Cunha: paisagem, meio ambiente e economia

Cunha vista da Serra da Bocaina. Foto: Pedro Máximo. Data: 2011.

A cidade de Cunha vista da Pedra Grande, na Serra da Bocaina, próxima à divisa com Silveiras. Está a 34 quilômetros em distância absoluta, na direção sudoeste. O interessante dessa perspectiva é que aparece a Serra do Alto do Diamante ao fundo, que está a cerca de 55 quilômetros de distância da Pedra Grande. Após essa serra, temos ainda o bairro do Sertão do Palmital e mais cerca de 5 Km (em termos absolutos) de terras cunhenses até se chegar ao limite com São Luís do Paraitinga, divisa formada com cotas altimétricas inferiores ao do Alto do Diamante e vertente do rio Paraibuna. A foto na perspectiva noroeste-sudoeste revela um pouco da extensão de nosso município, maior do Vale do Paraíba e o único no estado circundado por três 3 serras principais (além de outras ramificações), como é o caso do Alto do Diamante, do Alto Grande e do Campo Grande. Todas com picos ultrapassando os 1600 metros de altitude.

Cunha vista da Pedra Grande. Cotas altimétricas do IBGE (1973). Edição: Jacuhy.

O bairro Sertão do Palmital, ainda em 1970, completamente isolado de Cunha. Os moradores se serviam, quando podiam, de São Luiz do Paraitinga, via distrito de São Pedro da Catuçaba. Mesmo assim por trilhas acessíveis apenas a pé ou a cavalo.

Parte da carta hipsométrica das três serras. Fonte: IBGE, 1973.

Um dos morros da Serra desperta a nossa atenção por sua feição cônica, se assemelhando a um vulcão, o que obviamente não é e nem nunca foi. Trata-se de dois morros na verdade, mais pontiagudos e altos que os vizinhos que observados de longe, revelam esse contorno diferente. Essa Serra, aliás, pode ser melhor observada do Morro Grande, vide as fotos da “Estalagem Shambala” ou do loteamento recentemente aberto “Alpes de Cunha”.

Alto do Diamante e Campo Grande. Vista da Estalagem Shambala. Data: 2022.

Os morros que circundam a cidade de Cunha, e que parecem altos, praticamente se aplainam ante a imponência da Serra do Mar, que, como uma muralha, cerca o município nos limites de sudoeste a nordeste.

Vista da Serra do Campo Grande. Foto: Guto Felipe. Data: 2022.

Todo esse “Mar de Morros” é obra de milhões de anos de processos erosivos contínuos, consequência da ação do clima tropical sobre o relevo. As paisagens que temos hoje são heranças que a natureza nos legou e que devemos preservar para a posteridade.

Vista da Serra do Alto do Diamante. Foto: Rodrigo Leite. Data: 2012.

Por isso, o desmatamento incontrolável que nossa região passou nos últimos cem anos preocupa. Não só pelo aumento dos movimentos de massa e os riscos que eles trazem à segurança das pessoas e animais, além dos prejuízos, mas pela perda dos solos, um problema grave e ainda pouco abordado e tratado em Cunha. Sem solo não há agricultura, pecuária e nem vida. A aceleração dos processos erosivos e a retirada ilegal de mata ciliar levam ao assoreamento dos cursos d’água e ao desaparecimento da fauna fluvial. A retirada de mata no topo dos morros leva ao sumiço dos vertedouros. Toda ação humana gera algum impacto ambiental que, mais cedo ou mais tarde, acarretará algum impacto social.

O pouco que restou da nossa Mata Atlântica foi resultado da ação impositiva do Estado, que interveio na década de 1.970 para impedir o desaparecimento completo da cobertura vegetal, com a criação de duas unidades de conservação de proteção integral: Parque Nacional da Serra da Bocaina e Parque Estadual da Serra do Mar. Nunca partiu de nós, cunhenses, o devido cuidado com meio ambiente. É muito provável que sem as unidades de conservação, o pouco de verde que ainda restou já teria virado carvão, moirão, palanque, esteio, móveis, pasto etc. Até o nosso linguajar valida a visão antiecológica de ver árvores e matas como um problema. Chamamos de “pasto sujo” aquele que contém árvores e capoeirões espalhados pela herdade.

