma gratuita das festividades da Igreja Católica local, enquanto eu fizer parte da mesma e tiver condições para tanto, estarei a ensinar os princípios da Arte Musical para crianças e jovens, com a intenção de realizar a necessária reposição de elementos, para a preservação deste que é o grupo musical mais antigo de Cunha. Sou o nono maestro nesses quase duzentos anos de existência da nossa banda de música, e já formei inúmeros músicos, com a colaboração do meu amigo Tonico Capítulo, nesses meus já 35 anos de atuação como multi-instrumentista, professor de Música e maestro. Deus continue a me conceder a saúde e a orientação necessárias para continuar esses trabalhos.

Marchinha da Banda Furiosa, de autoria de Victor Amato dos Santos. Vídeo cedido pelo entrevistado.

Jacuhy: Depois de muitos anos trabalhando nas secretarias das escolas por onde passou, você retornou para sala de aula, atuando com professor de Língua Portuguesa. Essa volta quase que coincidiu com um momento importante para a rede estadual aqui em Cunha, que foi a adesão de todas as escolas ao programa de tempo integral. Como você vê esse programa? Quais são suas expectativas em relação a ele?

Victor: Sabe, nunca trabalhei especificamente em secretaria de escola nesse período em que tive de, contrariado, me afastar, por questões de saúde, das atividades em sala de aula: organizei ricos acervos de multimídia; pintei faixas divisórias de vagas em estacionamento interno de escola; tendo a devida formação para tanto, fiz diversos trabalhos de encanador e de eletricista; desentupi redes sanitárias; montei salas de leitura; ajudei em secretaria e em cozinha (manutenção de equipamentos e de instalações, com o devido conhecimento técnico); e, principalmente, atendi ao professor João Veloso em suas atividades histórico-culturais e às Redes Pública (Municipal e Estadual) e Particular de Educação em nosso Município. Isso sem deixar a nossa banda de música para trás, e também atendendo a muitos pedidos das Secretarias Municipais de Educação e de Turismo e Cultura.

Por isso é que tenho me sentido bastante cansado, física e mentalmente.

Quanto ao PEI (Programa de Ensino Integral), este continua a ser observado por mim. Não tenho ainda opinião formada sobre os resultados que ele poderá trazer à população cunhense. É preciso que eu trabalhe, como professor de Língua Portuguesa, mais este ano de 2023 nesse projeto do Estado de São Paulo, para que as devidas observações sejam feitas e, desse modo especificamente, eu possa continuar o meu aprimoramento como profissional da Educação.

Capas dos livros de história de Cunha lançados pelo professor Victor Amato dos Santos.

Jacuhy: Em 2017, você esteve coordenou o movimento que buscava retificar a data de aniversário de Cunha, estabelecendo o dia 19 de março de 1724 como data de fundação do município. Tanto o Legislativo quanto o Executivo Municipal acolheram a mudança proposta, visto que foi amplamente embasada em fontes históricas e corroborada pelo livro “A História de Cunha: 1600 – 2010” e pelo próprio autor, o professor João Veloso. Algumas pessoas na época não gostaram e protestaram pelas redes sociais, dizendo que era uma questão irrelevante. Por que você insistiu para que ocorresse essa retificação? O que Cunha ganhou com essa mudança?

Victor: Foi um esforço sobre-humano o que fiz para que fosse aprovada, pelo Legislativo e pelo Executivo Municipais, a necessária retificação da data histórica da Fundação de Cunha e as consequentes adaptações, com base na tese mais que coerente do Professor João Veloso, publicada em 2010 sob o título “A História de Cunha – 1600-2010 – A Rota de Exploração das Minas e Abastecimento das Tropas”.

A saúde frágil do nosso historiador João Veloso já dava sinais de que ele não estaria mais por muito tempo entre nós; daí ser necessária, para que ele fosse reconhecido oficialmente em vida pelo seu trabalho, uma ação urgente, que foi respaldada pelo então prefeito Rolien Garcia e pela maioria dos vereadores daquele período – como você sabe, houve quem votasse contra a retificação… –; além do auxílio de colaboradores da causa, como você mesmo, o Joás Ferreira de Oliveira, a maioria dos colegas de trabalho das escolas públicas e particulares do nosso Município e, principalmente, da maioria da população cunhense.

Isso agregou maior valor histórico, cultural, social e antropológico a Cunha, o que se reflete nitidamente nos aspectos que dão embasamento ao movimento em torno do turismo, ao qual Cunha tem se dedicado com afinco nessas últimas três décadas.

Enfim, tudo foi posto no devido lugar, para que, com o respaldo das pesquisas do Professor João Veloso, pudesse ser devidamente preservado.

Em família: Victor e os integrantes da Banda Furiosa, sempre alegrando as tardes do Carnaval de Cunha.

Jacuhy: Com a retificação e o estabelecimento do ano de 1724 como data de fundação, aproximou-se de todos nós a comemoração dos 300 anos de fundação de Cunha, afinal, 2024 é ano que vem. O que você espera, em termos de eventos, em relação a essa comemoração? Qual seria o maior presente para Cunha nesse tricentenário?

Victor: O movimento em torno das comemorações do Tricentenário de Fundação de Cunha já deveria estar acontecendo intensamente, com o envolvimento de todos os setores da sociedade local.

Para tanto, a Paróquia Nossa Senhora da Conceição, sob o comando do Padre Fábio Nogueira de Sá e com bastante auxílio de minha parte, já promoveu a restauração da imagem de Nossa Senhora da Conceição do Facão, e também   das imagens da Sagrada Família da Boa Vista; isso sem contar as restaurações de templos históricos como a Capela da Boa Vista (o “Berço” de Cunha), a matriz e a igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.

