O bairro
A palavra “bairro” vem sendo usada desde o século X. Sua origem etimológica é controversa, provavelmente ibérica. Dizem que vem do árabe “bárri” (isto é, “exterior”) e este do árabe clássico بري (barrī), que significa “selvagem”. Segundo o Houaiss, é a “porção de território povoado nas cercanias de uma cidade; povoado, arraial, distrito”. Para a geografia, trata-se de “organizações rurais dispersas, estruturadas por grupos de vizinhança, e marcadas por uma consciência coletiva de pertencimento, emanada na convivência diária do homem do campo com seus parentes, vizinhos e parceiros”.
O Rio do Peixe é um bairro rural, um entre tantos do Vale do Paraíba paulista – exceto por uma característica – estar localizado entre três municípios: Cunha, Guaratinguetá e Lagoinha. Os moradores, por uma questão de proximidade, se identificam como lagoinhenses. A parte cunhense está no extremo noroeste do nosso município, longe da sede, portanto.
Os moradores expressam sua devoção na capelinha de Santa Luzia, padroeira do bairro, que é atendida pelos padres de Lagoinha. O predomínio da pecuária leiteira hoje é incontestável. Pastos e mais pastos, com manchas de eucalipto. No começo do século XX, a produção do bairro era escoada por tropas, sendo levada até o Rancho da Pedreira, para ser comercializada em Guaratinguetá. A lavoura de milho e feijão, associada à suinocultura e outras feituras caipiras, eram o sustento das famílias, sítios e fazendas. A vida girava em torno de um calendário agrícola, a exemplo de outros bairros de Cunha e região. Mas as transformações vivenciadas ao longo do século XX impulsionaram a pecuária, sobretudo a leiteira. A chegada dos mineiros, o êxodo rural, o aposento das tropas, a inviabilidade econômica das lavouras em uma ecologia dominada por montanhas íngremes… O Rio do Peixe se adequou às imposições econômicas.
Atualmente, o bairro é atravessado por uma estrada asfaltada, um luxo que chegou tarde (no final do século XX). A rodovia João Martins Corrêa (SP-153) liga a cidade de Lagoinha ao bairro da Rocinha, em Guaratinguetá, conectando-se à rodovia Paulo Virgínio (SP-171). Isso abriu um leque de oportunidades econômicas para o bairro, não só com a valorização dos imóveis rurais, mas também com o turismo rural. Casas de veraneio e acomodações alugáveis foram erguidas.
O rio
O rio do Peixe, curso d’água, é um dos muitos afluentes do rio Paraitinga. Nasce na serra da Embira, que é uma das variações toponímicas da serra do Quebra-Cangalha, no bairro do Córrego da Onça, município de Lagoinha. A nascente, assim como o bairro, também se situa em tríplice fronteira: Lagoinha, Guaratinguetá, Aparecida. A altitude supera até os 1.500m. Uma das nascentes, inclusive, é perto do topo do pico da Embira, que com seus 1.541m de altitude, é o ponto culminante da Quebra-Cangalha e do município de Lagoinha.
De lá, o rio do Peixe marcha para o oeste, encachoeirando-se serra abaixo, até alcançar o bairro da Santa Rita. Rumando na mesma direção, alcança o pequeno vale encaixado que batizou. Daí em diante, seu curso natural serve de limite entre Cunha e Guaratinguetá, desenhando nosso território até a altura do bairro Retiro das Palmeiras, de onde, convertendo-se para o sul, vai desaguar no Paraitinga, no bairro do Jaguarão.
Esses vales, como o rio do Peixe, embora modestos, são, no contexto do Domínio Morfoclimático dos Mares de Morros, vias naturais de comunicação e ocupação, favorecendo o assentamento humano. Foram, desde tempos imemoriais, preferidos por indígenas, bandeirantes, tropeiros e sesmeiros. Ao se constituir as fazendas, núcleos originários de muitos bairros rurais, procuravam sempre instalar-se nessas planuras exíguas, nessas baixadas que permitiam explorar a motricidade hídrica, tão útil outrora e ainda agora. Por isso, quase todo sítio de bairro rural cunhense localiza-se nessas acanhadas planícies fluviais.
As linhas
Desse modo, muitas vezes, os limites de determinado bairro se confundem com os limites fisiográficos da paisagem, porque o bairro “é um lugar, uma área qualquer, com características mais ou menos próprias”, podendo ser “um vale, uma cabeceira ou nascente de algum ribeirão, uma praia (…) É o povo que lhe dá o nome e determina, com limites mais ou menos imprecisos, a área abrangida pelo mesmo”. Mas, dificilmente, os bairros se confundem com os limites intermunicipais.
Os limites políticos e territoriais estabelecidos pelo Estado pouco importam. São formalidades cartoriais. O cotidiano é regido pelas relações humanas, pelo dinamismo econômico, pela solidariedade vicinal e por heranças culturais e históricas, que remontam às primeiras famílias que ali se estabeleceram. Estar em uma tríplice fronteira não se sobrepõe a fatos sociais de maior envergadura. Antes de serem desse ou daquele município, os moradores se identificam e se sentem pertencentes ao bairro do Rio do Peixe.
O torrão precede o território, tal como o lar precede o Estado-Nação. Um bairro rural se sustenta por laços que linhas imaginárias jamais poderão confundir.
Referências:
Bairro rural-bairro urbano: um revisão conceitual, artigo de Bruno Maia Halley, publicado na GEOUSP – Espaço e Tempo, em 2014.
Cartas topográficas “Lagoinha” e “Guaratinguetá”, do IBGE, com primeira edição em 1973.
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, publicado em 2001.
Google Earth e Google Street View, de onde foram tiradas as imagens e usados como fontes de consulta.
Negro Político, Político Negro – A Vida do Doutor Alfredo Casemiro da Rocha, de Oracy Nogueira, 1992.