O desenvolvimento do turismo surge como uma esperança. Ao retirar do setor primário o sustento de muitas famílias e realocá-lo no terciário, ameniza a pressão sobre os recursos naturais do município. Ademais, a paisagem natural ou regenerada deixa de ser um “pasto sujo” e passa a ser valorizada. Valorizada no sentido financeiro mesmo, pois o turismo é uma atividade econômica que promove o consumo do espaço e das paisagens. Desde que não seja predatório ou privilégio de alguns empreendedores, o turismo pode ser uma das saídas para Cunha.

A pergunta que fica é: o que deixaremos para as futuras gerações? Mais do que esperar do Estado e atribuir responsabilidades a outrem, sempre é bom fazer um exercício de reflexão pessoal, focado na nossa ação no mundo. Cabe a nós, enquanto comunidade, buscar alternativas econômicas sustentáveis.

Referências:
AB’SÁBER, Aziz N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. 5 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
CRUZ, Rita de C. A. da. Introdução à geografia do turismo. 2. ed. São Paulo: Roca, 2003.
IBGE. Lagoinha: região sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1973. 1 carta topográfca, color., 4465 × 3555 pixels, 5,50 MB, jpeg. Escala 1:50.000. Projeção UTM. Datum horizontal: marégrafo Imbituba, SC, Datum vertical: Córrego Alegre, MG. Folha SF 23-Y-D-III-2.
O ESTADO DE S. PAULO. Palmital, um bairro isolado. 4 out. 1970, p. 42.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
VELOSO, João J. de O. O ambiente natural cunhense. Cunha (SP): Centro de Cultura e Tradição de Cunha, 1996.

O trecho paulista da Bacia Hidrográfica do Paraíba do Sul

Rio Paraíba do Sul, quando cruza o município de Cruzeiro (SP), com a Serra da Mantiqueira ao fundo. Fonte: Wikipédia. Data: 2014.

A porção paulista do rio Paraíba do Sul (também chamada de Alto Paraíba do Sul) ocupa uma área de drenagem de 14.444 Km², onde vivem 2,1 milhões de pessoas, abrangendo 34 municípios de nossa região. A bacia de drenagem de um rio, segundo Teixeira et al. (2009, p. 308), inclui todos os afluentes que deságuam na drenagem principal e eventuais lagos associados a esse sistema, ela é separada das bacias de drenagem vizinhas por divisores de água (elevações topográficas), como as serras do Mar, da Bocaina, Mantiqueira e Quebra-Cangalha, por exemplo

Dentro dessa região hidrográfica há 16 unidades de conservação, com destaque para os núcleos do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM) e o Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB), recentemente tombado como Patrimônio da Humanidade. Ambas as unidades são de proteção integral. Todas essas unidades de conservação visam preservar as seguintes vegetações: Floresta Ombrófila Densa, Floresta Estacional Semidecidual, Floresta Ombrófila Mista Alto Montana, Campos de Altitude e Floresta Ombrófila Mista. A área ocupada com vegetação natural remanescente corresponde a 3.846 Km², o que equivale a 26,5% da área de drenagem da bacia.

Mapa mostrando o trecho paulista da Bacia Hidrográfica do Paraíba do Sul. Fonte: Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos. Data: 2015.

O rio Paraíba do Sul é formado pela confluência dos rios do Paraibuna, que nasce no município de Cunha (SP), no bairro da Aparição; e do Paraitinga, que nasce no topo da Serra da Bocaina, no município de Areias (SP). A junção dos cursos d’água ocorre onde hoje é a área alagada da Usina Hidrelétrica de Paraibuna, pertencente à Companhia Energética de São Paulo (CESP), localizada entre os municípios paulistas de Natividade da Serra, Paraibuna e Redenção da Serra. Da nascente na Serra da Bocaina até a foz em Atafona, município de São João da Barra, no norte do estado do Rio de Janeiro, o Paraíba do Sul realiza um percurso de 1.137 km de extensão, até alcançar o Oceano Atlântico. Seus principais afluentes no trecho paulista são: Paraibuna, Paraitinga e Jacuí (formadores); Jaguari, Uma, Buquira, Ferrão, Embaú, Piquete, Bocaina, Pitangueiras e Itagaçaba (tributários).