Ainda em forma de lei municipal, há uma “receita” para serem desenvolvidos todos os atos necessários a uma comemoração à altura da data tão importante a todos nós. Espero que a legislação municipal correspondente seja cumprida plenamente, para que tudo saia como tão importante momento exige.

A banda União Musical Cunhense presente na Procissão das Bandeiras, na Festa do Divino Espírito Santo de Cunha, em 2018. Foto: Chayeni Fiorelli.

Jacuhy: Em seu livro “A História da Música em Cunha”, escrito junto com o professor João Veloso, lançado em 2014, você demonstra que existe uma tradição musical muito antiga – e rica – em Cunha. No início do século XXI, você participou e ajudou a implementar um projeto de educação musical na Escola Estadual Paulo Virgínio, que foi um sucesso e rendeu frutos. Alguns integrantes da Banda, por exemplo, foram formados no projeto. Sabendo da importância da formação musical para crianças e jovens para dar continuidade a essa tradição cunhense, existe a viabilidade de um projeto similar aquele que foi implantado há 20 anos ser implantado em alguma escola de Cunha? Quais contribuições o ensino de música pode trazer para aprendizagem dos alunos?

Victor: Depois do período a que você se refere – ano 2001 –, já houve formação de outros vários integrantes, mas na garagem da minha casa – que por certo tempo, foi usada como sala de ensaios e de aulas de Música –; e, a partir de 2011, na atual sede da banda (atrás do cinema).

A formação de novos músicos é um processo contínuo, que tem de ocorrer pelo menos a cada quinquênio; ou então a banda entra em decadência por falta de componentes e se encaminha para a extinção. Nunca cobrei um centavo sequer de quem aprendeu Música comigo nessas últimas três décadas em que me dedico à manutenção plena da nossa banda de música. E já está chegando a hora de eu formar uma nova turma de músicos, com o auxílio, na parte prática, dos membros mais antigos da banda. Talvez essa parte teórica inicial seja ministrada ainda este ano por mim na disciplina Eletivas, do PEI, mas ainda não estou certo disso.

Dobrado João Veloso, de autoria de Victor Amato dos Santos, tocado pela banda União Musical Cunhense. Homenagem feita ao professor João Veloso em 2017.

Jacuhy: Foi uma grande perda para Cunha o falecimento do professor e historiador João José de Oliveira Veloso, ocorrido em 30 de novembro de 2020. Ele foi um mestre para todos nós. Você, como amigo e admirador do professor João Veloso, foi a pessoa que mais lutou para que ele tivesse o merecido reconhecimento em vida, fazendo tudo o que estava em seu alcance. Qual é o principal legado deixado pelo professor João Veloso? O que o Centro de Cultura e Tradição de Cunha, o Museu Municipal Francisco Veloso e o COMPHACC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural de Cunha), entidades criadas por ele, podem fazer para tentar preencher a lacuna que a ausência do professor provocou, dando continuidade ao trabalho do João Veloso?

Victor: Acima dos resultados que o Professor João Veloso conseguiu atingir através das pesquisas que realizou durante aproximadamente 5 décadas, creio que o maior legado deixado por ele é o amor incondicional por Cunha.

Sua ausência física deixou incontestavelmente uma lacuna muito difícil de ser preenchida, uma vez que esse preenchimento exige não só habilidades intelectuais, mas também uma paixão sadia por esse nosso “Mar de Morros”, tal qual a que ele sempre soube cultivar e preservar intacta dentro de si.

Vê-lo reconhecido em vida e tão emocionado com tal atitude, esse foi um dos maiores presentes que os meus olhos já puderam contemplar. Sou muito feliz e grato a Deus por isso.

Quanto aos trabalhos do Museu Francisco Veloso e do Centro de Tradição e Cultura de Cunha, tive de me afastar temporariamente dos mesmos, por conta das minhas atividades profissionais, que se intensificaram com a chegada do PEI à EE Paulo Virgínio, onde trabalho. Mas creio que tudo esteja correndo bem por lá. Estão em boas mãos, principalmente nas das funcionárias, sempre tão dedicadas e muito bem formadas pela convivência de décadas com o Professor João Veloso.

João Veloso, Victor e integrantes da banda União Musical Cunhense no lançamento do livro “A História da Música em Cunha”. Data: 2014. Foto: Geraldo Magela Tannus.

Jacuhy: Victor, você já publicou dois livros sobre a História de Cunha (“A História do Carnaval de Cunha”, 2012; “A História da Música em Cunha”, 2014) e contribuiu com um de poemas (“Poetas de Cunha”, 2007, organizado pelo saudoso professor Ernesto Veloso dos Santos). Tem sido um colaborador assíduo do grupo “Memória Cunhense”, no Facebook, sempre trazendo biografias de cunhenses inesquecíveis. Nós, seus leitores e admiradores, podemos esperar mais um trabalho seu? Se sim, pretende escrever um trabalho de cunho memorialista/biográfico ou publicar os seus poemas?

Victor: Tenho mais materiais que, com o tempo, eu gostaria de transformar em livros para publicá-los. Mas meu tempo tem sido muito restrito a outras obrigações que me prendem de certa forma. E ainda existe a questão do alto valor monetário exigido para se fazer essas edições. Ou seja: é preciso tempo e dinheiro suficientes, para que sejam produzidos trabalhos de qualidade. Nesse sentido, nunca fiz nada que fosse descartável em minha vida. Tudo o que produzi é permanente, visando ao bem-estar de gerações e gerações. Então, se tudo der certo nesse sentido de novas publicações, é desse modo que deverá acontecer.

Jacuhy: Muito obrigado por sua entrevista e colaboração com a nossa página e blog.