Imagem de satélite da foz do Paraíba do Sul, mostrando o seu delta assimétrico dominado por ondas, formado pelo acúmulo de sedimentos ao longo de milhares de anos. Imagem: Divisão de Sensoriamento Remoto – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Data: 2019. Fonte: Flickr.

As principais atividades econômicas desenvolvidas são a agropecuária (rizicultura, pecuária leiteira e de corte, milho etc.), indústria e pesquisa tecnológica (automobilística e aeroespacial), química e alimentícia (laticínios, principalmente), o turismo (religioso, ecológico, de montanha, cultural etc.), comércio e serviços e mineração de areia. A maioria dos municípios que estão inseridos dentro da bacia hidrográfica é pobre e vulnerável socioeconomicamente, com a exceção de São José dos Campos, Guararema, Jacareí e Aparecida (SEADE, 2018), que foram classificados e. Índice Paulista de Responsabilidade Social (IPRS) como dinâmicos, isto é, municípios com índice elevado de riqueza e bons níveis nos indicadores sociais (longevidade e escolaridade médio /alto). Os municípios que são cortados pela Serra do Mar e da Bocaina apresentam os piores indicadores sociais da região, como é o caso de Cunha.

Outros indicadores ambientais: 99,7% dos resíduos sólidos são destinados a aterros sanitários adequados; 91,1% do esgoto urbano é coletado, porém, apenas 63,9% é tratado; a redução da carga orgânica poluidora do esgoto doméstico foi de apenas 40,2%; a demanda total (superficial e subterrânea) corresponde a apenas 10,7% da vazão do rio Paraíba do Sul, no trecho paulista, o que mostra uma baixa pressão sobre os recursos hídricos disponíveis; dos 21 pontos de coleta de água de rios da bacia para análise, 4 foram qualificados como ótimos, 18 como bons e apenas 1 como regular, o que favorece a proteção da vida aquática.

Rio Paraíba do Sul na proximidade de sua nascente, na Serra da Bocaina. Imagem: Marco Cruz. Data: 2011. Fonte: YouTube.

Por estar localizado entre as duas maiores metrópoles do país, o rio Paraíba do Sul sofre com a poluição de suas águas, seja pelo esgoto doméstico ou pelo industrial. Além disso, boa parte de suas cabeceiras, onde estão as nascentes, estão desmatadas e degradadas. Todavia, trata-se de um rio de suma importância social: abastece mais de 14,2 milhões de pessoas, pois parte de suas águas são desviadas para a bacia hidrográfica do rio Guandu, com a finalidade de gerar energia e abastecer a população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Outros usos de suas águas são para irrigação (na rizicultura no Vale do Paraíba paulista, principalmente), geração de energia hidrelétrica e diluição de esgotos, este é uma das principais fontes de poluição do rio Paraíba do Sul, sobretudo nos trechos que cruzam as áreas urbanas. A vazão média do rio Paraíba do Sul, na divisa com o estado do Rio de Janeiro, é de 217 m³/s e a vazão mínima é de 72 m³/s, ou seja, cerca de um terço da vazão média. A situação é preocupante, pois só neste século o rio Paraíba do Sul já passou por duas crises hídricas, a primeira em 2004 e a última entre 2014 e 2016, atingindo sua fase de maior escassez em 2015. Nessas crises, as vazões diminuem muito, devido à baixa precipitação, causando impactos nos níveis de armazenamento dos reservatórios e, consequentemente, na irrigação, na geração de energia e no abastecimento de água para a população. A precipitação média no trecho paulista da bacia é de 1.385 mm ao ano. Devido à escassez hídrica e alta demanda das regiões metropolitanas do entorno, a água do Paraíba tem sido alvo de disputa entre as unidades federativas. Por isso e pela sua relevância ambiental, projetos que objetivem recuperar o rio – da nascente até a foz – são para ontem.

Vídeo com imagens de drone da foz do rio Paraíba do Sul, no norte fluminense. Fonte: YouTube / Canal Macaé Drone. Data: 2021.

Referências:

AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO (ANA). Paraíba do Sul. Disponível em: < https://www.gov.br/ana/pt-br/sala-de-situacao/paraiba-do-sul/paraiba-do-sul-saiba-mais >. Acesso em: 19 out. 2021.
FUNDAÇÃO SEADE. Índice Paulista de Responsabilidade Social. São Paulo: Fundação Seade, 2018. Disponível em: < http://www.iprs.seade.gov.br/ >. Aceso em 19 out. 2021.
RIO PARAÍBA DO SUL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Rio_Para%C3%ADba_do_Sul&oldid=62208470 >. Acesso em: 19 out. 2021.
SÃO PAULO (ESTADO). Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE). Comitê de Bacias Hidrográficas do Rio Paraíba do Sul (CBH-PS). Capacitação de agentes no processo de gestão de recursos hídricos em atividades de educação ambiental. Taubaté (SP): CBH-PS, 2009.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos. Guia do Sistema Paulista de Recursos Hídricos. 3. ed. São Paulo: SSRH, 2015.
TEIXEIRA, W. et al. (org.). Decifrando a Terra. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009

Inverno em Cunha

Paisagem do bairro do Barreiro – Cunha – SP. Julho, 2018.
aos poucos os nossos verdes vales vão esvaecendo
as pastagens vão se rareando, ficando ralas, tosquiadas
e, olhando aqui de riba, dá pra ver a poeira
acompanhando as estradinhas lá embaixo
o ar começa a ficar pesado, meio azulado, 
parece querer também ficar deitado, 
aninhar-se entre as montanhas
por isso a neblina só dissipa depois que o Sol está alto
ou "rachando mamona", como dizia meu avô
é o frio, é a geada, é inverno em Cunha
tempo de tudo se recolher, guardar-se
como a gente mesmo se recolhe dentro de casa
na boca do fogão ou num agasalho, 
os bichos e os matos também têm a mesma ciência
quase nada que é plantado sai, os bichos se entocam,
vaca esconde o leite, galinha não gosta de chocar,
e até o tempo, arisco que é, obedece
perceberam que até as noites ficam mais longas?
há quem prefira a primavera, com suas chuvas de trovoada
e que faz os passarinhos sair em festança pelo céu,
dançando e se fartando entre as revoadas de aleluias
nos quatro cantos, tudo o que tem na terra acaba brotando
trazendo o verde mais vivo que a esperança de volta
até a terra entra no cio, dá pra sentir que ela fica quente, 
esperando o caboclo lançar a semente de milho e feijão
mas prefiro mesmo o inverno, não por que gosto 
das coisas estorricadas pela geada e pelo vento frio
nem de ver os vitelos encarangados no canto do mangueiro
Mas por que através dele, o Criador, penso eu, nos ensina
uma grande lição e que não pode ser esquecida
que no vai-e-vem da vida, no acontecer das coisas,
também temos que dar uma parada
para assentar as ideias no lugar, esperar a poeira abaixar,
matutar sobre o que fizemos e como fazer diferente,
assuntar sobre a nossa própria vida e - por que não? - 
para descansar os cambitos e prosear 
Para daí, sim, voltar com a mesma força e palpite
que voltam os matos e os bichos quando chega a primavera

(julho, 2018)

Vista da cidade de Cunha em 1.979

Foto de Maria Helena Cassinha Oliveira, publicada no grupo Memória Cunhense, mostrando a nossa cidade.

Essa foto, tirada em setembro de 1979, como se vê no canto inferior direito, mostra a cidade de Cunha vista do Cruzeiro, no entroncamento da Rua Manoel Prudente de Toledo e a Rodovia Vice-Prefeito Salvador Pacetti (SP-171). A névoa da manhã, no fundo dos vales, sempre foi um charme à parte e característica cunhense desde sempre.

Ainda que a cidade não tenha crescido tanto, é possível identificar algumas mudanças na paisagem urbana; já na paisagem rural o que chama a atenção é a ausência de matas e o predomínio absoluto de pastagens e plantações. Hoje, tirando uma foto do mesmo lugar, poderemos contemplar – com satisfação – uma Cunha muito mais verde que a 40 anos atrás.

Província Sentimental

Mar de morros da Serra da Mantiqueira, Minas Gerais. Foto: Frederico T. de S. e Miranda.