Data da entrevista: 28 de janeiro de 2023.

25 de setembro de 2010 – Lançamento do livro “A História de Cunha”, do professor João Veloso

O homem e a obra. Veloso tem nas mãos “A História de Cunha”. Foto: Geraldo Magela Tannús. Ano: 2010.

Há 11 anos era lançada a obra “A História de Cunha – 1600-2010 – Freguesia do Facão – A Rota da exploração das minas e abastecimento de tropas“, do professor e historiador cunhense João José de Oliveira Veloso (1945-2020), um livro que é fruto de uma vida de pesquisa. Páginas e páginas de muita informação, fatos e fontes primárias sobre a História de Cunha, antiga Freguesia do Facão.

E foi lançado em 2.010, justamente no ano em que Cunha viveu uma terrível catástrofe climática, revelando o caráter providencial do livro, pois diante do cenário de destruição que estava posto, nada mais inspirador para reconstrução do que olhar para grandeza do nosso passado.

São 496 páginas de pura história, quase sempre recheadas com fontes primárias. Fruto do amor e desprendimento de um apaixonado por Cunha: o professor João Veloso. Ele, tal como os sertanistas de outrora, explorou corredores e estantes empoeiradas dos arquivos públicos, enveredou-se por museus, inquiriu cunhenses que já se foram, averiguou obras, artigos e teses, campeou fotos e artefatos, desenterrou pilhas e pilhas de testamentos e doações de sesmarias, reconstituiu as sendas das tropas e os caminhos perdidos. Lapidou todas as informações colhidas, organizando-as e fazendo a sua interpretação. Para, finalmente, nos entregar essa obra valiosíssima. É um livro definitivo? O próprio professor Veloso, com a humildade que lhe era típica, rechaçou essa qualificação. Para ele, havia muito a ser pesquisado e muitas perguntas sem resposta na história local. Mas, convenhamos, não há mais nada de essencial a ser dito. Alguns fatos, talvez, ainda possam ser pormenorizados e ampliados, como o próprio professor João Veloso fez questão de deixar claro, quando deu uma aula pública, em 2017, na homenagem que a Câmara de Cunha lhe rendeu, na data em que foi aprovada a mudança do dia de comemoração de aniversário de Cunha para 19 de março. Essa retificação foi ancorada na pesquisa que culminou na publicação do livro “A História de Cunha (1.600 – 2.010)”, pelo professor João Veloso.

Foram mais de 40 anos de pesquisas realizadas por um professor abnegado, que não mediu esforços físicos e financeiros para trazer à lume um passado quase esquecido. Tirou o pó da grandeza do passado de Cunha, nos presenteando com a publicação. Como diz o professor José Eduardo Marques Mauro (professor do IEB-USP), o “livro patenteia o coroamento de todo um extenso e duradouro trabalho do autor, que, apresentado com esmerada publicação, assume o significado de uma autêntica dádiva ofertada à cidade e a população do município, se constituindo em um reforço ao aperfeiçoamento da identidade local e regional da população cunhense”. O professor Nelson Pesciotta (USP/UNITAU, ex-presidente do IEV), in memoriam, foi além. Para Pesciotta, o livro do professor João Veloso foi “uma certidão de nascimento para Cunha”. E foi mesmo!  Descortinou o nosso passado, situou o Cunha (Facão) no tempo e foi a primeira obra exclusiva sobre História de Cunha. E, pela sua abrangência temporal e qualidade acadêmica, é até hoje a única. Por ser insuperável, deve ser lida e consultada. Não é à toa que o professor José Eduardo disse que compreender a História de Cunha é uma forma de compreender a História do Brasil, já que na micro-história do município é possível pôr em evidência o pulsar da Nação.

O professor João Veloso foi o fundador do Centro de Cultura e Tradição de Cunha, criador e mantenedor do Museu Municipal “Francisco Veloso” e foi membro ativo do IEV (Instituto de Estudos Valeparaibanos). Também fez a tradução do livro “O fim de uma tradição”, do antropólogo Robert W. Shirley, obra de referência nas áreas de Sociologia e Antropologia, no que concerne ao estudo de comunidade.

A obra “A História de Cunha“, atualmente esgotada, fomentou o interesse e o debate sobre a História local, servindo de referência para outros livros e dissertações sobre Cunha que foram lançadas no último decênio. Podemos dizer ainda que são frutos dessa obra ímpar o grupo do Facebook “Memória Cunhense“, um dos maiores do Vale sobre a temática memorialista, e a retificação da data de fundação do município de Cunha (agora 19/03/1724 e não mais 20/04/1858).

Mais que um historiador, o professor João foi um defensor do patrimônio histórico e cultural cunhense, um cidadão ativo na defesa da cultura e tradições do nosso povo. Em 2008, junto com o professor José Eduardo Marques Mauro, encetou um movimento que resultou na criação do COMPHACC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Cunha), realizando o tombamento dos imóveis históricos da cidade de Cunha, estabelecendo uma área de envoltória para preservar a nossa paisagem urbana. Graças a esse tombamento, em 2018, veio o tombamento estadual, realizado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT), órgão do Governo de São Paulo.

O livro “A História de Cunha” não foi a sua primeira obra e não foi a última. Em 2014, lançou “A história de Zina: a saga de uma família da zona rural cunhense”, uma ficção histórica romanceada. Suas crônicas, presentes no livro “O ambiente natural cunhense” são ótimas e merecem ser relidas. Um retrato fiel do povo de Cunha, de seus modos e dilemas, com uma boa dose de sofisticada ironia. Quando partiu, no começo deste ano, tinha um livro no prelo, sobre as manifestações folclóricas do município. Torcemos pelo lançamento. Como obra póstuma e como uma forma de gratidão do povo de Cunha a quem tanto fez por nosso lugar.