Por Ribeiro Couto *

Não sei a data precisa que começou a ficar nítida esta sensação de governar uma província própria, província que não corresponde à real “divisão administrativa” dos territórios que constituem, porque uns obedecem à soberania de São Paulo, outros à de Belo Horizonte e outros à de Niterói. Por alguns anos vivi em velhas cidades do Paraíba, não as mais notórias, senão as mais obscuras, fora da estrada de ferro, as que exigiam viagens a cavalo, ao sol e à chuva (São Bento do Sapucaí, Cunha, São José do Barreiro), passando à noite em ranchos de tropeiros. Foi nessas viagens que tive a revelação do virgem cheiro da terra orvalhada, pela manhã, quando as rolinhas andam ciscando pelo chão da estrada e o pesado voo dos viras mancha de preto o verde dos pastos. A seguir, fui morar no Sul de Minas e o sortilégio foi crescendo. Mais tarde, alguns anos no estrangeiro me ensinaram a unidade profunda daqueles vales (os de serra abaixo e os de serra acima) e verifiquei, maravilhado, que tinha dentro de mim toda uma província. Podem secretarias de segurança pública e repartições do tesouro, deste ou daquele Estado, distribuir forças de polícia e fazer coletas tributárias; é dentro de mim que está o governo desses rincões. A mim é que eles obedecem. Em mim é que confiam os povos. A mim é que devem as boas chuvas e as boas colheitas. Sou eu quem constrói em cada comarca o novo edifício de cadeia, onde aliás não quero nenhum preso; a cadeia é só para enfeitar o largo principal. Acompanha-me por toda a parte essa província feliz; é o meu verdadeiro chão. Se estou fatigado ou triste, recordo, por exemplo, o bambual que esconde aos olhos da cidade de Pouso Alto o pequeno cemitério do morro; ou penso no miserável casebre em que certa madrugada tive que dormir na Rocinha, a quatro léguas de Cunha, e onde os arreios dos animais me serviram de travesseiro, (A cabocla, com um candieiro de querosene na mão, ainda foi à cozinha assar um pedaço de carne para me servir a ceia). Não há desilusão ou amargura que possa destruir estes alicerces interiores, nem fazer secar estas fontes de gratuito enternecimento. A minha província me dá forças. Nela me revejo e dela me vem sempre um aceno amigo: memória de um café tomado à porta de um rancho, um olhar bondoso, um pedaço de paisagem onde voa sempre um passarinho.

Mas com certeza foi no Sul de Minas que tomei consciência maior de uma terra “minha”. Assim como também: de uma terra da qual eu tinha o imaculado gosto de ser.

Sobretudo nas vizinhanças imediatas da Mantiqueira, o Sul de Minas é um país à parte no sistema territorial do Brasil. Mesmo nos contrafortes mais ásperos da serra, limite meridional desse país, a paisagem não resultou de convulsões telúricas: tudo foi armado por mãos meigas. O caráter dominante dessa paisagem é a doçura.

Parece que na véspera do mundo ser habitado, quando as potências divinas organizavam a natureza, aquele pedaço do planeta ficou a cargo de anjos de bom gênio. O panorama não guardou lembrança de nenhuma pessoa má, nem de nenhuma ambição torpe. As vaquinhas se espalham, no fim da tarde, pelas lombas verdes de Passa Quatro ou Itanhandu (e provocam o êxtase da surpresa rural nos veranistas metropolitanos, debruçados à janela do trem) são animais de presépio; foi um dom dos reios magos, vieram da Judeia, em barcos fenícios. Dizer utilitariamente dessas vaquinhas “gado leiteiro”, é diminuir-lhes a categoria histórica e a dignidade cristã. Sacudindo a cauda paciente em pleno campo de capim-gordura, não se defendem da picada sutil das mutucas, nem da comichão dos bernes: executam um simples movimento de advertência religiosa, para mostrar que estão vivas, que não são inanimados ornamentos de um estábulo simbólico.

O Sul de Minas começa numa grotinha fresca, entre avencas silvestres, precisamente no ponto em que há uma caixa d’água e a locomotiva para, estendendo a mangueira para beber. Capoeirões de mato húmido cobrem as perambeiras, de um lado e de outro da linha. As pessoas vão no expresso, nos vagões manchados de graxa, sentem que ficou para baixo, lá muito em baixo, o mundo impuro do calor e da ansiedade. Já não haverá, por ali acima, em cada estação, rostos congestos de caixeiros-viajantes; nem senhoras que sobem aflitas à segunda classe, abanando-se com um jornal. A vida agora funciona num plano etéreo, suspensa entre nuvens e ligeiras brumas; e se porventura há sol, é um sol que pela manhã tomou o seu autêntico banho de chuva, um sol contente e lavado com a graduação exata do indispensável teor calórico (só o suficiente para amadurecer as lavouras).