Uma segunda edição da obra “História de Cunha“, revista e ampliada, vinha sendo preparada, antes do repentino e infeliz falecimento do professor João Veloso. Mas quem sabe não possa sair nos próximos anos? Em 2024, Cunha irá comemorar o seu Tricentenário. E uma segunda edição dessa obra é um presente e tanto para comemorar tão significativo jubileu. Cunha merece!

Fonte:
VELOSO, J. J. de O. A História de Cunha (1600-2010): Freguesia do Facão: A rota da exploração das minas e abastecimento das tropas. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 2010.

Obs.: Texto publicado em 25 de setembro de 2020, na página Jacuhy, do Facebook, na série “Hoje na História de Cunha”. A redação foi alterada em virtude do falecimento do professor e historiador João Veloso, em novembro de 2020.

Robert Shirley, o pesquisador americano que virou “cunheiro”

Robert Shirley esteve em Cunha, na década de 1960, para pesquisar os impactos do progresso industrial e urbano sobre a cultura e tradição local. Dessa pesquisa surgiu o livro “O fim de uma tradição“.

Robert Weaver Shirley nasceu em 11 de dezembro de 1936, na cidade de Baltimore, estado de Maryland, nos Estados Unidos da América. Era filho do Dr. Hale Forman Shirley, um típico médico caipira do Meio-Oeste americano, natural de Iowa, onde se criou e estudou. Sua mãe se chamava Mildred Weaver Shirley, nascida na mesma região de seu marido, criada em uma das muitas fazendas que compõem o estado do Illinois. Como estudante de Nutrição na Universidade de Iowa, ela conhece o jovem Hale, ainda um estudante de Medicina e seu futuro marido. Seu pai decide aprofundar sua formação e parte para Baltimore, objetivando estudar Psiquiatria Infantil na Universidade Johns Hopkins. Após a formação, quando Robert tinha apenas dois anos, os Shirley se mudam para o outro lado do país, se estabelecendo em São Francisco, Califórnia. Seu pai fora nomeado professor de Pediatria e Psiquiatria na Universidade de Stanford. Sua família se estabelece de forma definitiva na Baía de São Francisco desde então. Sua mãe veio a falecer em 1960 e seu pai em 1974. Essa proximidade familiar com a Medicina, o leva a trabalhar por vários anos como assistente de pesquisa médica em Palo Alto, Califórnia, na Universidade Stanford.

Robert Shirley graduou-se em Biologia e Antropologia na Universidade de Stanford, se mudando, posteriormente, para Nova Iorque, a fim de terminar seu doutorado na Universidade Columbia. Nessa Academia, influenciado pelo antropólogo e brasilianista Charles Wagley (1913-1991), inicia seus estudos sobre o Brasil, interesse que iria nortear toda sua carreira acadêmica e seria seu campo de pesquisa predileto e vitalício.

” Minha ligação com esta comunidade pequena [Cunha] é uma das felicidades de minha vida […] Mais uma vez, portanto, quero agradecer ao povo de Cunha por sua amizade durante doze anos”

Robert Shirley, em 1977.

Para realizar as pesquisas que culminariam em seu doutorado em Antropologia, parte para o Brasil, mais especificamente para a pequena e isolada cidade de Cunha, no extremo leste de São Paulo. Mais que uma experiência acadêmica e de pesquisa, Cunha o marcaria para sempre, como várias vezes testemunhou Shirley. Cunha foi um objeto de estudo que se transformou em um verdadeiro laboratório de experiências humanas, pessoais e solidárias para o cientista social. Aqui esteve por dois anos (1965-1966), dando continuidade às pesquisas sociais desenvolvidas na década de 1940 por Emílio Willems. Cunha foi, durante o século XX, uma espécie de cidade-laboratório dos cientistas sociais, pelo fato de ser uma comunidade isolada e que mantinha a cultura tradicional ainda intacta. Os mais importantes “estudos de comunidade” no Brasil aconteceram em nosso município. Seu interesse aqui era medir o impacto das cidades industriais paulistas sobre a pequena comunidade tradicional, cujo isolamento vinha sendo gradativamente rompido com novas estradas e novos meios de comunicação. Shirley, certa vez, afirmou que vir para Cunha era muito mais que um deslocamento no espaço, mas também um deslocamento no tempo, como se pudéssemos voltar a uma época pretérita. Sua pesquisa identifica vários sinais de ruptura na cultura tradicional, o que para ele levaria, com o passar do tempo, ao desaparecimento das manifestações folclóricas típicas do mundo rural.

O antropólogo nunca escondeu de ninguém: Cunha era sua segunda casa, depois da fria Toronto, onde tinha seu emprego. Os Veloso, segundo sua própria confissão, era sua família adotiva. Nestas paragens encontrou sua tese e novos amigos. Da relação fraternal com o inesquecível professor João Veloso (1945-2020), nasceu o Centro de Cultura e Tradição de Cunha, a tradução dos livros “O fim de uma tradição” e “Antropologia Jurídica” para o português e diversos boletins e matérias sobre a cultura e tradição local. Uma amizade intelectual que rendeu muitos frutos para Cunha e que até hoje desfrutamos. Shirley nunca se esqueceu da noite chuvosa, em janeiro de 1965, quando chegou a Cunha, após enfrentar o lamaçal que era a Estrada Cunha-Guaratinguetá e ter que pernoitar no meio do caminho. Instalou-se no “Hotel Paulista” (do Rafaello, belíssimo casarão colonial já demolido), e logo transformou a estalagem em uma espécie da sucursal da Universidade Columbia, ocupando quartos e salas e orientando ajudantes de pesquisa. Deixou Cunha um ano e meio depois com “20 quilos de material escrito e memórias infinitas”. Aproveitou o ensejo da introdução que fez ao livro “Um causo sério”, do José Velloso, em setembro de 1991, para fazer muitas confissões do seu amor a Cunha e aos amigos que aqui encontrou e sempre que pode visitou… Coisas que não cabiam na austeridade e sobriedade das publicações de suas inúmeras pesquisas, onde o distanciamento afetivo com o objeto de estudo é necessário para a credibilidade da pesquisa.

Robert Shirley, em 1966, quando estava em Cunha fazendo sua pesquisa de doutorado. Fonte: Museu Municipal Francisco Veloso.

Foi membro do corpo docente da Universidade de Toronto por mais de 27 anos, atuando na graduação e pós-graduação do curso de Antropologia, no Campus Scarborough. As disciplinas que ministrou foram: Antropologia Social e Cultural, Antropologia Econômica e Política, Escravidão Comparada e Direito e Sociedade. Além disso, também chegou a lecionar uma matéria sobre as sociedades latino-americanas, dando um curso sobre “As Américas: uma perspectiva antropológica”, com enfoque no México e no Brasil. Na pós-graduação, foi professor de Antropologia Jurídica e Metodologia e História do Pensamento Antropológico.

Já em 1988 havia se tornado o grande brasilianista do Canadá, atuando na Universidade de Toronto, abrindo as cortinas para os estudos sobre Brasil e apresentando o “país tropical abençoado por Deus” a milhares de jovens estudantes interessados pelo mundo abaixo da Linha do Equador. Realizou diversos cursos e seminários sobre o Brasil, durante muito tempo, no St. Michael’s College.

Como professor, conseguiu ministrar seus cursos em várias universidades brasileiras, tendo a oportunidade de visitar assim grande parte do país. Viajou para o Amazonas, região Nordeste, embora a maior de suas pesquisas tenha sido nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul. Sua área de pesquisa e atuação no ensino superior esteve ligada à Antropologia Social, matéria que lecionou em quatro universidades brasileiras. Também foi o introdutor, nas universidades brasileiras, da disciplina de Antropologia Jurídica, tendo atuado no Museu Nacional do Rio de Janeiro e na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Lecionou ainda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O Brasil foi o seu grande campo de pesquisa, conforme ele mesmo escreveu: “em 1970, comecei a me interessar pelas instituições que ligam as regiões rurais e urbanas. Passei alguns meses trabalhando em cooperativas, mas acabei me estabelecendo em uma extensa pesquisa sobre direito e instituições jurídicas no Brasil”. Início da década de 1980 estudou a cultura e as tradições gaúchas, quando era professor da UFRS. Em meados da década, ainda em Porto Alegre, junto com a professora Claudia Fonseca começa sua pesquisa sobre Antropologia Jurídica e Direito Comparado e o impacto das instituições jurídicas de uma perspectiva urbana, usando o método de estudo da comunidade. Na década de 1990, inicia os estudos sobre as favelas do Rio de Janeiro e São Paulo, fazendo comparativos sobre a organização de favelas nas diferentes cidades do Brasil. Aproveita para, nessa época, estudar as religiões afro-brasileiras enquanto força organizadora de comunidades carentes. Em 1993-1994, vive o seu ano sabático e aproveita para visitar Cunha por quatro meses. Retorna a Toronto em 1994, passando a atuar na área de Criminologia, buscando uma reforma policial e uma governança comunitária e de policiamento. No verão de 1996, retorna ao Brasil, como bolsista, para o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da Universidade de São Paulo (USP). No Brasil, pesquisou a organização jurídica local, as religiões nacionais e as organizações comunitárias.

Apaixonado por artes, literatura, dança e música (principalmente música clássica), Shirley não deixou esse hobby de fora de suas andanças acadêmicas. Do Brasil levou, quando retornou ao Canadá, uma enorme coleção de gravações brasileiras de diversos músicos e ritmos, além, claro, de uma infinidade de livros sobre nosso país, por quem nutria muito mais que um interesse de pesquisa, mas profundo afeto e respeito. Apoiou e acolheu em sua casa o coreógrafo brasileiro Newton Moraes.

Faleceu em 23 de julho de 2008, em sua residência, de forma repentina, em Toronto, aos 72 anos de idade. Já tinha se tornado professor emérito de Antropologia, na Universidade de Toronto. Ficou na lembrança dos alunos, amigos e familiares como um homem extremamente gentil. Deixou saudades em seu companheiro Newton Moraes, em seus irmãos Bill Shirley e Barbara Sierra e em seus sobrinhos Stephanie, Linda, Nicholas, Ethan, na sobrinha-neta Alexandra e em muitos amigos.

Sua obra, ainda que menos importante e impactante que a de Willems, contribuiu para a Antropologia brasileira, principalmente ao introduzir um novo campo de estudo: a Antropologia Jurídica. Para Cunha, ele foi muito mais que um pesquisador “do estrangeiro”, que só via o lugar como um objeto de pesquisa.  Virou “cunheiro” de alma e coração e deu suporte acadêmico aos movimentos culturais e de preservação histórica que brotaram na cidade após a década de 1970. Apesar de ter sido um problematizador sobre o iminente desaparecimento da cultura tradicional frente ao industrialismo paulista, foi ele um dos somaram esforços para que nossas tradições não chegassem ao fim.

Livros:

1971 – The End of a Tradition: Culture Change and Development in the Município of Cunha, São Paulo, Brazil. Columbia University Press, New York and London.