Por meio de um golpe de estado, eu completaria o Sul de Minas com a incorporação do território vizinho de serra-abaixo, até o litoral (só para que não faltasse a essa região perfeita o adminículo poético e econômico do porto do mar).

Na verdade, existe em mim toda uma vasta província, na qual não fui nascido, mas em que senti renascer. Abrange a Bocaina e a serra de Cunha (desde as praias de Parati); desce até o vale do Paraíba, entre Bananal e Taubaté; sobre pela Mantiqueira e se estende, por Minas em fora, entre Paraisópolis e Pouso Alto. Ao Norte, até onde iria meu território?

Sei quanto seria difícil, para um geógrafo ou para um ditador, estabelecer os limites desse território pessoal; haveria municípios que desejariam fazer parte dele (Campos Gerais, por exemplo, onde tenho um amigo); outros, demasiado presos à influência de Belo Horizonte, quereriam ser excluídos. Problemas graves surgiriam, como o da escolha da capital. A velha cidade de Baependi, em cujos sobrados coloniais subsiste a memória de defuntas grandezas agrícolas, reclamaria o privilégio. A cidade de Campanha apresentaria títulos de inextinguível esplendor; e Itajubá não se conformaria; o Dr. Wenceslau Braz me mandaria um portador com uma carta, expondo as razões industriais que militariam em favor da “Chicago Sul-mineira”. Finalmente, a própria cidade de Pouso Alto, com sua única rua, a sua única praça e a estrada da Estação, viria em peso, à minha presença, para recordar-me que a ela, Pouso Alto, é que devo a minha identificação sentimental com as margens do rio Verde.

Essa província nunca existirá para a nação. Tanto mais depois que às capitais interessadas chegar a notícia de tais planos. Nunca será possível dar o golpe. Já agora, quando eu for a Niterói, a Belo Horizonte ou a São Paulo, haverá pessoas vigilantes no meu encalço. A mais humilde valise será revistada; terei de explicar, quem sabe, papéis garatujados que me acompanham (sempre fico inspirado em viagem) e será difícil que as delegacias de segurança social acreditem que se tratem de poemas, exclusivamente de poemas. Quando eu for a um bar à meia-noite, tomar um chope melancólico, todo perdido em meras evocações do meu passado de promotor estadual (origem biográfica de tal obsessão), haverá um sujeito de palheta, fumando charuto, que estará tomando nota da minha atitude e dos meus passos; pensará que fui ali “fazer uma ligação”.

Não importa. A verdadeira existência de uma pátria é questão de alma. Dentro de mim serei sempre o ditador de uma província natal independente e própria, composta de territórios que eu mesmo juntei por amor, como uma criança que fez um brinquedo para ela só.

Fonte: Barro do Município”, 1956, pp. 16-18.

* Ribeiro Couto (Rui Ribeiro Couto) foi um diplomata, poeta, contista, romancista, magistrado e jornalista brasileiro. Nasceu em Santos, SP, em 12 de março de 1898, e faleceu em Paris, França, em 30 de maio de 1963. Foi o quarto ocupante da cadeira 26, da Academia Brasileira de Letras, eleito em 28 de março de 1934. Em 1924, Rui Ribeiro Couto, já então noivo de D. Ana Jacinta Pereira, natural de São Bento do Sapucaí, deixou esta bucólica cidadezinha montanhesa, onde fora delegado de polícia. Para o mesmo cargo e no mesmo ano, foi nomeado para a cidade de Cunha, onde veio residir entre março e abril do mesmo ano. Quando aqui esteve escreveu “Poemetos de Ternura e de Melancolia”, poesia, e “A cidade do Vício e da Graça”, crônicas e viagens. Em seguida, foi nomeado promotor de Justiça em São José do Barreiro, aqui no Vale do Paraíba. Entre 1926 e 1928 residiu em Pouso Alto, Minas, onde exerceu a promotoria e fez tratamento de sua precária saúde. Foi lá que escreveu essa crônica, “Província Sentimental”. Em 1928, parte para a França, passando a ocupar diversos cargos diplomáticos na Europa, chegando a ser embaixador do Brasil na antiga Iugoslávia.