1977 – O Fim de uma Tradição (tradução de João José de Oliveira Veloso, com um prefácio à edição brasileira e um capítulo extra: “Cunha, Doze Anos Depois”), Editora Perspectiva, Série Debates, n. 141, São Paulo.

1987 – Antropologia Jurídica (tradução de João José de Oliveira Veloso), Editora Saraiva, São Paulo.

Artigos:

1962 – em parceria com A.K. Romney: “Love Magic and Socialization Anxiety: A Cross Cultural Survey,” American Anthropologist, v. 64, n. 5, out., tomo I, pp. 1028-31

1964 – com R.G. Desai: “Association of Leukemia and Blood Groups,” The Journal of Medical Genetics, vol. 2, n. 3.

1967 – “The End of a Tradition”: tese de doutoramento da Universidade de Columbia, da cidade de Nova Iorque, publicada pela Universidade Microfilms, Ann Arbor, Michigan.

1970 – “Politics and Labour Migration in Brazil: The Politics of Underemployment,” in Manpower and Economic Development, Institute of Developing Areas, McGill University, Montreal, PQ., v. 2, n. 1, pp. 45-48.

1971 – “Social and Economic Change in the Municipío of Cunha,” Ciências Econômicas e Sociais, São Paulo, v. 6, n. 2, pp. 93-101.

1973 – “Patronage and Cooperation, An Analysis from São Paulo State,” in Patronage and the Power Structure in Latin America, A. Strikon and S. Greenfield, editors; The University of New Mexico Press, Albuquerque, NM.

1978 – “Legal Institutions and Early Industrial Growth: Manchester/São Paulo,” no Stanford Journal of International Studies, v. XIII, Spring, pp. 157-176. Posteriormente publicado em livro como: Manchester and São Paulo, John Wirth, and Robert L. Jones editors, Stanford University Press, Stanford, California.

1979 – “Law in Rural Brazil” em Brazil, Anthropological Perspectives: Essays in Honor of Charles Wagley, Maxine L Margolis and William E. Carter, Editors, pp. 343-361. Columbia University Press, New York.

1987 – “A Brief Survey of Law in Brazil” em NS: The Canadian Journal of Latin American and Caribbean Studies, v. XII, n. 23, 1987; pp. 1-13.

1990 – “Recreating Communities: The Formation of Community in a Brazilian Shantytown,” em Urban Anthropology, v. 19, n. 3, 1990, pp. 255-276.

1991 – “A lições de Cunha” no jornal Folha de São Paulo, 9 ago. 1991, p. 10-12.

1991 – “Gaúcho Identity and Regional Nationalism, A Case Study of the Traditionalist Movement in Rio Grande do Sul, Brazil,” no Journal of Latin American Lore, #17, pp. 199-224, Journal of the Latin American Institute of U. C. L. A.

1992 – “Brazil in Toronto” no Abacaxi Times, (jornal da comunidade brasileira em Toronto): n. 8, nov. 1992, p. 7.

1992 – “Introdução ao livro de José Velloso” em SOBRINHO, José Veloso. Um Causo Sério, pp. 11-13, Centro de Cultura e Tradição de Cunha, Cunha, São Paulo.

1994 – “Brazilians in Canada” artigo da Encyclopedia of the Canadian People, publicação da Multi – Cultural History Society of Ontario, Toronto.

1995 – “A Case of Kidnapping – and a Case of Prejudice” Review of two books: “Wrong Time, Wrong place,” by Caroline Mallan and “See no Evil,” by Isabel Vincent, em The Financial Post, 20 mai. 1995, p.33

1996 – “The Moçambique and the Parabola, How Weekend Tourism is helping to Preserve Folk Traditions in Rural São Paulo, Brazil” em ANTHROPOS: 91, Berichte und Kommentare, pp. 545-551; Köln, Germany.

1997 – “Atitudes com Relação à Polícia em uma Favela do Sul do Brasil,” em Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v. 9 – 1, mai. 1997, pp. 215-231, São Paulo.

1997 – “Faith and Freedom (a brief history of Afro-Brazilian Religion),” in The Queen’s Quarterly, inverno de 1997, pp. 690-711.

Fontes:
OBITUÁRIO de Robert W. Shirley. Disponível em: <https://www.legacy.com/obituaries/thestar/obituary.aspx?n=robert-w-shirley&pid=117514415 >. Acesso em: 23 set. 2021.
SHIRLEY, R. W. O fim de uma tradição: cultura e desenvolvimento no município de Cunha. Tradução de João José de Oliveira Veloso. São Paulo: Perspectiva, 1977.
UNIVERSITY OF TORONTO. Robert Shirley Anthropologist. Disponível em: <http://homes.chass.utoronto.ca/~rshirley/robert/index.htm >. Acesso em: 23 set. 2021.
VELLOSO SOBRINHO, J. Um causo sério. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 1992.

A História de Cunha

Por João Veloso *

Cunha: 300 anos de História!

História

A atual região de Cunha – antiga Facam e que veio a se denominar Facão ainda nos primórdios do referido século –, desde o início do século XVII já era palmilhada por paulistas (vicentinos) e paratienses, que aproveitavam as trilhas dos indígenas guaianases (muitas delas velhos caminhos utilizados por animais, e que foram sendo ampliados pelos indígenas na Serra do Mar, por onde estes transitavam), para atingir o extenso campo de caça e o constante local de troca de produtos agrícolas: o Vale do Paraíba. A primeira incursão oficial à região foi a entrada exploradora organizada pelo filho do então governador do Rio de Janeiro, Martim Correia de Sá, saindo daquela localidade com setecentos homens brancos e dois mil indígenas escravizados, no ano de 1596. A expedição transpôs a serra de Paraty em 1597 e, ao atingir a região que logo em seguida se denominaria Facão, atravessou os rios Paraibuna e Paraitinga, alcançou as margens do rio Paraíba entre São José dos Campos, Taubaté e Pindamonhangaba, e adentrou as terras do Sul de Minas Gerais.

A passagem de Martim Correia de Sá pela picada da serra de Paraty, sertão adentro, evidencia a importância desse caminho, que passa, a partir de então, a ser utilizado por outras expedições, não apenas as oficiais, como também as particulares.

O Desbravamento

Com a descoberta das primeiras jazidas de ouro nas “minas gerais”, a partir de 1695 é que a região do Facão começa a ser palmilhada e desbravada de modo mais acentuado por aventureiros portugueses, por portugueses já radicados na região vale-paraibana e por outros moradores desses locais, todos à procura de enriquecimento fácil nas “Gerais”. Desse modo, a região do Facão torna-se passagem obrigatória como “boca do sertão”, no percurso litoral – região das “minas gerais” –, e começa o povoamento desordenado do Facão.

Devido ao trânsito intenso à extensa região do Facão, o local se torna também chamariz de vadios, desertores da Marinha e até de criminosos, que se ajuntam aos novos moradores da região e vão compondo esparsamente aquilo que logo se denominaria povoado.

Trânsito agitado. De um modo geral, o lugarejo sofre consequência dessa azáfama, que durou por volta de 30 anos – tempo de todas as jazidas serem descobertas. O povoado do Facão é o local de descanso e de provimento das tropas de ouro coloniais (ouro em pó, inicialmente carregado às costas pelos escravos).

O Clima, o Vale e a Montanha

A excelência do clima foi um dos fatores que justificaram o estabelecimento dos europeus e demais pessoas na região do Facão, entre o final do século XVII e o começo do século XVIII.

No trajeto obrigatório para as “minas gerais”, os exploradores e aventureiros portugueses, sesmeiros da região vale-paraibana e demais pessoas, que se tornariam os primeiros povoadores do

Facão, tiveram de se curvar ao impacto causado pelo panorama agradável, deslumbrante e ímpar da majestosa região. E, em contato com a terra, viram-na fértil, dotada de clima ameno, salutar e de águas límpidas, diferentes daquelas situadas no litoral, local das primeiras povoações.

A Povoação do Facão

De antigos povoamentos dispersos, o extenso espaço passou a ter a sua fundação oficial como Povoação do Facão em 1724, transformando-se, logo mais, entre 1748 – 1749, em Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão, e atraindo grande fluxo de interessados no solo fértil para a agricultura, aliado ao clima temperado; e ainda nas atividades de tropeirismo, tudo isso até aproximadamente o início do século XIX, quando a região já não mais dispunha de terras agricultáveis localizadas em setores privilegiados que margeavam os principais meios de acesso.

Um dos núcleos esparsos de povoamento da região do Facão se localizava nas cercanias da atual cidade, onde havia a capelinha de Nossa Senhora do Facão, erigida antes de 1700, no Alto do José Dias ou Alto da Mantiquira, bem na lateral esquerda do acesso ao atual bairro urbano Vila Rica. Como toda a terra do Facão não era ainda considerada povoação oficial, essa capelinha, situada na parte alta da região – e que tinha a imagem de Nossa Senhora do Facão e outras imagens, segundo dados históricos –, não representou, oficialmente, a primeira capela da região e nem marco do início da povoação.

Fundação

A fundação oficial da região do Facão deu-se em 1724, pela Vila de Santo Antonio de Guaratinguetá, a qual pertencia, com a edificação da Capela de Jesus, Maria e José, pelo povoador Capitão Luiz da Silva Porto, em seu sítio, no bairro rural da Boa Vista. Primeiramente, no início de 1724, um núcleo mais organizado de moradores se estabeleceu no bairro rural do Campo Alegre, aquém da Boa Vista; e ainda nesse mesmo ano, o referido grupo de povoadores se deslocou para a Boa Vista – antigo pouso de tropeiros, e aí foi construída a citada capela pelo dono das terras, iniciando-se consequentemente, a povoação oficial do Facão – que era a denominação antiga de Cunha.

Por outro lado, as terras em derredor da citada capelinha do Alto da Mantiquira atraíam um contingente razoável de povoadores com maior expressão social e econômica, por se situarem no meio do roteiro das tropas, numa região bem aprazível. Essas terras – que se seguiam do Bairro do Jacuizinho até o morro do Facão (Morro Grande) – pertenciam ao Capitão José Gomes de Gouveia e sua mulher, dona Maria Nunes de Siqueira.

Desse modo, com o interesse de povoadores em se estabelecerem em suas terras, o Capitão José Gomes de Gouveia procedeu a transferência da Capelinha de Nossa Senhora do Facão, com todas as suas imagens e alfaias, para a capela recém-inaugurada em 1731, no planalto contíguo em suas terras, denominando-a Capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão.

Uma vez desativada a capelinha do Alto da Mantiquira, a região, a partir de 1731, passa a contar com duas capelas: A capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, erigida em 1724 e que foi o marco oficial da povoação e fundação da região do Facão; e a capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão, inaugurada em 08 de dezembro de 1731.

A capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, também denominada popularmente capela de São José, ou capela da Boa Vista, desde a sua edificação em 1724, mantinha capelão particular para celebrar missas a expensas do seu fundador, Capitão Luiz da Silva Porto, ou ainda da autoridade episcopal da época. Após a devida licença para sua bênção, efetivada em 1º de abril de 1742, pelo vigário da vara do Distrito, padre José Alves Vilela, a capela também passou a realizar casamentos e batizados.

De 1742 a 1746, em ambas as capelas se celebravam concomitantemente missas e se realizavam casamentos e batizados. A capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, nos anos subsequentes à sua bênção em 1742, também atuou como freguesia, pois o instituidor mantinha pároco na mesma, a qual chegou, por esse motivo, a ser considerada freguesia interina, devido inclusive à sua importância na região do Facão, o que evidenciava a prevalência da capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista sobre a recém-edificada capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão.

SINOPSE HISTÓRICA:

  • A povoação e fundação oficiais da região do Facão se deram com a edificação da capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista, em 1724;
  • A inauguração da capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão, construída pelo Capitão José Gomes de Gouveia, em suas terras, ocorreu em 8 de dezembro de 1731;
  • A capela de Nossa Senhora da Conceição do Facão tornou-se sede da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão (criada entre 1748-1749); enquanto a capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista continuou funcionando normalmente, para a alegria de seus devotos;
  • Em 15 de setembro de 1785, a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Facão é elevada à condição de Vila de Nossa Senhora da Conceição de Cunha. O novo nome é dado em homenagem ao então governador da Província de São Paulo, Capitão-General Francisco da Cunha e Menezes. Desse modo, emancipada a nova vila política e administrativamente da Vila de Guaratinguetá, cria-se município próprio, com sua primeira câmara municipal, cadeia e pelourinho;
  • Em 20 de abril de 1858, a Vila de Cunha eleva-se à condição de Cidade pela Lei Provincial de Nº 30, sancionada pelo presidente da Província, Senador José Joaquim Fernandes Torres através do decreto da Assembleia Provincial de 19 de abril de 1858;
  • Em 29 de março de 1883, o Município torna-se Comarca por Lei Provincial de nº 27, classificada por decreto do Ministério da Justiça de 23/12/1889, e instalada em 10/01/1890;
  • O Distrito de Campos de Cunha (ex-Campos Novos de Cunha) foi criado por Lei Municipal de nº 5, de 08/03/1872. O topônimo Campos Novos de Cunha foi simplificado para Campos de Cunha pelo Decreto-Lei estadual de nº 9073, de 31 de março de 1938, e fixado pela Lei nº 9775, de 30 de novembro de 1938
  • Em 28 de outubro 1948, cria-se a Estância Climática de Cunha;
  • Em 12 de setembro de 1972, através da Lei Municipal de nº 222, criaram-se o brasão e outros símbolos municipais, de autoria de Manoel Galvão Moreira e confeccionados oficialmente pelo heraldista Alcinoé Antônio Peixoto de Faria;
  • Criado em 1998, o Hino Municipal, cuja letra fora elaborada pelo Professor Ernesto Veloso dos Santos, recebeu a melodia, composta por Antonio Benedito dos Santos (Tonico Capítulo), e orquestração oficial para banda de música e coro, pelo Maestro Professor Victor Amato dos Santos. O Hino foi oficializado em 12 de maio de 1999, através da Lei Municipal nº 819/99;
  • Aprovada na sessão ordinária realizada pela Câmara Municipal de Cunha em 20 de novembro de 2017, e sancionada no dia 24 de novembro do mesmo ano, a Lei Municipal nº 1569/2017 oficializou a capela de Jesus, Maria e José da Boa Vista como o marco zero da Fundação de Cunha, assim como fixou a data de comemoração do aniversário local no dia 19 de março de cada ano, com a contagem da idade de Cunha a partir do ano de 1724.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Arquivo do Museu Francisco Veloso, Estância Climática de Cunha.

Atas da Câmara Municipal de Cunha – 1947-1948.

FERRAZ, Mário Sampaio. Cunha. São Paulo: Secretaria da Agricultura e Comércio do Estado de São Paulo / Diretoria de Publicidade Agrícola, 1940.

SILVEIRA, Carlos da. Documentos Interessantes sobre Cunha. Revista do Arquivo Municipal: São Paulo, 1939.

VELOSO, João José de Oliveira Veloso. A História de Cunha – 1600-2010 – Freguesia do Facão: A Rota da Exploração das Minas e Abastecimento de Tropas. Centro de Cultura e Tradição de Cunha: São José dos Campos/SP: JAC – Gráfica e Editora, 2010.

CUNHA, Mário Wagner Vieira da. O Povoamento no Município de Cunha In: Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia, II:641-49, 1944.

Texto publicado no sítio eletrônico oficial da Prefeitura Municipal da Estância Turística de Cunha, São Paulo: < http://www.cunha.sp.gov.br/a-cidade/historia/ >. Acesso em: 27 jun. 2021.

* João José de Oliveira Veloso (1945 – 2021), foi um professor, tradutor e historiador cunhense. Atuou como professor da rede pública de ensino, lecionando Língua Portuguesa e Literatura e Língua Estrangeira Moderna (Inglês) durante toda sua vida. Era formado pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Foi membro do Instituto de Estudos Valeparaibanos (IEV) e diretor e fundador do Museu Municipal Francisco Veloso e do Centro de Cultura e Tradição de Cunha. Foi criador do COMPHACC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural de Cunha). É autor de inúmeros livros e artigos sobre a história de Cunha, fruto dos seus 40 anos dedicados a pesquisar a história do lugar, com destaque para o livro “A História de Cunha”, lançado em 2010, com mais de 500 página de sólida pesquisa historiográfica em fontes primárias. Este artigo publicado em dezembro de 2017 e se encontra disponível no site da Prefeitura de Cunha.

Em defesa da História de Cunha

Texto do professor e historiador João José de Oliveira Veloso (1945 – 2020), fundador do Centro de Cultura e Tradição de Cunha, do Museu Municipal “Francisco Veloso”, do COMPHACC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Cunha) e autor de diversas obras sobre a história de Cunha.